terça-feira, 17 de abril de 2007

Bush e o Álcool - Já é depois de amanhã

Bush quer diminuir a dependência do petróleo com o etanol brasileiro

por André Siqueira




Acostumado a lidar com o tema da fome no próprio País, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deparou-se com o chefe de um Estado que tem sede, muita sede. O líquido precioso, aos olhos de George W. Bush, é o combustível capaz de garantir o abastecimento futuro dos motores da maior nação capitalista do mundo. Só o Brasil conseguiu, até agora, substituir em larga escala a gasolina pelo etanol, um tipo de álcool que representa uma das mais promissoras fontes renováveis de energia. Isso explica, à primeira vista, o porquê do súbito interesse dos Estados Unidos por um parceiro comercial que representa mero 1,5% de suas compras externas.

O que ainda não ficou claro, apesar de toda a discussão que cerca a visita de Bush, entre os dias 8 e 9, é o que o presidente americano tem a oferecer aos vizinhos de continente.

Há quem avalie que o País só tem algo a ganhar se o acesso do álcool obtido à base de cana-de-açúcar ao mercado norte-americano, onde o produto é feito a partir do milho, for facilitado. Trata-se de uma meia-verdade. De fato, a redução dos impostos exigidos quando o produto entra no mercado americano, o principal pleito brasileiro, permitiria um aumento das exportações. Mas a produção brasileira está longe de ser grande o bastante para saciar a demanda potencial dos EUA por etanol, e o que dirá as necessidades do restante do mundo.

Parcerias na área de desenvolvimento de novos processos para fabricar biocombustíveis – com o uso de resíduos vegetais, por exemplo – podem ser até mais bem-vindas do que um corte nas tarifas. Os estudos representam a diferença entre criar mais vagas para cientistas e pesquisadores ou apenas aumentar o recrutamento de cortadores de cana-de-açúcar – a parcela menos qualificada dos trabalhadores da cadeia de produção. Os resultados desses esforços podem permitir aproveitar melhor as vantagens naturais só encontradas abaixo da linha do equador.

“Precisamos pensar na produção do etanol como uma atividade capaz de estimular o crescimento de um setor da indústria e criar empregos de qualidade”, defende o presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), Alessandro Teixeira. “O Brasil acumula décadas de experiência e pesquisa nessa área e tem condições de negociar uma cooperação com os EUA para manter o País na liderança mundial do setor nos próximos anos.”

Por enquanto, a indústria brasileira de etanol se move puxada pelo mercado interno, que consumiu 15 bilhões de litros em 2005, um volume muito superior aos 3,4 bilhões de litros de produção excedente, que tiveram como destino a exportação. Por maiores que sejam os planos de investimento no setor, que espera receber cerca de 15 bilhões de dólares até 2012, o consumo doméstico vai crescer mais rápido do que a produção. A previsão da União Brasileira da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) é a de que, nos próximos seis anos, o mercado interno de álcool vai aumentar 250%, enquanto a elevação das exportações não deve chegar a 100%.

“É uma bobagem falar em Arábia Saudita do etanol”, diz o presidente da Unica, Eduardo Pereira de Carvalho, numa referência a um discurso comum entre os entusiastas dos biocombustíveis. Os dados do mercado dos EUA reforçam essa tese. O país ultrapassou o Brasil na produção de etanol em 2006, com um volume de cerca de 19 bilhões de litros do combustível. Por aqui, o biocombustível foi suficiente para substituir 45% da gasolina consumida pelos automóveis. Enquanto isso, os americanos tiveram ainda de importar quase 2 bilhões de litros para abastecer os carros capazes de rodar com etanol.

Os flex fuel americanos representam apenas 2,1% da frota total de veículos em circulação e utilizam uma mistura de, no máximo, 85% de álcool à gasolina. No Brasil, esse tipo de motor estava em 82% dos carros novos vendidos em janeiro, segundo a Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea).

Os números dos EUA deixam à mostra tanto o gigantismo do mercado potencial para os biocombustíveis quanto a incapacidade de qualquer país, mesmo o Brasil, tornar-se um fornecedor de energia à altura dos grandes produtores de petróleo com a tecnologia atual. A não ser que se assumam os grandes riscos ao meio ambiente (caso as plantações de cana invadam áreas preservadas), e à produção agrícola de alimentos, entre outras ameaças decorrentes de uma arrancada descontrolada da produção de cana-de-açúcar ou outra monocultura.

O alcance relativamente limitado, até agora, da campanha pró-etanol dos EUA também revela alguns dos reais interesses de George W. Bush pelo tema. Dois dos governadores norte-americanos mais engajados na promoção dos biocombustíveis são o primeiro-irmão Jeb Bush, da Flórida, e o correligionário Arnold Schwarzenegger, da Califórnia. Ao mesmo tempo, o assunto é caro à numerosa bancada agrícola do Congresso e à não menos poderosa indústria de produção de grãos. Ou seja, uma série de interesses é atendida enquanto o presidente se esforça para alimentar uma imagem positiva junto aos eleitores como protetor do meio ambiente.

“O etanol faz parte da política doméstica dos EUA, na qual os republicanos perderam muito espaço, também pela falta de preocupação com as questões ambientais”, avalia o professor de Relações Internacionais das Faculdades Trevisan, Sidney Pereira Leite. “Bush enxerga o Brasil como aliado e vai tentar usar o biocombustível como uma maneira de reforçar as relações entre os dois países.”

Os dividendos ecológicos da campanha de Bush são manchados por um artigo publicado, oportunamente, na última edição da revista Scientific America. Após analisar os efeitos da produção americana de álcool sobre o meio ambiente, a revista conclui que, “embora políticos incentivem agressivamente o uso do etanol de milho produzido localmente como substituto do petróleo estrangeiro, a conversão faz pouco sentido do ponto de vista energético”. E prossegue: “Estudos mostram que a produção de etanol de milho cria quase a mesma quantidade de CO2 que a produção de gasolina. A queima de etanol em veículos oferece pouca, se alguma, redução da poluição”.

A publicação ainda revela que “mesmo se 100% da produção americana de milho fosse destilada em etanol, só supriria uma pequena fração do combustível consumido pelos veículos do país”. Os 28,5 bilhões de litros de etanol que os EUA esperam obter em 2012 seriam o equivalente a apenas 15 dias de importação de petróleo. Mas o problema ganha contornos mais sombrios quando a revista acusa o governo Bush e o Congresso de basearem a campanha pró-etanol não em estudos a longo prazo, mas numa análise feita pela ADM, uma grande corporação da área de produção agrícola, com forte presença no Brasil.

O intrincado jogo de interesses envolvido no nascimento da indústria mundial de biocombustíveis justifica as preocupações de entidades sociais que, no Brasil, temem os rumos da parceria com os EUA. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT) manifestaram na quarta-feira 7 o descontentamento com o modelo de expansão do etanol voltado à exportação. “Somos radicalmente contrários a uma forma de produção de energia que privilegia os interesses dos grandes grupos de capital transnacional”, afirma João Pedro Stedile, da direção nacional do MST. As entidades também criticaram a expansão da monocultura de cana-de-açúcar e as relações trabalhistas nas lavouras do produto.

No governo brasileiro, o consenso em torno da necessidade de elevar a produção de álcool chegou ao Ministério do Meio Ambiente, que optou por desenvolver uma agenda para acompanhar o setor. “Vamos monitorar indicadores a partir do zoneamento das áreas propícias ao cultivo de cana, do uso de água nas lavouras, das queimadas, da deposição de vinhaça (subproduto do etanol) e do uso de agroquímicos”, diz o diretor de Qualidade Ambiental do ministério, Ruy de Góes.

O físico e engenheiro Bautista Vidal, secretário de Política Industrial durante o governo do general Ernesto Geisel, penúltimo presidente do regime militar, é outra das poucas vozes contra a aproximação entre Brasil e EUA na área de biocombustíveis. “Estamos entregando o ouro para o bandido ao permitir a participação dos americanos na produção de álcool no Brasil”, acredita o especialista. Vidal defende a criação de mecanismos para limitar as compras de terras e usinas por estrangeiros e para controlar as variações do preço do combustível, influenciado pela produção subsidiada nos EUA.

A Petrobras foi escalada pelo governo para entrar no mercado de álcool combustível, seja por meio de empreendimentos próprios, seja em participações em usinas, numa tentativa de criar um agente regulatório capaz de atuar sobre os preços quando o combustível tornar-se uma commodity mundial, como querem os americanos. Mas como padronizar internacionalmente a cotação de um produto tão exposto a taxas e subsídios?

“É praticamente impossível fazer negócio (nos EUA) com a taxação de 0,54 por galão (de etanol)”, afirmou o presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli, na quarta-feira 7. No mesmo dia, ele assinou um acordo com o Japan Bank for International Cooperation (JBIC) que prevê o financiamento de projetos de biocombustíveis da estatal brasileira, em associação com empresas japonesas.

Com os EUA, apesar da visita de Bush e de toda a pressa americana para ganhar escala no uso de biocombustíveis, está claro que a redução de impostos sobre a importação de etanol e dos subsídios aos produtores locais não terá espaço na pauta. A reação de Lula à notícia de que a abertura de mercado não será discutida foi um repeteco do discurso levado reiteradas vezes à Organização Mundial do Comércio (OMC). “Se é para ter livre-comércio, vamos ter livre-comércio para que a gente tenha oportunidade de vender e comprar. Não tem sentido a alta taxa que os Estados Unidos impõem ao álcool brasileiro”, afirmou o presidente.

Apesar de toda a polêmica em torno das tarifas, o professor do Núcleo de Economia Agrícola da Unicamp Antonio Marcio Buainain defende que Lula não reduza a discussão com os EUA a esse único tema. “O que está em jogo é a consolidação de uma nova matriz energética mundial, na qual o Brasil terá papel de destaque”, afirma ele. “Viabilizar a indústria de biocombustíveis onde ela é nascente depende da concessão de subsídios, que, neste caso, podem até ser legítimos. O campo de cooperação é muito grande para abandonarmos a conversa antes de ela começar.”

Nós e o Mundo

Doha e o etanol
por Delfim Netto
A reaproximação dos Estados Unidos com o Brasil demonstrou uma enorme falta de profissionalismo e de compreensão da nova realidade latino-americana
Delfim Netto
Na última semana, o presidente Lula reuniu-se com o presidente Bush em Camp David. Foi o segundo encontro em menos de um mês, o que mostra a dimensão dos interesses recíprocos que ligam o Brasil e os Estados Unidos. No início do primeiro mandato, Bush havia sinalizado que pretendia ampliar as relações com a América Latina. Infelizmente, a tragédia de 11 de setembro de 2001 imprimiu novo e, agora se vê, perigoso curso para as políticas de segurança interna e de relações externas dos EUA.
A recente iniciativa de reaproximação com o Brasil não foi das mais felizes. Demonstrou uma enorme falta de profissionalismo e de compreensão da nova realidade latino-americana. Os assuntos que dominaram a agenda foram a finalização do chamado Acordo de Doha (cuja discussão já dura seis longos anos) e de um acordo de cooperação para dar ênfase à utilização do etanol (o nosso álcool anidro) como aditivo à gasolina. Isso reduziria, ao mesmo tempo, o consumo de uma fração do petróleo (a gasolina) e melhoraria as condições ambientais (que, finalmente, entraram nas preocupações de Bush).
Doha se inclui na tentativa de organizar o comércio mundial, iniciada depois da Segunda Guerra Mundial, com o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, o Gatt (General Agreement of Tariffs and Trade), que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1948. Em 1994, pelo Acordo de Marrakesh, o Gatt foi institucionalizado e incorporado pela Organização Mundial do Comércio (World Trade Organization), cujos objetivos são ambiciosos. De um lado, a elevação do nível de vida, a realização do pleno emprego e do crescimento da produção, com a melhor utilização dos recursos e a preservação do meio ambiente. De outro, a integração dos países em vias de desenvolvimento no comércio mundial. De 1960 até 2001, tivemos quatro rodadas do Gatt: Diluam (1960-1961), Kennedy (1962-1967), Tóquio (1973-1979) e Uruguai (1986-1994). A quinta Rodada de Doha está pendurada desde 2001.
As negociações têm sido duras, porque envolvem não os problemas atuais, mas as perspectivas do desenvolvimento econômico futuro. Concessões politicamente oportunistas e irresponsáveis feitas hoje determinarão, inexoravelmente, o curso histórico dos países. É mais do que preocupante, por exemplo, a fórmula simples que parece dominar mentes e corações na OMC: “Agricultura para o Brasil, indústria para a China e serviços para a Índia”.
O segundo item da agenda foi a análise dos problemas relativos ao “memorando bilateral EUA-Brasil de cooperação técnica sobre o etanol”, assinado na visita do presidente Bush ao Brasil. Deu-se, assim, mais um passo na saga do etanol, como uma possibilidade de substituição parcial de uma fração da destilação do petróleo (a gasolina), pela qual o Brasil vem lutando há pelo menos 60 anos. Lenda ou verdade, a Ford instalou-se no Brasil em 1919 porque o velho Henry intuía que o álcool anidro seria o combustível natural dos seus motores. A partir de 1943, a inteligência e a teimosia brasileira têm tentado transformá-la em realidade.
Desde a crise mundial de 1929, que feriu de morte a atividade açucareira do Brasil, a produção do açúcar e do álcool nunca mais deixou, para o bem ou para o mal, de ser uma preocupação do Estado. No início dos anos 30, criou-se o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), que seria extinto em 1990. Durante a Segunda Guerra, diante do racionamento da gasolina e da precariedade de sua substituição pelo gasogênio, o álcool foi muito utilizado como aditivo para aumentar o volume de combustível (já se falava em 20%) e, precariamente, como substituto ineficiente pela falta de ajuste dos motores.
O avanço seguinte resultou da combinação da primeira crise do petróleo (1973/1979) com uma visita do presidente Geisel ao Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA), em 1975, quando lhe mostraram motores ajustados, funcionando eficientemente com mistura entre 10% e 20% de etanol na gasolina. Foi o estímulo para o Pró-Álcool I (1975/1979). Com a segunda crise do petróleo (1979/1984), criou-se o Pró-Álcool II, destinado a substituir a gasolina pelo etanol, agora possível pelo desenvolvimento tecnológico extraordinário dos motores, da produção de cana e do álcool.
Os dois projetos foram sucesso até que os preços do petróleo caíssem a partir de 1986, quando os produtores agrícolas e a indústria foram miserável e oportunisticamente abandonados pelo governo. Talvez tenha mesmo chegado a hora do etanol, pelas pressões ambientais que ameaçam a vida na Terra, mas é preciso muito cuidado e inteligência. Até agora, a história do etanol tem sido a de uma maternidade que sempre terminou no cemitério.
JÁ É DEPOIS DE AMANHÃ
por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

Um ano trágico para o meio ambiente, mas também de retomada das negociações sobre Kyoto. Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa







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JÁ É DEPOIS DE AMANHÃ
Um ano trágico para o meio ambiente, mas também de retomada das negociações sobre Kyoto.
Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

Como sabem os que acompanharam as carreiras de Katrina (1.325 vítimas, principalmente em New Orleans), Rita (119 vítimas), Stan (1.153 vítimas, principalmente na Guatemala) e Wilma (60 vítimas), a América do Norte e a América Central presenciaram em 2005 a pior temporada de furacões dos últimos cem anos. Não foi a única aberração climática deste ano difícil.



New Orleans, setembro.
Uma das mais belas cidades dos EUA é destruída e arruinada


Em 26 de julho, Mumbai (ex-Bombaim) teve a chuva mais forte já vista sobre um continente: 944 milímetros em 24 horas provocaram mil mortes e US$ 100 milhões em prejuízos materiais com as enchentes. Em 11 de outubro, a Europa foi pela primeira vez atingida por um furacão, o Vince, embora reduzido a dimensões inofensivas, varreu o sul de Portugal e da Espanha.

No início de novembro, a Amazônia brasileira começou a enfrentar sua pior seca desde 1963. Em 28 de novembro, as Ilhas Canárias foram atingidas pela tempestade tropical Delta, a primeira de sua história, que matou sete pessoas, causou grandes danos e deixou o arquipélago sem luz elétrica por vários dias.

O próprio nome dessa tempestade soou como aviso. Antes de cada temporada – oficialmente inaugurada em 1º de junho e encerrada em 30 de novembro –, 21 nomes para ciclones do Atlântico Norte são escolhidos e aplicados, em ordem alfabética, à medida que aparecem. Como a média anual é de 9,6 tempestades dignas de ser nomeadas, 5,9 das quais chegam a ser furacões, isso sempre foi suficiente. O recorde havia sido 21 tempestades, em 1933.

Em 2005, pela primeira vez na história, a lista se esgotou. As últimas cinco tempestades foram improvisadamente batizadas com nomes de letras gregas – Alfa, Beta, Gama, Delta e Épsilon, a última das quais durou até 8 de dezembro. Foram 26 tempestades, 14 com categoria de furacão. Três ou quatro atingiram a categoria 5, a mais violenta. Um deles, Wilma, foi o mais potente de todos os tempos. Recordes históricos em todos os aspectos, inclusive o financeiro: US$ 200 bilhões em perdas e danos materiais, 35% cobertos por seguros.

O recorde anterior havia sido 2004 – US$ 145 bilhões em prejuízos, 31% segurados –, também marcado por fenômenos insólitos, como o ciclone Catarina, o primeiro registrado na história do Brasil e do Atlântico Sul, e o furacão Ivan, descrito à época como um desastre que aconteceria “uma vez a cada cem anos”, mas foi ofuscado em menos de 12 meses.

Um estudo publicado na revista Science de 14 de setembro, assinado por quatro cientistas, concluiu que, na média global, a freqüência de grandes furacões (não do total de tempestades) cresceu 80% da década de 70 à década de 90 e, na média de 1990 a 2004, foi cerca de 57% maior do que nos 15 anos anteriores.

A julgar pela amostra de 2005, os próximos 15 anos serão ainda mais terríveis. Sabe-se que furacões geralmente se formam sobre oceanos cuja temperatura na superfície é superior a 26ºC e a temperatura média dos mares tropicais subiu 0,5ºC de 1970 a 2004. Kerry Emanuel, meteorologista do MIT, mostrou uma clara correlação entre o aquecimento do Atlântico e do Pacífico e a potência e duração dos furacões. Também se sabe que a temperatura do planeta está relacionada ao efeito estufa e este é incrementado pela liberação de gás carbônico na queima de combustíveis fósseis. Simulações indicam que o aumento da proporção desse gás na atmosfera deve aumentar a temperatura média do planeta e a intensidade dos furacões no longo prazo.



Guatemala, outubro.
Mulheres maias choram as mais de mil vítimas do furacão Stan


Os dez anos mais quentes, desde que começaram os registros meteorológicos, ocorreram todos desde 1990 – e 2005 foi o mais quente de todos. Entretanto, não são simples as mediações entre a prosperidade das classes médias que amplia o consumo de petróleo pelas picapes do Texas e centrais elétricas de Xangai e as misérias que se abateram sobre os pobres da Louisiana e da Guatemala.

O clima é um sistema caótico e volátil, afetado por muitos fatores. É difícil demonstrar cabalmente, por meios estatísticos, que o fenômeno se deve à atividade humana e não à mera flutuação estatística ou a ciclos naturais. Podem ser necessários 50 anos para que o número de observações crie suficiente certeza estatística para obrigar os mais céticos – incluindo Bush júnior e seus amigos na indústria petrolífera e na Fox News – a dar o braço a torcer.

Mas cerca de 50% das perdas seguradas devidas a catástrofes naturais dos últimos 40 anos ocorreram desde 1990 e o setor de seguros, com muito a perder com mais furacões, secas, incêndios florestais, inundações e epidemias (por ampliação do hábitat de agentes transmissores, como mosquitos) provocadas por alterações do clima, não quer esperar tanto. Começou a estudar a relação entre o aquecimento global e os desastres naturais desde que perdeu US$ 22 bilhões com o furacão Andrew, de 1992.

A preocupação naturalmente redobrou quando uma reunião da associação estadunidense de corretores de seguros para discutir o assunto, marcada para 8 de setembro de 2005 em New Orleans, teve de ser cancelada por notório motivo de força maior. Mas a associação das seguradoras britânicas já havia publicado, em junho, um estudo segundo o qual as perdas com grandes tempestades devidas ao aquecimento global aumentariam em dois terços até 2080 e as seguradoras teriam de aumentar em 90% o capital da cobertura de furacões estadunidenses e em 80% o de tufões japoneses. Estudos da classificadora de seguros AM Best indicam que o aquecimento global pode causar catástrofes que custarão US$ 100 bilhões aos seguradores, valor equivalente à soma dos patrimônios líquidos das 25 maiores resseguradoras do mundo.

Uma delas, a Swiss Reinsurance, aceita a idéia do aquecimento global desde 1994, trabalhou com um grupo de seguradoras patrocinado pela ONU que apoiou o Protocolo de Kyoto e emprega 20 cientistas e engenheiros para estudar a questão. “Sempre se pode achar um cientista que diz o oposto do que os outros estão dizendo”, disse o diretor de riscos emergentes e de sustentabilidade da resseguradora, Ivo Menzinger, ao jornal The Washington Post, “mas a maioria dos cientistas hoje reconhece que o aquecimento global existe”.

Politicamente mais importante do que o número decrescente de cientistas que ainda se dizem céticos é o esforço do setor petrolífero para amplificar politicamente suas vozes.

Em 8 de dezembro, os jornais britânicos The Guardian e The Independent publicaram um documento em PowerPoint montado pelo advogado Chris Horner, lobista do Competitive Enterprise Institute (CEI) de Washington (co-fundado pela ExxonMobil, que contribuiu com US$ 1,5 milhão) e representante da Cooler Heads Coalition, que visa “dissipar o mito do aquecimento global”. Horner aparentemente atua na Europa a convite do European Enterprise Industry.

A apresentação – encaminhada aos jornais pelo Greenpeace – dirigia-se à companhia alemã de eletricidade RWE. Esboça um plano para arrebanhar transnacionais, acadêmicos, institutos, comentaristas, jornalistas e lobistas da Europa para a Coalizão Européia para uma Política Climática Sólida a ser criada em Bruxelas, e financiada por pelo menos seis empresas, o que minaria o apoio europeu ao Protocolo de Kyoto.

A proposta inclui preparo de relatórios de posicionamento, recrutamento de peritos prontos a atuar como conselheiros e porta-vozes e formação de redes de apoio instantaneamente disponíveis a qualquer empresa ou político interessado em questionar a adesão ao Protocolo.

Segundo o documento, a Lufthansa, Exxon e Ford teriam demonstrado interesse. “Nos EUA, uma coalizão informal (a Global Climate Coalition, fundada por empresas de petróleo e outras nos anos 90) teve sucesso em ajudar a evitar a adoção de um programa ao estilo de Kyoto. Esse modelo deveria ser emulado, no que for apropriado, para guiar esforços semelhantes na Europa.”

A apresentação afirma que os custos de Kyoto serão insuportáveis para a Europa, pois a maioria dos países europeus não atingiria suas metas para 2010 e isso os obrigaria a dar conta do atraso no período seguinte, com uma penalidade extra de 30% (segundo as regras ratificadas, dias depois, em Montreal).

Questionadas pelos jornais, algumas dessas empresas confirmaram ter-se reunido com Horner, mas só a Exxon se alinhou à sua posição, ao lamentar que “só um lado dessa discussão fosse visto como legítimo”. Para a RWE, o encontro “não significa que compartilhe dessa opinião”. A Ford Europa disse considerar a mudança climática um assunto sério, que exige medidas apropriadas e imediatas.



Brasil, novembro.
Botos agonizam, encalhados na lama, na pior seca da Amazônia em quatro décadas


Apesar dos esforços de Horner, sua proposta de lobby parece não ter vingado. O ano terminou com notícias relativamente boas: apesar do pessimismo da mídia, a 11ª Conferência da ONU sobre mudança climática, encerrada em Montreal em 11 de dezembro, resultou em alguns avanços.

Os negociadores dos EUA, Paula Dobriansky e Harlan Watson, tentaram impedir a continuação de Kyoto depois de 2012. Defenderam que a redução das emissões e a pesquisa de tecnologias inovadoras teriam de ser voluntárias e partir da iniciativa privada. Chegaram a abandonar reuniões em protesto e ameaçar vetar qualquer nova rodada de discussões, alegando que isso só levaria a novas metas de cortes de emissões, rejeitadas por Bush júnior por supostamente prejudicar a economia dos EUA. Mesmo se, segundo um manifesto divulgado por 25 economistas (três deles Prêmios Nobel) na reunião, isso reduzisse o crescimento em apenas 1% do PIB, menos que o custo da reconstrução de New Orleans.

Horner foi credenciado como “jornalista” pelo jornal neoconservador Washington Times para participar das conferências de imprensa e dar a deixa para Dobriansky proclamar a isolada posição de Washington como liderança de um “novo consenso”. Queria se referir aos 154 países, quase todos periféricos, que ainda não têm metas de redução e somam um terço das emissões globais – como China (13% das emissões), Índia (4%) e Brasil (1,3%, devido principalmente a desmatamento). Mas esses não morderam a isca e apoiaram a continuação da negociação.

Ao final, depois das críticas do primeiro-ministro canadense, Paul Martin – “Aos países relutantes, incluindo os EUA, digo que há uma coisa chamada consciência global e é hora de ouvi-la. Acima de tudo, agora é o momento de agir” –, e das pressões de aliados como o Reino Unido e de suas próprias ONGs, acabaram por aceitar participar de dois anos de discussões informais sobre cooperação no combate às alterações climáticas.

O objetivo é negociar a revisão e o aprimoramento do Protocolo de Kyoto a partir da conferência de 2006, definir metas mais ambiciosas para a segunda fase (2013-2017) e desenvolver um plano de cinco anos para ajudar os países pobres a enfrentar os impactos da mudança climática.

O maior desafio é convencer os não tão pobres – como China, Índia, Brasil e México – a aceitar metas de emissão, priorizar a sustentabilidade de seus investimentos e ajudar a financiar esse esforço. A Agência Internacional de Energia prevê investimentos de US$ 6 trilhões no mercado de energia até 2030, na maior parte em países periféricos. Para que esses investimentos não afetem o clima, seriam necessários outros US$ 2 trilhões – US$ 80 bilhões anuais.

De Washington, o mais que se pode esperar – pelo menos até o fim do governo Bush júnior, em 2008 – é que não sabote ativamente esses esforços. Mesmo assim, a presente geração ganhou, em 2005, a oportunidade de presentear seus netos com alguma esperança no futuro.

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