quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Textos Base 3os Anos 4oBim

Entenda a polêmica envolvendo o programa nuclear do Irã - O Estado de SP


Conheça o lado iraniano e as suspeitas de outros países quanto ao programa de Teerã 17 de maio de 2010


O Brasil e a Turquia anunciaram nesta segunda-feira em Teerã um acordo para que o Irã envie urânio para o exterior e receba, em troca, urânio com grau maior de enriquecimento.



O acordo pode ajudar a evitar que o Conselho de Segurança da ONU aprove novas sanções contra o Irã, como defendem os Estados Unidos.



A BBC preparou uma série de perguntas e respostas que ajudam a explicar a complexa situação e a importância do acordo.



O que prevê o acordo?


O Irã enviará 1,2 tonelada de urânio com baixo grau de enriquecimento (3,5%) para a Turquia em troca de 120 kg de combustível enriquecido a 20%.



A troca deverá ter o acompanhamento da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica, órgão da ONU).



Para que o Irã quer o combustível?



Para um pequeno reator de pesquisas médicas em Teerã, instalado pelos Estados Unidos há muitos anos. Ele está sofrendo com a falta de combustível, que antes era fornecido pelo exterior.



Qual seria o problema de permitir que o Irã enriquecesse o próprio urânio?



O argumento contrário é de que, com isso, o Irã poderia desenvolver mais sua capacidade de enriquecimento.



Muitos países temem que o país possa evoluir nesse campo até ter condições de construir um dispositivo nuclear, que requer urânio com um alto grau de enriquecimento, de cerca de 90%.



Por outro lado, especialistas ocidentais acreditam que o Irã ainda não tem capacidade de fabricar sozinho as varetas de combustível necessárias para o reator de Teerã.



Isso os leva a questionar a necessidade de o país ter acesso a urânio enriquecido a 20%, usado nas varetas.



O Irã contesta isso e diz que simplesmente precisa de combustível.



Qual era a situação antes do acordo?



No ano passado, os Estados Unidos, a Rússia e a França propuseram retirar do Irã urânio com baixo grau de enriquecimento em troca de combustível com urânio enriquecido a 20%.



A proposta era que o material fosse enviado para a Rússia e a França - onde seria enriquecido e transformado em varetas para uso no reator de Teerã - antes de ser devolvido ao Irã.

O Irã queria a troca de seu urânio pouco enriquecido por urânio mais enriquecido em pequenas quantidades e em seu próprio território, temendo a possibilidade de não receber de volta seu urânio.

Após meses de incerteza, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, parecia aprovar a ideia original em outubro, mas posteriormente voltou atrás e ordenou aos seus cientistas nucleares que seguissem adiante com o enriquecimento de urânio no próprio país.



O Irã diz que, se receber de outro país o urânio enriquecido a 20% para seu reator de pesquisas, não teria a necessidade de enriquecer o urânio.



Governos ocidentais também argumentam que fornecer ao Irã mais combustível não eliminaria a possibilidade de novos enriquecimentos.



Por que o Conselho de Segurança ordenou que o Irã interrompesse o enriquecimento?



Porque a tecnologia usada para enriquecer urânio para ser usado como combustível na produção de energia nuclear também pode ser usada no enriquecimento de urânio ao nível mais alto.



Há receio de que o Irã esteja ao menos tentando adquirir a experiência necessária para que possa, um dia, se quiser, fabricar uma bomba.



O Irã escondeu seu programa de enriquecimento por 18 anos, então, o Conselho de Segurança disse que, até que as intenções pacíficas do programa nuclear do país possam ser estabelecidas por completo, o país deve interromper o enriquecimento e algumas outras atividades nucleares.



O que o Irã diz sobre a produção de armas nucleares?



O país diz que não descumprirá suas obrigações estabelecidas pelo Tratado de Não Proliferação Nuclear (NPT, na sigla em inglês) e não usará a tecnologia para fabricar uma bomba nuclear.



No dia 18 de setembro de 2009, o presidente Ahmadinejad disse à rede de televisão NBC: "Não precisamos de armas nucleares (...) isso não é parte dos nossos programas e planos".



Ele também disse à ONU, no dia 3 de maio de 2010, que armas nucleares são "um fogo contra a humanidade".



Pouco depois, o supremo líder religioso do Irã, Ali Khamenei, que, segundo relatos, teria baixado um fatwa (decreto religioso islâmico) contra armas nucleares, disse: "Nós rejeitamos fundamentalmente as armas nucleares". Ele já havia dito isso em fevereiro deste ano.



Por que o Irã se recusa a obedecer as resoluções do Conselho de Segurança?




Segundo o NPT, países signatários têm o direito de enriquecer urânio para ser usado como combustível na geração de energia nuclear com fins civis.



Estes Estados devem permanecer sob inspeção da AIEA. O Irã está sendo inspecionado, mas não de acordo com as regras mais rigorosas, porque o país não concorda com elas.



Apenas os signatários que já tinham armas nucleares quando o tratado foi criado, em 1968, têm permissão de enriquecer urânio até o nível mais alto, necessário para a obtenção de armas nucleares.



O Irã dizia que estava simplesmente fazendo o permitido pelo tratado e que pretendia enriquecer urânio até o nível requerido para a produção de energia ou outros fins pacíficos. O país atribui as resoluções do Conselho de Segurança a pressões políticas dos Estados Unidos e seus aliados. E argumenta que precisa de energia nuclear e quer controlar o processo por conta própria.



O presidente Ahmadinejad disse várias vezes que seu país não vai ceder à pressão internacional: "A nação iraniana não sucumbirá a intimidações, invasões ou violações de seus direitos".



O que exatamente o Conselho de Segurança e a AIEA queriam que o Irã fizesse?



Eles queriam que o Irã suspendesse todas as atividades de enriquecimento, incluindo a preparação do urânio, a instalação de centrífugas nas quais o gás do urânio é circulado para separar as partes mais ricas e a inserção do gás nas centrífugas.



Os órgãos da ONU também queriam que o Irã suspendesse projetos envolvendo água pesada, particularmente a construção de um reator de água pesada. Este tipo de reator pode produzir plutônio, que pode ser usado como substituto do urânio em uma bomba nuclear.



A AIEA também pediu que o Irã ratifique e implemente um protocolo adicional permitindo inspeções mais minuciosas como uma forma de criar mais confiança.



Que sanções já foram impostas contra o Irã?



Em março de 2008, a ONU impôs uma última rodada de sanções, que incluem a proibição de viagens internacionais para cinco autoridades iranianas e o congelamento de ativos financeiros no exterior de 13 companhias e de 13 autoridades iranianas.


A resolução também impede a venda para o Irã dos chamados itens de "uso duplo" - que podem ter tanto objetivos pacíficos como militares.

Em 10 de junho de 2008 os Estados Unidos e União Europeia anunciaram que estariam dispostos a reforçar as sanções com medidas adicionais.


Treze dias depois, a EU concordou em congelar bens do maior banco iraniano, o Banco Melli, e estender a proibição de vistos para iranianos envolvidos no desenvolvimento do programa nuclear.



Ainda em junho daquele ano, o então representante da União Europeia para política externa, Javier Solana, apresentou, em nome de China, UE, Rússia e Estados Unidos, um pacote de incentivos econômicos ao Irã em troca de garantias de que o país não fabricaria armas nucleares.



A decisão de elevar o nível de enriquecimento de urânio para 20% provocou novas sanções?


Sim. Um dia depois do anúncio do Irã, o governo dos Estados Unidos anunciou novas sanções, passando a punir quatro empresas ligadas às Guarda Revolucionária do país asiático.



As companhias são ligadas a uma empresa de construção que pertence à Guarda Revolucionária, a Khatam Al-Anbiya, e ao diretor da empresa, general Rostam Qasemi. Os ativos no exterior de Qasemi e das quatro empresas foram congelados.



Segundo o governo americano, os lucros da Khatam Al-Anbiya ajudam a patrocinar os programas nuclear e de desenvolvimento de mísseis do Irã.



Além dos EUA, autoridades da França, da Rússia e da Alemanha também afirmaram que novas sanções seriam necessárias contra o país.


Quais novas sanções seriam possíveis?



A China continua relutante em concordar com novas sanções do Conselho de Segurança. Por isso, uma coalizão de países, que inclui a União Europeia, podem tomar algumas ações separadamente.


Já foi considerado parar a exportação de produtos de petróleo refinado para o país. Apesar da riqueza petroleira, o Irã não consegue produzir uma quantidade suficiente desses produtos sozinho. Apesar disso, há oposição a essa ideia porque poderia afetar a população geral.



Pode haver esforços para conseguir uma proibição para o investimento de petróleo e gás e em negócios financeiros.



Alguns incentivos estão sendo oferecidos ao Irã. Quais são eles?



Estados Unidos, Rússia, China, Grã-Bretanha, França e Alemanha afirmam que se o Irã suspender o enriquecimento de urânio, podem começar as negociações para um acordo de longo prazo.



A oferta prevê ao reconhecimento do direito do Irã desenvolver energia nuclear para fins pacíficos e o diz ainda que o Irã será tratado "da mesma maneira" que outros Estados signatários do Tratado de Não-Proliferação.



O Irã teria ajuda para desenvolver usinas de energia nuclear e teria garantias de combustível para as usinas. Além disso, receberia concessões comerciais, inclusive o possível fim das sanções dos EUA, que proíbe o país, por exemplo, de comprar novas aeronaves civis e equipamentos para os aviões.



Quais são as chances de um ataque contra o Irã?



O primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, já falou diversas vezes do que acredita ser uma ameaça em potencial do Irã. Há relatos de que Israel tenha realizado um grande exercício aéreo, considerado um teste para uma eventual ofensiva contra o território iraniano.



O governo de Israel não acredita que os meios diplomáticos forçarão o Irã a suspender o enriquecimento de urânio e não quer Teerã sequer desenvolva capacidade técnica para produzir uma bomba nuclear.



Portanto, a possibilidade de um ataque de Israel permanece.


Afinal, o que, na prática, impede o Irã de fazer uma bomba nuclear?



Especialistas acreditam que o Irã poderia enriquecer urânio suficiente para construir uma bomba em alguns meses. Entretanto, o país aparentemente ainda não detém o domínio da tecnologia para criar uma ogiva nuclear.



Em teoria, o Irã poderia anunciar que está abandonando o Tratado de Não-Proliferação das armas nucleares e, três meses depois de fazê-lo, estaria livre para fazer o que bem entendesse. Mas ao fazer isso, o país estaria sinalizando suas intenções e ficaria vulnerável a ataques.



Se o Irã tentasse obter secretamente o material para fazer uma bomba e o plano fosse descoberto, o país estaria vulnerável da mesma forma. Por isso, alguns acreditam que a ameaça de que o Irã desenvolva uma bomba atômica tem sido exagerada.



Os países que já têm armas nucleares e são signatários do tratado de Não-Proliferação nuclear não se comprometeram a acabar com esses armamentos?


O artigo 6º do Tratado obriga os signatários a "fazer negociações de boa-fé sobre medidas que levem ao fim da corrida armamentista nuclear em uma data próxima e ao desarmamento nuclear". As potências nucleares alegam que têm feito isso ao reduzir seus arsenais, mas críticos alegam que eles, na verdade, não tem seguido no caminho do desarmamento. Analistas também argumentam que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha violaram o tratado ao transferirem tecnologia nuclear de um para o outro.


E Israel, inimigo do Irã na esfera internacional, tem bombas nucleares?


Israel nunca confirmou isso. Contudo, como Israel não é signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear, então não é obrigado a obedecê-lo.

O mesmo pode ser dito da Índia ou do Paquistão, dois países que têm armamentos nucleares. A Coreia do Norte abandonou o tratado e anunciou que também tem a capacidade de ter bombas atômicas.



Em 18 de setembro de 2009, a AIEA pediu a adesão de Israel ao NPT ou que o país permita que suas instalações nucleares sejam inspecionadas.



Israel se recusa a aderir ao acordo ou permitir a supervisão. Acredita-se que o país tenha até 400 ogivas nucleares, mas Israel se nega a confirmar ou confirmar isso. BBC Brasil -

“Sinto-me honrado, nessa milenar cidade do Cairo(...)Agradeço a hospitalidade dessas universidades e a hospitalidade do povo egípcio. Trago-lhes com orgulho a boa-vontade do povo americano, e um voto de paz das comunidades muçulmanas em meu país..(...) Nos reunimos num momento de tensão entre os EUA e muçulmanos em várias partes do mundo – tensão que brota de forças históricas e vão além do atual debate político. Vim até aqui em busca de um recomeço, entre os EUA e os muçulmanos de todo o mundo; recomeço baseado em interesse mútuo e mútuo respeito; e baseado na verdade de que os EUA e o Islã não são exclusivos e não precisam viver em competição.” Barack Obama, Discurso na Universidade do Cairo, 4/6/2009

Obama sepulta oficialmente a 'doutrina Bush'


Nova estratégia de segurança dá prioridade à diplomacia em relação ao poder militar

28 de maio de 2010
Patrícia Campos Mello - O Estado de S.Paulo

CORRESPONDENTE / WASHINGTON
O nova doutrina de segurança nacional dos EUA amplia o conceito de segurança para incluir aquecimento global, guerra cibernética e endividamento como ameaças, ao lado de terrorismo doméstico e proliferação nuclear.
A chamada "doutrina Obama" é uma ruptura drástica com a abordagem de George W. Bush, que pregava intervenções militares unilaterais. No relatório de Estratégia de Segurança Nacional, divulgado ontem, o presidente Barack Obama enfatiza a necessidade de agir com apoio de outros países e de instituições multilaterais, além de sublinhar a importância da diplomacia, em vez do militarismo.

Na doutrina Obama, a luta não é mais contra o terrorismo islâmico, como se definia no governo Bush. Obama determina de forma mais exata o adversário dos EUA: a Al-Qaeda e seus aliados. "Nosso inimigo não é o terrorismo, porque o terrorismo é uma tática", disse John Brennan, conselheiro da Casa Branca. "E nós não descrevemos nossos inimigos como islâmicos ou jihadistas."
No relatório, a Casa Branca reconhece a emergência de outras potências e as limitações dos EUA, "endurecidos pela guerra" e "punidos por uma crise econômica devastadora". Essa também é uma diferença marcante em relação a Bush, que não admitia a emergência de novas potências. "Precisamos encarar o mundo como ele é", afirma Obama na introdução do relatório.

A secretária de Estado Hillary Clinton apresentou a nova estratégia em evento e afirmou que os EUA não podem depender de uma "diplomacia militarizada". "Estamos saindo de uma forma mais direta de exercício do poder para uma mistura mais sofisticada e difícil de poder indireto e influência. Por isso, o chamado smart power não é apenas um slogan", disse Hillary.

O documento, de 52 páginas, é usado para estabelecer as prioridades do governo e comunicá-las ao Congresso, aos americanos, e aos estrangeiros. No relatório, Obama volta a prometer que fechará a prisão em Guantánamo, mas não especifica quando ou como.

Na doutrina Obama, não há menção a ataques preventivos, propostos por Bush. Mas Obama não exclui a possibilidade de iniciar um ataque contra um inimigo. "O uso da força às vezes é necessário, mas vamos esgotar as possibilidades antes de recorrer à guerra, e cuidadosamente pesar os riscos e custos da ação, comparada à inação", diz o relatório. Se for necessário agir, "vamos buscar amplo apoio internacional, trabalhando com instituições como a Otan e o Conselho de Segurança da ONU".

NOVAS DIRETRIZES
Ampliar a cooperação
Diplomacia multilateral e reconhecimento de uma nova ordem mundial, com a ascensão do G-20
Fim da guerra preventiva

Conter a violência extremista, sem ligá-la ao Islã, e reconhecer a Al-Qaeda e os radicais em território americano como os grandes inimigos dos EUA

Bem-estar econômico

Crescimento da economia e redução do déficit fiscal para garantir a segurança do país, além do uso de energia limpa

29/10/2002 - 02h51 A Doutrina Bush A nova doutrina americana
MARCIO AITH  da Folha de S.Paulo, em Washington

A Doutrina Bush é o conjunto de princípios e métodos adotados pelo presidente George W. Bush para proteger os EUA depois dos atentados de 11 de setembro, consolidar a hegemonia americana no mundo e perpetuá-la indefinidamente.



Ela parte do pressuposto de que os EUA, única superpotência global, têm o papel de proteger o mundo civilizado de terroristas que vivem nas sombras, se superpõem aos Estados e planejam ataques "iminentes" com armas de destruição em massa.



Se necessário, a doutrina reserva aos EUA a prerrogativa de lançar ataques preventivos contra países ou grupos terroristas antes que eles ameacem interesses americanos.



Para entender melhor esse conjunto de idéias, vale a pena relembrar como a palavra "doutrina" foi usada para definir feições, linhas de conduta e métodos de alguns presidentes americanos no século 20.



O dicionário Aurélio define doutrina como o conjunto de princípios que servem de base a um sistema religioso, político, filosófico ou científico. Doutrinas não são ações isoladas, mas diretrizes feitas para orientar políticas por períodos que, supõe-se, sejam mais longos que dias, semanas e meses. No passado, coube a historiadores, e não a governos, definir quais idéias e ações tiveram consistência ou duração suficientes para serem chamadas de doutrinas.



Foi assim com a Doutrina Truman, que formou o pilar da Guerra Fria em 1947 e acabou derrotando a União Soviética quatro décadas depois, e com a Doutrina Monroe , de 1823, que garantiu aos EUA a ascendência sobre a América Latina e afastou a influência européia sobre a região. Essas doutrinas foram batizadas como tais anos depois, pelas mãos de observadores independentes.




Diferentemente, quem primeiro cunhou a expressão Doutrina Bush foram autoridades do próprio governo Bush, enquanto a divulgavam. Mais especificamente, foi a assessora de segurança nacional da Casa Branca, Condoleezza Rice, que primeiro a mencionou, durante conversa com jornalistas, em novembro de 2001.



Essa distinção é importante não só porque constata a rapidez com a qual idéias são embaladas em doutrinas atualmente, mas porque indica a intenção de Bush de projetar suas idéias no futuro, não deixando que morram com o fim de sua administração.



Isso não significa que a Doutrina Bush não mereça ser chamada de doutrina. Ao contrário, ela mudou radicalmente o parâmetro da política externa dos EUA, substituindo os princípios da contenção e da dissuasão, típicos da Doutrina Truman, pela possibilidade de ataques preventivos.



A grande dúvida é saber se, como as duas outras doutrinas aqui citadas, a de Bush se projetará no futuro. Ou se, fugaz, será revogada pelo próximo presidente americano e ficará registrada na história como uma espécie de "soluço".



A doutrina é composta por três pilares básicos:



1- "Todas as nações, em todas as regiões, agora têm uma decisão a tomar: ou estão conosco ou estão com os terroristas" (discurso de Bush ao Congresso norte-americano no dia 20 de setembro de 2001). Com essa afirmação, a Casa Branca prometeu caçar terroristas em todo o mundo e ameaçou países que abrigam terroristas ou que optaram pela neutralidade. Nesse discurso, Bush definiu o terrorismo como o principal inimigo da humanidade e condicionou qualquer apoio financeiro e diplomático dos EUA ao engajamento de outros países.



2- "A guerra contra o terror não será ganha na defensiva. Dissuasão —a promessa de retaliação maciça contra nações— nada significa contra esquivas redes terroristas sem nações ou cidadãos para defender. A contenção é impossível quando ditadores desequilibrados, com armas de destruição em massa, podem enviá-las por mísseis ou transferi-las secretamente para aliados terroristas" (discurso de Bush a cadetes da academia militar de West Point em 2 de junho passado). Esse discurso introduziu a opção de ataques militares preventivos como figura central de uma nova ordem mundial. Segundo o presidente, é necessário "levar a batalha ao inimigo e confrontar as piores ameaças antes que venham à tona". Em suma: durante a Guerra Fria, os EUA continham seus inimigos com ameaças. Agora, passarão a destruí-los antes que eles ataquem.



3- "Nossas forças serão firmes o bastante para dissuadir adversários potenciais de buscar uma escalada militar na esperança de ultrapassar ou se equiparar ao poderio dos Estados Unidos" (trecho do documento "A Estratégia de Segurança Nacional dos EUA", enviado por Bush ao Congresso em 20 de setembro de 2002). O significado dessa afirmação é que os EUA não pretendem nunca mais permitir que sua supremacia militar seja desafiada.



Existem outros aspectos da Doutrina Bush que, embora menos importantes, têm relevância. Um deles é o econômico. O mesmo documento enviado ao Congresso no dia 20 de setembro diz que "comércio e investimento são os motores reais do crescimento" e que "livre comércio e livre mercado são prioridades-chave da estratégia de segurança nacional".



Os EUA sinalizam também oposição a qualquer tipo de modelo econômico baseado na intervenção estatal, "com a mão pesada do governo". Esse aspecto é importante para países como o Brasil, pois os EUA prometem usar sua influência em instituições como o FMI (Fundo Monetário Internacional) para obter esses e outros objetivos.

Marcio Aith, 35, é correspondente de Folha em Washington desde 1999. Foi, no passado, advogado e craque de futebol.


Links Crise Petróleo Opep

http://www.brasilescola.com/geografia/a-crise-do-petroleo.htm

http://pe360graus.globo.com/educacao/educacao-e-carreiras/geografia/2010/08/16/NWS,518843,35,595,EDUCACAO,885-PROFESSOR-GEOGRAFIA-EXPLICA-CRISE-PETROLEO-1973.aspx

Textos Básico 2os Anos

As concepções e práticas mercantilistas, adotadas pelas nações européias entre os séculos XVI e XVIII

A política econômica mercantilista estava voltada para três objetivos principais: o desenvolvimento da indústria, o crescimento do comércio e a expansão do poderio naval. Para incentivar o desenvolvimento da Indústria, o governo concedia a grupos particulares o monopólio de determinados ramos da produção ou criava as manufaturas do Estado. A meta era a obtenção da auto-suficiência econômica e a produção de excedentes exportáveis.
O crescimento do comércio era Incentivado através da criação de grandes companhias comerciais, como a Companhia das Índias Ocidentais e a Companhia das índias Orientais e da organização de vastos Impérios coloniais. O comércio entre metrópole e colônia era regulado pelo pacto colonial, baseado num sistema de monopólio comerciei também chamado de exclusivo metropolitano. A metrópole adquiria da colônia produtos tropicais e exportava para esta artigos manufaturados, obtendo, naturalmente, sempre uma balança de comércio favorável.

A expansão do poderio naval era essencial para garantir as comunicações marítimas entre as metrópoles européias e seus Impérios coloniais assim como para a redução do comércio em escala mundial. No século XV, Portugal exerceu a supremacia naval; no século XVI. esta passou à Espanha; no século seguinte, à Holanda; e. finalmente. no século XVIII a Inglaterra tornou-se a “rainha dos mares”.

A GUERRA de Independência EUA

Em 1774, os representantes da colônias (com exceção da Geórgia) organizaram o Primeiro Congresso Continental da Filadélfia, onde foi decidida a manutenção do boicote aos produtos ingleses e foi elaborada uma Declaração de Direitos e Agravos. Os colonos reivindicavam a revogação das "Leis Intoleráveis" e o direito de representação no Parlamento inglês, no entanto a Inglaterra manteve-se intransigente, não estando disposta a fazer concessões.

Na maioria das cidades formavam-se comitês pró independência que realizavam a propaganda do ideal emancipacionista e ao mesmo tempo foram responsáveis pelo armazenamento de armas e munições, julgando que o conflito seria inevitável

Em 1775 os ingleses atacaram Lexington e Concord. Os colonos organizaram um exército que seria comandado por George Washington, da Virgínia. Nesse mesmo ano reuniu-se o Segundo Congresso Continental da Filadélfia, de caráter separatista, que confirmou a necesidade de orgnização militar como meio de garantir os direitos dos colonos, confirmou G. Washington no comando das tropas e deu a Thomas Jefferson a liderança de uma comissão encarregada de redigir a Declaração de Independência.

A Declaração tem grande significado político não só porque formalizou a independência da s primeiras colônias na América, dando origem a primeira nação livre do continente, mas porque trás em seu bojo o ideal de liberdade e de direito individual, e a idéia de soberania popular, representando uma síntese da mentalidade democrática e liberal da época. No entanto, a pressão dos grandes proprietário rurais, importantes aliados na Guerra de Independência, determinou a manutenção da escravidão no país.

As tropas inglesas tentaram tomar os principais portos e vias fluviais, com o objetivo de isolar as colônias, enquanto que os colonos ao mesmo tempo que procuravam reforçar suas tropas, buscavam apoio externo: A França entrou na Guerra em 1778 e a Espanha no ano seguinte, em apoio as tropas coloniais, com o objetivo de enfraquecer a Inglaterra no cenário europeu e também de
recuperar as colônias que lhes haviam sido arrebatadas pelos ingleses.
Em 1781 as tropas coloniais e francesas derrotaram os ingleses na Batalha de Yorktown e em 1783 foi assinado o Tratado de Versalhes, segundo o qual a Inglaterra reconhecia a independência das treze colônias, agora Estados Unidos da América.



“ A existência de uma área de terras livres, sua contínua diminuição e o avanço da colonização em direção ao Oeste explicam o desenvolvimento americano” (TURNER, Frederick Jackson, A Fronteira na História Americana)

“A Guerra Civil Norte Americana (1861-1865) representou uma confissão de que o sistema político falhou, esgotou os seus recursos sem encontrar uma solução (para os conflitos políticos mais importantes entre as grandes regiões norte americanas, o Norte e o Sul). Foi uma prova de mesmo numa das democracias mais antigas, houve uma época em que somente uma guerra podia superar antagonismos políticos.”
(EISENBERG, Peter Louis. Guerra Civil Americana. S.Paulo, Brasiliense, 1982.)

“Em todos os sistemas sociais, é preciso haver uma classe para desempenhar as tarefas indignas, para fazer o que é monótomo e desagradável... nós a chamamos escravos. Somos antiquados ainda, aqui no sul; é uma palavra que os ouvidos educados não ouvem; não chamarei a classe existente no norte usando esse termo; mas vocês também os possuem; estão em toda parte; são eternos... A diferença entre nós é que os escravos são contratados pela vida toda, e são bem recompensados; não há fome, nem mendicancia, nem desemprego entre nós, e enm excesso de empregos, também. Os de vocês são empregados por diárias, não são bem tratados, e têm escassa recompensa, o que pode ser provado, da maneira mais deplorável, a qualquer hora, em qualquer rua de suas cidades. Ora, pois a gente encontrava mais mendigos em um dia, em uma só rua de Nova York, do que os que se encontram durante toda uma vida no sul inteiro. Nossos escravos são pretos, de uma raça inferior... os de vocês são brancos, de sua própria raça; são irmãos de um só sangue.”
(Discurso do senador Hammond, Carolina do Sul.in Huberman, Leo. Nós, o povo. Ed. Brasiliense. 1987)

“O produto da atividade humana é separado de seu produtor e açambarcado por uma minoria; a substância humana é absorvida pelas coisas produzidas, em lugar de pertencer ao homem”. Leo Huberman
 
“ Se alguém for visto falando com outra pessoa, assobiando ou cantando, será multado em 6 pence.” (Documentos Humanos da Revolução Industrial)


“ O tempo não me pertence; por isso, amanhã não poderei ir a sua casa. Mas, se você puder ir à Praça da Bolsa, entre duas e duas e meia, nós nos encontraremos como sombras miseráveis nas bordas do Inferno” ( Um marceneiro francês em 1848)

“ Pelo que sei do ofício, acredito que hoje um homem trabalha mais que antes. A oficina onde trabalho se assemelha em tudo a uma prisão – o silêncio é aqui aplicado tal qual numa prisão.” ( Um marceneiro inglês em 1848)

Era Napoleônica (Napoleão Bonaparte)
Os processos revolucionários provocaram certa tensão na França, de um lado estava a burguesia insatisfeita com os jacobinos, formados por monarquistas e revolucionários radicais, e do outro lado as monarquias européias, que temiam que os ideais revolucionários franceses se propagassem por seus reinos.

Foi derrubado na França, sob o comando de Napoleão, o governo do Diretório. Junto com a burguesia, Napoleão estableceu o consulado, primeira fase do seu governo. Este golpe ficou conhecido como 'Golpe 18 de Brumário' em 1799. O Golpe 18 de Brumário, marca o início de um novo período na história francesa, e conseqüentemente, da Europa: a Era Napoleônica, onde Napoleão consolidou a revolução burguesa na França, neutralizando monarquistas e jacobinos.

“Centenas de séculos decorrerão antes que as circunstâncias acumuladas sobre minha cabeça encontrem um outro na multidão para reproduzir o mesmo espetáculo” Napoleão Bonaparte.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

“Intolerancia- a violência do preconceito” Anita Novinsky

“Intolerancia- a violência do preconceito” Anita Novinsky



Em primeiro lugar eu queria agradecer a Miriam Halpern Goldstein o convite que me fez para eu vir dizer-lhes algumas palavras neste encontro sobre “Psicanálise e Educação: prevenção da Violência”, e parabenizo seus organizadores em se deterem em uma das questões das mais cruciais de nosso tempo: a educação e a violência. Aceitei este convite, apesar de não ser psicanalista, porque tenho profundos vínculos com a Psicanálise, pois durante meu curso de Filosofia, na Universidade de São Paulo, Psicanálise era matéria obrigatória durante quatro anos. E também porque Educação é um módulo prioritário no Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, o qual presido.

O que é importante hoje na área das Ciências Humanas é a interdisciplinaridade. Buscar na psicanálise respostas para determinados fenômenos sociais, como o racismo, a intolerância, o anatismo, me parece de extrema relevância. Talvez as teorias freudianas possam trazer alguma luz e ampliar os métodos tradicionais do historiador, quer se trate da “caça ás bruxas”, êxtases místicos, movimentos messiânicos, mitos nacionais ou práticas educacionais.

A psico história também tem colocado em evidência em evidência novas questões e nos oferece possibilidades para a interpretação da diversidade do comportamento humano. Não esqueçamos as palavras de Marc Bloch “fatos históricos são antes de tudo fatos psicológicos”.

O século XXI parece continuar a longa trajetória histórica marcada pela violência das Cruzadas, pelo extermínio do Novo Mundo, pelo genocídio dos armênios, o terror da Inquisição, o holocausto dos judeus.

A violência, planejada e organizada cientificamente mostrou que a modernização abriu uma nova possibilidade, uma nova aliança entre racionalidade e barbárie. Como escreveu George Steiner, um dos grandes críticos de nossa cultura, Professor da Universidade de Cambridge, o século XX foi o teatro de uma representação gloriosa de todo potencial da barbárie, contido na ciência moderna. O homem desumanizado foi uma criação do século XX. Bosh podia ter pintado o Apocalipse, mas nunca poderia ter imaginado as câmaras de gás.

É preciso conhecer os problemas chaves do mundo atual, para não cairmos, como diz Edgar Morin na “imbecilidade cognitiva”. Nesta era planetária em que vivemos é preciso situar todos os acontecimentos no contexto planetário. Conhecer o mundo é hoje uma necessidade vital do intelectual.

Gürgen Habermas e o saudoso Jacques Derrida, encontraram-se em Nova Yorque, para um debate sobre o sentido do 11 de setembro. E lembraram que o sistema político que estrutura a legislação internacional e as diversas instituições hoje, nasceu da herança da filosofia ocidental, fundada sobre a Ilustração. As soluções tradicionais se mostram insuficientes para resolverem problemas como o racismo, o preconceito e o anti-semitismo, cujo recrudescimento alcança hoje um nível mundial, e cujas conseqüências são imprevisíveis. Temos a responsabilidade de procurar entender o “significado” de 11 de setembro, como acontecimento, como influência sobre nossa compreensão do mundo e de nós mesmos. 11 de Setembro levou-nos a examinar os ideais da Ilustração e os valores que herdamos de nossa civilização ocidental.

Como escreveu Hannah Arendt nós não somos sós no mundo, não podemos nos reconciliar com a variedade do gênero humano e com as diferenças entre os homens, a não ser tomando consciência do fato de que “são os homens e não o homem que habitam a face da terra”.

A catástrofe durante a segunda guerra mundial, que abalou de maneira indelével a consciência dos homens da minha geração, levou a investigações novas. Após a Ilustração, após os gritos de igualdade e fraternidade, depois da independência das nações longamente subjugadas,, depois da renovação científica do século XX, e dos progressos da vida material, como explicar o extermínio de pacíficos cidadãos, donas de casa, adolescentes, bebês de colo, ciganos, homossexuais ou fisicamente defeituosos? Como foi que a tradição humanista européia foi incapaz de evitar o mal total? Como foi que a humanidade permaneceu silenciosa, enquanto um milhão e meio de crianças eram asfixiadas em câmaras de gás?

Os grandes estadistas aliados; Roosevelt, Churchil, e outros, lutaram para vencer a guerra e para não serem engolidos pela política nazista, mas não lutaram para evitar o massacre de milhões de criaturas humanas.

Estudos sociológicos e psicanalíticos têm procurado entender o “por que” dessa agressividade, que cremos, é em grande parte, fruto da educação. A segunda grande guerra levou a revisão de diversas teorias sobre as civilizações.

É preciso ver como se educa e como se cria uma criança. O essencial não é tanto o que se ensina a uma criança, mas como a “tratamos”. É esse tratamento que vai determinar que espécie de ser humano essa criança vai ser.

Para Theodor Adorno de nada vale nossa luta, para vencermos a guerra e a agressividade, se não modificarmos todo nosso sistema educacional. Para mudar o curso da história e evitar reincidências, devemos nos concentrar na educação. Em primeiro lugar, é a educação infantil que precisamos observar. E, em segundo lugar, esclarecer, fazer todos os cidadãos entenderem os motivos que levaram ao horror, que têm de se tornar conscientes. É necessário uma enorme força de reflexão e auto determinação para não participarmos da mentalidade dos algozes. Não podemos mais omitir-nos no confronto com o horror, que seria uma nova fonte de risco.

Durante séculos, o ódio ao diferente foi chamado de religião. O poder da religião legitimava a guerra e as perseguições. Com a modernidade, pensamos que as guerras de religião haviam declinado que eram coisa do passado. Mas, surpreendentemente, os conflitos de religião recrudesceram neste novo milênio.

Pensávamos também que a idade da razão seria a idade da tolerância. Mas, este sonho também fracassou. A razão não tomou o lugar de Deus. Novos credos, novas seitas e fanatismos estão revivendo e se espalhando por todas as regiões do planeta.

O mais sanguinário de todos os anatismos, talvez seja o nacionalismo. O “culto da nação”, foi o mais efetivo meio para mobilizar o ódio, no século XX, numa intensidade, que o mundo jamais conheceu. Mas, como escreveu Adorno, a barbárie subsistirá, enquanto as condições que a produziram, perdurarem. E vemos hoje nacionalismos chauvinistas serem incutidos nas novas gerações.

Há um fato que Adorno também considera aterrador: a estrutura básica da sociedade, as características da sociedade que induziram a Auschuwitz, são hoje, 60 anos depois, as mesmas. Podemos buscar as razões do genocídio desde o século XIX, na ressurreição do nacionalismo agressivo. Como lutar contra certas forças que estão inseridas na marcha da história?

É na educação que devemos colocar nossas maiores esperanças, sem contudo esquecer, que uma educação autoritária, repressiva, carente de afeto, pode levar as mesmas barbáries que a extrema ignorância.

Não esqueçamos ainda que, do país mais culto da Europa, a Alemanha, saiu o exemplo da mais total crueldade, jamais antes experimentada nas sociedades humanas. Adorno analisa os monstros nazistas que eram delinqüentes, mostrando que seu consciente era “coisificado”. Essa “consciência coisificada”, diz ainda Adorno, tem relação com a técnica. O mundo da tecnologia ocupa hoje uma posição chave e produz pessoas tecnológicas, afinadas com a tecnologia. Os meios são fetichizados, porque as verdadeiras finalidades são encobertas e arrancadas do consciente humano. O tipo de pessoas que tendem para a fetichização tecnológica, diz ainda o psicanalista, são pessoas incapazes de amar, pessoas essencialmente frias. O que sobrevive nelas são as cousas materiais. O amor é absorvido pelos objetos, pelas máquinas. Essa tendência está ligada a toda nossa civilização, e combate-la é difícil, pois significa opor-se ao espírito do mundo.

Todas as pessoas, hoje, sem exceção, sentem-se mal amadas, porque elas próprias não são capazes de amar suficientemente. Essa incapacidade de identificação, explica Adorno, é a principal condição psicológica para que Auschuwitz pudesse acontecer, no meio de uma coletividade relativamente “civilizada”. A falta que existe de amor é uma falta de todos nós, sem exceção. O cristianismo quis eliminar essa frieza, mas a experiência fracassou. Para combater essa frieza de que fala Adorno é preciso antes de tudo entender as condições que a causaram e depois, combate-la no plano individual.

Talvez, o calor humano, pensa Adorno, nunca tenha existido. Como psicanalista e filósofo, considera que uma ordem social digna do ser humano, só é possível se os impulsos humanos deixarem de ser reprimidos.

Para combater essa frieza, de que fala Adorno, é preciso antes de tudo, entender as condições que a causaram e depois, combate-la no plano individual.

Aí é que Adorno nos leva à criança. Quanto melhor forem tratadas as crianças, quanto menos for negado à criança, mais chances teremos de suprimir o mal.

É interessante um estudo feito por David Levy sobre os alemães que eram anti-nazistas. Levy encontrou a diferença entre os nazis e anti- nazis nas experiências da infância. Os alemães brutalizaram a educação. A criança recebe pouca atenção. Durante um jantar, crianças educadas não falam. A mãe raramente interfere quando a criança é punida pelo pai. A mensagem que a criança ouve constantemente é: esteja “limpa e obedeça”. As histórias que os alemães contavam às crianças eram sempre ligadas a pessoas brutais, pessoas queimadas com ferros, cozidas vivas. Muitas das atrocidades dessas histórias foram praticadas pelos nazistas contra os prisioneiros em campos de concentração. É também interessante comparar, que as histórias de fadas dinamarquesas e escandinavas são mais suaves, menos violentas. Será que podemos atribuir à essa atitude a resistência que apresentaram aos nazistas?

Nos estudos de David Levy, ao alemães que se voltaram contra os nazistas tiveram uma educação mais permissiva, menos arbitrária, em geral, mais humana. A punição corporal era mínima, ou ausente. Foi também feito um estudo sobre os alemães que ajudaram a salvar judeus durante o Holocausto. Não eram particularmente religiosos, nem políticos, e tiveram os mesmos contatos com judeus que outros alemães. E o resultado mostrou que havia mais comunicação e afeição entre pais e filhos. Quando perguntaram a um desses alemães por que arriscou sua vida para salvar judeus, ele respondeu que era “cousa decente que se devia fazer”.

Talvez, somente a psicanálise possa nos fazer entender a violência, e as conduções psico-históricas que tornaram possível um regime como o nazista. Filósofos e antropólogos se debruçam hoje sobre a psicanálise para poder entender e explicar determinados acontecimentos mundiais.

Terminada a segunda Guerra Mundial, historiadores perceberam que não podiam dar conta de entender o que se passou realmente, e a Segunda Guerra levou a uma revisão de diversas teorias sobre as civilizações. Uma dessas revisões passou pelos psicanalistas nas suas interpretações freudianas da sociedade.

Hitler lutou em duas guerras simultaneamente: a guerra contra os judeus e a luta contra os aliados. Parece que deu maior atenção emocional á guerra contra os judeus, do que a guerra de fora.isso sugere a discussão psicótica dessa problema, para o que nós não estávamos preparados, nem como psicanalistas, nem como judeus, nem como seres humanos. Nós acreditávamos na limitada expressão da agressão, enquanto que Hitler mostrou-nos que a agressão pode não ter limites.

Cientistas políticos, historiadores oferecem pontos de vista diferentes para explicar o Holocausto e as atrocidades bárbaras do século XX. Mas, levam em geral a ênfase a fatores intra-psíquicos.

Do ponto de vista da formação do desenvolvimento moral perguntamos como um mesmo indivíduo é capaz de gostar de poesia e choras quando ouve Mozart, como tantos alemães, e de outro lado, assassinar crianças sem reconhecer qualquer contradição na sua personalidade?

O psicanalista Martins Waugh escreveu em um artigo que todos os testes psicológicos mostraram que os mais altos oficiais e líderes nazis eram personalidades psicóticas. Mas ele pergunta quem lhe deu a liderança? Quem permitiu que o regime nazista vencesse? Há muitos Hitlers nas esquinas do mundo, então, por que alguns conseguem vencer e outros não? E Waugh responde: só se tornam líderes quando suas mensagens correspondem aos desejos, idéias e sentimentos adormecidos, ou vivos na multidão que o ouve.

Não há dúvida que a psicanálise contribui para a compreensão da barbárie nazi. Oferecem a moldura para entender as condições psico-históricas que formaram o regime, com seu programa destrutivo, possivelmente Hitler agradou psicologicamente a nação alemã. A psicanálise deve encontrar as pré condições psicológicas que contribuem para fazer um indivíduo vulnerável ou invulnerável à propaganda do genocídio. Nesse sentido, Adorno fez um trabalho extraordinário que publicou no seu livro Personalidade Autoritária.

Talvez, a mais importante influência que o Holocausto teve sobre a psicanálise foi apontar uma direção para o futuro.

Nós vivemos ante um problema crucial: a impotência de nossa civilização ocidental de resolver a questão da diversidade humana, o que nos obriga depois de 11 de Setembro a reexaminar as tradições do universalismo e as tensões que o mundo atravessa.

E como desafiar o novo século?

George Steiner repetiu bem, que nós não estamos preparados para o novo século. Quais os recursos que temos para vencer a insanidade que nos acena, o terrorismo, os fundamentalismos, o vendaval de violências? Não encontramos mais salvação nos sonhos messiânicos e os homens podem destruir o ambiente ecológico que permitiu o aparecimento da vida. O fanatismo religioso e os nacionalismos explodem em várias regiões e o mais perigoso, volta a ser ideologia de Estado.

O progresso técnico não levou ao progresso moral. Os sonhos da Ilustração falharam. A crueldade e a violência que presenciamos hoje excedem todo horror que os homens podiam imaginar.

George Steiner, em todos seus cursos formula sempre uma pergunta: por que os humanistas, no sentido mais largo da palavra, por que a razão, a ciência, a arte, a literatura não deram nenhuma proteção diante do desumano?

A experiência passada mostrou que a cultura não basta para garantir a paz e a compreensão entre os povos. As ideologias totalitárias foram primeiro pensadas por filósofos, antes de serem aplicadas por políticos. As armas mais mortíferas foram concebidas e elaboradas por técnicos formados e especializados, antes de serem utilizadas por militares. O gás Zitron B foi estudado por cientistas e fabricado em laboratórios, antes de ser usado para matar milhões de seres humanos.

E fica uma questão sem resposta.

Que arma eficaz possuímos para enfrentar as atrocidades que nos acenam? O saber como mostrou a Alemanha, o país mais culto da Europa não nos pode garantir que vamos vencer.

Se minha mensagem é pessimista, talvez tenha uma fagulha de esperança, que é a educação humanizada. E eu lembro as palavras de um aluno que escreveu ao seu professor: ler, escrever, aritmética são importantes somente se servirem para tornar nossas crianças mais humanas.

Dois pesos...Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo

Caríssimos.

 Reproduzo aqui o famoso texto que causou a demissão de Maria Rita Khel do Estadão.

Pra quem acha que vivemos numa sociedade de livre expressão ! hahahaha

Dois pesos...


02 de outubro de 2010

Maria Rita Kehl - O Estado de S.Paulo

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.





Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.



Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.



Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.



O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".



Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.



Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Islã cresce na periferia das cidades do Brasil

Islã cresce na periferia das cidades do Brasil
Revista Época 30/01/2009 12:32


Jovens negros tornam-se ativistas islâmicos como resposta à desigualdade racial. O que pensam e o que querem os muçulmanos do gueto

Eliane Brum



O ISLÃ NA LAJE

Carlos Soares Correia virou Honerê Al-Amin Oadq. Ele é um dos principais divulgadores muçulmanos do ABC paulista. Na foto, na periferia de São Bernardo do Campo, onde vive, reza e faz política

Cinco vezes ao dia, os olhos ultrapassam o concreto de ruas irregulares, carentes de esgoto e de cidadania, e buscam Meca, no outro lado do mundo. É longe e, para a maioria dos brasileiros, exótico. Para homens como Honerê, Malik e Sharif, é o mais perto que conseguiram chegar de si mesmos. Eles já foram Carlos, Paulo e Ridson. Converteram-se ao islã e forjaram uma nova identidade. São pobres, são negros e, agora, são muçulmanos. Quando buscam o coração islâmico do mundo com a mente, acreditam que o Alcorão é a resposta para o que definem como um projeto de extermínio da juventude afro-brasileira: nas mãos da polícia, na guerra do tráfico, na falta de acesso à educação e à saúde. Homens como eles têm divulgado o islã nas periferias do país, especialmente em São Paulo, como instrumento de transformação política. E preparam-se para levar a mensagem do profeta Maomé aos presos nas cadeias. Ao cravar a bandeira do islã no alto da laje, vislumbram um estado muçulmano no horizonte do Brasil. E, ao explicar sua escolha, repetem uma frase com o queixo contraído e o orgulho no olhar: “Um muçulmano só baixa a cabeça para Alá – e para mais ninguém”.

Honerê, da periferia de São Bernardo do Campo, converteu Malik, da periferia de Francisco Morato, que converteu Sharif, da periferia de Taboão, que vem convertendo outros tantos. É assim que o islã cresce no anel periférico da Grande São Paulo. Os novos muçulmanos não são numerosos, mas sua presença é forte e cada vez mais constante. Nos eventos culturais ou políticos dos guetos, há sempre algumas takiahs cobrindo a cabeça de filhos do islã cheios de atitude. Há brancos, mas a maioria é negra. “O islã não cresce de baciada, mas com qualidade e com pessoas que sabem o que estão fazendo”, diz o rapper Honerê Al-Amin Oadq, na carteira de identidade Carlos Soares Correia, de 31 anos. “Em cada quebrada, alguém me aborda: ‘Já ouvi falar de você e quero conhecer o islã’. É nossa postura que divulga a religião. O islã cresce pela consciência e pelo exemplo.”

Em São Paulo, estima-se em centenas o número de brasileiros convertidos nas periferias nos últimos anos. No país, chegariam aos milhares. O número total de muçulmanos no Brasil é confuso. Pelo censo de 2000, haveria pouco mais de 27 mil adeptos. Pelas entidades islâmicas, o número varia entre 700 mil e 3 milhões. A diferença é um abismo que torna a presença do islã no Brasil uma incógnita. A verdade é que, até esta década, não havia interesse em estender uma lupa sobre uma religião que despertava mais atenção em novelas como O clone que no noticiário.

O muçulmano Feres Fares, divulgador fervoroso do islamismo, tem viajado pelo Brasil para fazer um levantamento das mesquitas e mussalas (espécie de capela). Ele apresenta dados impressionantes. Nos últimos oito anos, o número de locais de oração teria quase quadruplicado no país: de 32, em 2000, para 127, em 2008. Surgiram mesquitas até mesmo em Estados do Norte, como Amapá, Amazonas e Roraima.

Autor do livro Os muçulmanos no Brasil, o xeque iraquiano Ishan Mohammad Ali Kalandar afirma que, depois do 11 de setembro, aumentou muito o número de conversões. “Os brasileiros tomaram conhecimento da religião”, diz. “E o islã sempre foi acolhido primeiro pelos mais pobres.”

Na interpretação de Ali Hussein El Zoghbi, diretor da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil e conselheiro da União Nacional das Entidades Islâmicas, três fatores são fundamentais para entender o fenômeno: o cruzamento de ícones do islamismo com personalidades importantes da história do movimento negro, o acesso a informações instantâneas garantido pela internet e a melhoria na estrutura das entidades brasileiras. “Os filhos dos árabes que chegaram ao Brasil no pós-guerra reuniram mais condições e conhecimento. Isso permitiu nos últimos anos o aumento do proselitismo e uma aproximação maior com a cultura brasileira”, afirma.

Eles trazem ao islã a atitude hip-hop e a formação política do movimento negro

A presença do islã na mídia desde a derrubada das torres gêmeas, reforçada pela invasão americana do Afeganistão e do Iraque, teria causado um duplo efeito. Por um lado, fortalecer a identidade muçulmana de descendentes de árabes afastados da religião, ao se sentir perseguidos e difamados. Por outro, atrair brasileiros sem ligações com o islamismo, mas com forte sentimento de marginalidade. Esse último fenômeno despertou a atenção da Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, que citou no Relatório de Liberdade Religiosa de 2008: “As conversões ao islamismo aumentaram recentemente entre os cidadãos não-árabes”.

Os jovens convertidos trazem ao islã a atitude do hip-hop e uma formação política forjada no movimento negro. Ao prostrar-se diante de Alá, acreditam voltar para casa depois de um longo exílio, pois as raízes do islã negro estão fincadas no Brasil escravocrata. E para aflorar no Brasil contemporâneo, percorreram um caminho intrincado. O novo islã negro foi influenciado pela luta dos direitos civis dos afro-americanos, nos anos 60 e, curiosamente, por Hollywood. Cruzou então com o hip-hop do metrô São Bento, em São Paulo, nos anos 80 e 90. E ganhou impulso no 11 de setembro de 2001.



ATIVISTAS

O grupo de Malik (à esq.) e Sharif sonha com um estado islâmico no Brasil, quer construir uma comunidade muçulmana na periferia e levar a religião aos presos nas cadeias

Para contar essa história é preciso voltar a 1835, em Salvador, na Bahia, onde a revolta dos malês, liderada por negros muçulmanos, foi a rebelião de escravos urbanos mais importante da história do país. Pouco citada nos livros escolares, depois de um largo hiato ela chegou às periferias pela rima do rap. Lá, uniu-se ao legado do ativista americano Malcolm X, assimilado pela versão do filme de Spike Lee, de 1992. E ao 11 de setembro, que irrompeu na TV, mas foi colado às teorias conspiratórias que se alastram na internet.

É esse o islã que chega para os mais novos convertidos. E com maior força em São Paulo, porque a capital paulista foi o berço duro do hip-hop no Brasil – movimento histórico de afirmação de identidade da juventude negra e pobre. A tentacular periferia paulista é, como dizem os poetas marginais, a “senzala moderna”. E cada novo convertido acredita ter dentro de si um pouco de malê. Não é à toa que Mano Brown, o mais importante rapper brasileiro, mesmo não sendo muçulmano, diz no rap “Mente de vilão”: No princípio eram trevas, Malcolm foi Lampião/Lâmpada para os pés/Negros de 2010/Fãs de Mumia Abu-Jamal, Osama, Saddam, Al-Qaeda, Talibã, Iraque, Vietnã/Contra os boys, contra o GOE, contra a Ku-Klux-Klan.

“Fico assustado com a linguagem desses rappers, mas não tem mais jeito. Alastrou. Depois que o fogo pega no mato, vai embora. O islã caiu na boca da periferia. E não sabemos o que vai acontecer. É tudo por conta de Alá”, diz Valter Gomes, de 62 anos. Ele parece mais encantado que temeroso. Nos anos 90, “advogou” diante das organizações do movimento negro do ABC paulista e dos guetos de São Paulo com grande veemência. Defendeu que a salvação para os afro-brasileiros era a religião anunciada por Maomé quase 15 séculos atrás: “Irmãos, vocês estão querendo lutar, mas não têm objetivo. Trago para vocês um objetivo e uma bandeira. O objetivo é o paraíso, a bandeira é o islã”.

Essas palavras encontraram material inflamável no coração de alguns rappers, que há muito procuravam um caminho que unisse Deus e ideologia. Enquanto o islamismo soou como religião étnica, trazida ao Brasil pelos imigrantes árabes a partir da segunda metade do século XIX, não houve identificação. Mas, quando o movimento negro, e depois o rap, difundiu a revolta dos malês como uma inflexão de altivez numa história marcada pela submissão, a religião passou a ser vista como raiz a ser resgatada. Os jovens muçulmanos dizem que não se convertem, mas se “revertem” – ou voltam a ser. Para eles, a palavra tem duplo significado: recuperar uma identidade sequestrada pela escravidão e pertencer a uma tradição da qual é possível ter orgulho.

As igrejas evangélicas neopentecostais, que surgiram e se multiplicaram a partir dos anos 80, com grande penetração nas periferias e cadeias, não tinham apelo para jovens negros em busca de identidade e sem vocação para rebanho. “Na igreja evangélica da minha mãe, me incomodava aquela história de Cristo perdoar tudo. Eu já tinha apanhado de polícia pra cacete. E sempre pensava em polícia, porque o tapa na cara é literal. Então, o dia em que tiver uma necessidade de conflito, vou ter de virar o outro lado da cara?”, diz Ridson Mariano da Paixão, de 25 anos. “Eu não estava nesse espírito passivo. Pelo Malcolm X, descobri que, no islã, temos o direito de nos defender. Deus repudia a violência e não permite o ataque, mas dá direito de defesa. Foi esse ponto fundamental que me pegou também quando eu vi pela TV o 11 de setembro e achei que o mundo ia acabar.”

Eles se inspiram em Malcolm X e acreditam que o 11 de setembro divulgou o islã entre os oprimidos

Ridson tornou-se Dugueto Sharif Al Shabazz em 2005. Seu nome é uma síntese histórica da trajetória do islã na periferia brasileira. Ridson, o nome que deixou, foi escolhido pelo pai, um negro que gostava de piadas racistas. Dugueto é o nome do rap, para marcar a origem do gueto. Sharif é o nome do personagem de um filme de gângsteres. Shabazz foi tirado do nome islâmico de Malcolm X.

Essa geração também não perdoa ao catolicismo sua omissão no período da escravidão africana. “Minha família é católica, mas comecei a investigar a história e descobri que a Igreja deu sustentação à escravidão. Diziam que os negros não tinham alma”, afirma Honerê. “Sem contar que Jesus era branco, os anjos eram brancos. E tudo o que era ruim era negro. Aí eu pensava: ‘Então tudo o que é ruim vem de mim?’. Isso parece pequeno, mas na cabeça de um adolescente maltrata, faz com que a gente se torne ruim, viva uma vida ruim. Então conheci o islã.”

Honerê tornou-se um dos principais divulgadores da religião no ABC paulista. Ele é dirigente do Movimento Negro Unificado (MNU) e funcionário do Centro de Divulgação do Islam para a América Latina (CDIAL). Para ele, como para a maioria dos muçulmanos negros, não faz a menor diferença que raça não exista como conceito biológico. Raça é um conceito cultural, que determinou todas as assimetrias socioeconômicas que determinaram sua vida e hoje representa um elemento fundamental na construção de sua identidade, inclusive a religiosa. Ele narra com clareza como Carlos Soares Correia transformou-se em Honerê Al Amin Oadq, em meados dos anos 90:

– Minha mãe era doméstica em casa de branco, muitas vezes foi chamada de “negra infeliz”. Eu percebia que, no sistema de saúde e a todo lugar que eu ia, só gente da minha cor passava por dificuldades. Eu mesmo já levei coronhada da polícia sem justificativa, já defendi mulher negra no metrô, porque branco bêbado achava que era prostituta. Não tem um negro neste país que não tenha uma história de discriminação para contar. Então fui em busca da minha história. Era o tempo em que o rap era música de preto para preto. E o rap me apresentou Malcolm X. Aos 14, 15 anos, ele se tornou a minha grande referência político-racial. Depois descobri a história dos malês. Eles estavam num nível diferente se comparar com os outros negros da senzala. Não bebiam, não fumavam, sabiam escrever, eram instruídos. Se tivessem conseguido tomar a Bahia naquele 25 de janeiro de 1835, teriam o país em suas mãos, e o Brasil seria um estado islâmico.



QUILOMBO

Em São Paulo, a Mesquita Bilal Al Habashi reúne 150 africanos e brasileiros nas orações da sexta-feira, principal dia islâmico

A revolta dos malês (muçulmanos, na língua iorubá) abalou não apenas o Brasil, mas repercutiu na comunidade internacional. Jornais de Londres, Boston e Nova York publicaram notícias sobre o levante. Aumentou o tom da crítica à escravidão.Setenta rebelados morreram. Mais de 500 foram punidos com prisão, pena de morte e deportação para a África. Segundo o historiador João José Reis, em seu livro Rebelião escrava no Brasil (Companhia das Letras), numa comparação com a população atual de Salvador, isso equivaleria hoje a cerca de 24 mil negros castigados.

A força do levante dos malês inspira os novos muçulmanos do gueto. Muitos sonham com um estado islâmico no Brasil – “ainda que seja um estado dentro do Estado”. “Acredito que daqui a dez, 15 anos, isso será possível. Há uma geração tentando fazer isso de forma organizada. O povo brasileiro é religioso. Quando percebeu erros na Igreja Católica, tornou-se evangélico. O islã hoje ainda é pequeno, mas isso pode mudar”, afirma o ex-católico Paulo Sérgio dos Santos, de 33 anos, assessor parlamentar da Câmara de Vereadores de Francisco Morato. Desde a virada do milênio, ele se tornou Abdullah Malik Shabbazz. “É óbvio que não vamos para um confronto armado. Esse caminho terá de vir pela consciência.”

No processo de construção da identidade, os novos convertidos trocaram perguntas e lacunas por certezas. A história é resgatada naquilo que serve a uma afirmação positiva – e as contradições, quando existem, pertencem ao outro. Esses jovens não querem tataravós como Pai Tomás, o escravo humilde do romance de Harriet Beecher Stowe, um marco na abolição da escravatura nos Estados Unidos. Preferem um antepassado como Ahuna, homem-chave na rebelião dos malês. E, sensíveis aos ecos da América negra, desejam eles mesmos ser não o pacifista Martin Luther King, mas o controvertido, belicoso e muçulmano Malcolm X, cuja trajetória de desamparo, violência, prisão e, finalmente, superação é semelhante à de muitos deles. E cujo X – símbolo da identidade arrancada pela escravidão – foi preenchido com um nome islâmico. Embora afirmem que a conversão seja um resgate da tradição, não deixam de exercer o ideal moderno de criar a própria identidade, até com a liberdade de inventar um novo nome que dê conta apenas de seus desejos – e não mais do de seus pais. Agora, eles são filhos do islã. E não mais – ou não apenas – de pais humilhados.

Antes de adotar um nome muçulmano, Honerê foi um dos fundadores de uma das mais antigas posses de hip-hop em atividade, a Haussa, hoje com 15 anos de existência. As posses são grupos que reúnem pessoas com afinidades culturais e políticas para realizar metas comuns. Na história, os africanos haussás lideraram rebeliões escravas na Bahia no início do século XIX. Muçulmanos, eles vinham do que hoje é o norte da Nigéria e de uma guerra santa que forneceu muitos cativos para o tráfico negreiro. No Brasil, é provável que haussás de ambos os lados do conflito tenham se unido contra os brancos. Dois séculos depois, Haussa é uma frente só de negros, com 40 integrantes, no ABC paulista. O nome foi escolhido “porque os haussás não se deixavam domar, tinham convicções e só eram submissos a Deus”.

Os haussás de hoje estavam entre os grupos que escutaram a preleção de Valter Gomes. Alguns, como Honerê, se converteram ao islã. “Descobrir minha história foi como ter passado a vida olhando para baixo, com a sensação de que todo mundo está te julgando e, de repente, passar a andar olhando as pessoas no olho, sem medo”, diz ele.

Os muçulmanos compartilham a certeza de que, quanto mais difamam o islã, mais ele se fortalece. O anúncio do Vaticano, em 2008, de que o islamismo superou pela primeira vez o catolicismo no mundo em número de adeptos para eles é uma prova de que, ao forjar a ligação da religião, como um todo, ao terrorismo fundamentalista, as conversões se multiplicaram, em vez de encolher. Essa face perseguida, vilipendiada e dura tornou-se um ponto de identificação.

Nas telas de TV, o 11 de setembro tornou o islã popular nas periferias do planeta, que vê nos Estados Unidos o símbolo de todas as opressões. No Brasil, o fenômeno se repetiu. “Para nós, aquilo foi coisa do próprio governo americano, para ter desculpa de invadir países muçulmanos. Mas o 11 de setembro ajudou pra caramba na divulgação”, diz o rapper Leandro Arruda, de 33 anos. “Todo mundo queria saber o que era o islã. Não que o Bin Laden seja um herói , mas a gente que vem do gueto tem certa rebeldia contra o governo opressor.”

Rapper e ex-presidiário, Leandro está entre os que se interessaram pela religião ao ver a realidade imitar o cinema-catástrofe de Hollywood. “Percebi que existe um povo com uma postura diferente na Palestina, no Iraque, no Afeganistão. Comecei a procurar informação, encontrei o Malik e acabei me revertendo”, diz. “Eu e minha esposa queremos estudar para divulgar o islã. Porque ninguém melhor do que a gente, que sobe o morro, tem acesso à periferia e conhece a massa, para falar a eles. Porque, se chegar um cara lá vestido de árabe, os ‘negos’ vão dar risada.” Leandro desenvolve há um ano, numa favela da Zona Leste de São Paulo, o projeto Istambul Futebol e Educação, com 25 garotos em situação de risco. Os recursos vêm de um ativista islâmico da periferia paulista que hoje estuda na Síria.

A atuação social responde ao projeto político, que vê no islã uma reação às estatísticas da violência. “Não temos problemas com outras cores e raças. Não nos organizamos por racismo. Só queremos que os afro-descendentes parem de morrer aos 20 anos. Quem morre jovem no Brasil são os que não conhecem suas origens nem tiveram acesso ao conhecimento. É um genocídio da população periférica que vem desde a senzala”, diz Malik. “Desde que me tornei muçulmano, não bebo, não fumo, meus filhos têm pai e mãe, educação e uma vida regrada. O islã nos dá instrumentos para combater problemas sociais que fazem com que sejamos a maioria e tenhamos menos que todos os outros.”





ARAUTO

Valter Gomes foi um dos principais divulgadores do islã no movimento negro. Na foto, ele ora num abatedouro halal, que segue os preceitos islâmicos

Malik é o presidente do Núcleo de Desenvolvimento Islâmico Brasileiro (NDIB), a organização mais combativa do novo islã negro. O vice-presidente faz formação no Paquistão desde o ano passado. Pequeno, o NDIB tem apenas oito integrantes, entre eles Sharif e Leandro. Mas foi capaz de promover, no fim de 2007, um encontro entre o americano Fred Hampton Jr., o rapper Mano Brown e lideranças do movimento negro e de jovens muçulmanos, em São Paulo. Fred Hampton Jr. é o filho do líder dos Panteras Negras – organização criada nos anos 60, nos Estados Unidos, que defendia teses como o pagamento de compensação aos negros pela escravidão e o armamento daqueles que se sentissem ameaçados pela força policial.

Ativista como o pai, Hampton Jr. passou quase nove anos preso e fundou na cadeia o Prisoners of Conscience Committee (POCC), em português Comitê dos Prisioneiros de Consciência. Nem o POCC nem Hampton Jr. se apresentam como muçulmanos. Mas a organização tem islâmicos na coordenação, com quem o NDIB mantém boas relações. O POCC defende que todos os detentos são prisioneiros políticos, porque a desigualdade racial não lhes deu escolha. As prisões seriam, para eles, um dos passos do extermínio planejado da população negra.

Numa parceria com o Conselho Nacional de Negros e Negras Cristãos, o NDIB levou Hampton Jr. a um encontro com a comunidade afro-brasileira em Salvador, na Bahia. Suas teses têm pontos de conexão com a campanha “Reaja ou será morto, reaja ou será morta”, concebida por organizações sociais baianas, que denuncia aquilo que consideram ser o “genocídio da juventude negra brasileira pela violência do aparato repressivo do Estado” e prega “a defesa por todos os meios necessários”.

Hampton Jr., que também conheceu os morros do Rio de Janeiro, anunciou uma conexão entre o Brasil e os Estados Unidos. “O manifesto antiterrorista não deve observar nenhuma fronteira colonial. Precisamos combater todas as formas de terrorismo que nos são impostas: o crack, a falta de políticas públicas, a aids e o ataque policial. O povo negro é a vítima preferencial”, diz. Em Salvador, ele concluiu com uma analogia: “Para nós, do POCC, cada dia é como se fosse 11 de setembro. O que os brancos sofreram com o ataque terrorista, nós, negros, sofremos todo dia”. Em São Paulo, Hampton Jr. e Mano Brown cerraram os punhos. E foram aclamados.

O principal articulador da vinda de Hampton Jr. foi Sharif, que mantém contatos com muçulmanos dos guetos da França, do Canadá e dos Estados Unidos. Rapper, ele trabalha com a educação de crianças e faz parte do movimento de literatura periférica. Aos 25 anos, tem um texto contundente, com forte denúncia da desigualdade racial. Descendente de africanos e italianos, tem olhos verdes e pele clara, mas não tem dúvidas de que é negro. “Dizem que não existe raça e somos todos brasileiros, mas qual é a cor que predomina nas cadeias, na Febem e nas favelas? Negros”, afirma. “Não queremos vingança, só nosso lugar numa sociedade que ajudamos a construir. O islã não tem cor, é para todos. Mas somos negros numa sociedade racista. Então temos problemas à parte para resolver e nos posicionamos.”

Os ativistas do NDIB acreditam que o islamismo pode ser uma alternativa à conversão evangélica, maciça nas prisões brasileiras. Para seu projeto político-religioso, entrar nas cadeias é estratégico, e o POCC, de Hampton Jr., é um parceiro importante. “Os presos têm virado crentes por falta de opção, porque a última escolha do presidiário é virar evangélico”, afirma Leandro. “O islã é construção de conhecimento. Queremos trabalhar levando essa consciência, construindo a história de cada um e mostrando que, independentemente do crime que cometeram, eles são presos políticos”, diz Sharif.

Em 2009, o núcleo islâmico quer iniciar a construção de Nova Medina, uma comunidade muçulmana capaz de acolher os convertidos de vários pontos da periferia paulista. “Hoje estamos espalhados, e isso dificulta a organização”, diz Malik. “Sonhamos com um bairro muçulmano onde não existam bares com bebidas alcoólicas nas esquinas, os açougues não vendam carne de porco, nossas crianças possam estudar em escolas islâmicas e nossas mulheres não sejam chamadas de mulher-bomba.” Para isso, pensam em adquirir um pedaço de terra e fazer um loteamento. Alguns já se mudaram para a periferia de Francisco Morato, um dos municípios mais pobres da Grande São Paulo. Medina, até agora o nome mais provável, está na origem do islamismo: é a cidade da Arábia Saudita para onde o profeta Maomé migrou para escapar das perseguições que sofria em Meca. A migração marca o início do calendário islâmico.

Eles planejam converter os presos e construir uma comunidade muçulmana na periferia paulista

Diante de expressões de incredulidade, eles dão um sorriso malicioso: “Se, há dez anos, eu dissesse a você que um negro seria o presidente dos Estados Unidos, você acreditaria?”. Ou, como diz Valter Gomes: “Eu vi Martin Luther King morrer. E posso dizer que é uma revolução muito rápida. Um torneiro mecânico é presidente do Brasil, um índio é presidente da Bolívia e um negão com nome muçulmano é presidente do país mais poderoso do mundo. Ou é o fim do mundo ou é o começo de alguma coisa...”.

No islã dos manos, o rap é o instrumento e a linguagem de divulgação da religião. “Muita gente ainda vai vir para o islã pelo rap. Nós ganhamos consciência pelo hip-hop, então não podemos negar nossa história. As pessoas na periferia veem aquela negrada fazendo rima e poesia, percebem sua atitude diferenciada, sua postura na vida, e querem se aproximar. Isso é o começo da reversão”, diz Honerê. “É um passo depois do outro.”

Com uma takiah verde-amarela na cabeça – símbolo de sua condição de muçulmano brasileiro que não aceita mudar de nome –, Valter Gomes entrega tudo nas mãos de Alá. Tem os olhos úmidos quando afirma: “Alá diz no Alcorão que para cada povo há um profeta que fala a sua língua. Então, quem sabe não aparece um negrinho cheio de ginga e de rima na periferia?”.





LUVAS E ALCORÃO

Muhammad Al Mesquita, ex-campeão mundial de boxe, converte na academia

O boxeador de Alá

Na Paraíba, ex-campeão mundial tem uma mussala na academia

Cinco vezes ao dia, toda atividade cessa na Academia Mesquita Brothers, um dos principais centros de treinamento de boxe em João Pessoa, na Paraíba. Os sacos de areia deixam de ser esmurrados sem parar. No ringue, os lutadores baixam a guarda. Produz-se, então, uma cena impressionante. Tapetes são rapidamente estendidos, e os boxeadores, liderados por Muhammad Al Mesquita, se prostram em direção a Meca. Brasileiros, recitam versos do Alcorão em árabe. Depois, voltam a bater com força e ainda mais inspiração.

Muhammad era Francisco Mesquita, ex-campeão mundial de boxe na categoria superleve. Carioca, converteu-se ao islã em Nova York, nos anos 90. Compartilha com Muhammad Ali o boxe e a religião. “Mas não me converti por causa dele. Um amigo me convidou para ir a uma mesquita. Lá o xeque falou de Deus como eu nunca tinha ouvido”, diz. “Tocou meu coração.”

O boxeador de Alá se esquiva de questões políticas como se fossem jabs. Confessa que sonha em transformar o Nordeste no “celeiro do islamismo”, com pelo menos uma mesquita e um xeque em cada capital. “Todos precisam saber que existe essa opção de fé, que responde a questões que outras religiões não respondem. É preciso mostrar o caminho da verdade. Aí cada um decide se quer trilhá-lo”, diz. Ele já mostrou o “caminho” a 17 jovens boxeadores.

Marco Bahé





VELHA-GUARDA

Seu Malma é um dos pioneiros do islã afro-brasileiro

A mesquita dos negros

No centro de São Paulo, uma África islâmica

A Mesquita Bilal Al Habashi é um daqueles lugares que fazem de São Paulo uma cidade fascinante, apesar do trânsito e da poluição. No 9o andar do Edifício Esther, exemplar modernista do centro, estudado nas escolas de arquitetura, a mesquita acolhe imigrantes da África e brasileiros de origem africana para as cinco orações do dia. Instalada no apartamento que foi do pintor Di Cavalcanti, ela evoca uma intrigante algaravia: inglês, francês, português e dialetos tribais. As vozes só silenciam para ouvir o xeque recitar o Alcorão – em árabe. Enquanto os muçulmanos rezam, o edifício repete uma rotina caleidoscópica. Na cobertura, vive o padeiro com sotaque francês Olivier Anquier. No subsolo, um cabaré exercita outras línguas. No histórico Edifício Esther, a Bilal al Habashi tem essa sina. Cultiva o espírito, espremida entre o pão e a carne.

Inaugurada em 2005, a mesquita tem um nome simbólico. Bilal foi um escravo abissínio torturado pelo dono para renunciar à religião. Resistiu e tornou-se o primeiro muezim do islã, encarregado de chamar os fiéis para as orações. Bilal era também o nome de um dos líderes da revolta dos malês. Assim, é um símbolo de resistência tanto para africanos no Brasil como para brasileiros com raízes na África.

O presidente da mesquita é também uma instituição. Muhammad Ali, como o famoso boxeador, foi um dos primeiros muçulmanos sem ascendência árabe em São Paulo. Aos 17 anos, chamava-se Jair Maceió quando ouviu pela primeira vez o nome do islã junto ao Viaduto do Chá, ponto de encontro dos negros paulistanos. Jair vivia a orfandade com os pais vivos. Sem recursos para criá-lo, eles entregaram-no ao Estado. O sobrenome, Maceió, como é comum entre descendentes de escravos, indicava a terra onde o avô fora cativo. Desenraizado, a luta pelos direitos civis dos negros americanos, nos anos 60, retumbou dentro dele. Quando o boxeador Muhammad Ali se recusou a lutar no Vietnã, dizendo que aquela não era uma guerra dele, Jair acreditou ter agarrado a ponta de uma raiz comum. Parou de dançar, seu “único vício”, e tornou-se Muhammad Ali Numairi. Com esse nome, fundou a Mesquita Muçulmana Afro-Brasileira, em 1974, ao lado de Joel Azor da Silva e Abdullah Menelik Omar. O objetivo “era arrumar a sociedade negra e impedir a dissolução da família afro-brasileira pela bebida e pela droga”.

Aos 58 anos, Seu Malma, como é conhecido, diz que o islã é para todos. Sua mesquita virou bússola para os perdidos africanos, a maioria clandestinos no Brasil. Eles dividem o espaço com “o pessoal do rap”, que tem dado dor de cabeça a Seu Malma. “Música é proibido no islã. E gueto só serve à classe dominante, que quer mantê-los lá”, diz. “Mas eles acham que o rap é importante para divulgar o islã na periferia e que eu sou da velha-guarda.” Com a “jovem guarda do islã”, Seu Malma compartilha a utopia: “Quero fazer do Brasil um país muçulmano”.





DO RIO GRANDE PARA MECA

Muhammad (de camisa listrada) é líder religioso de uma das mais organizadas comunidades do interior do país

Muhammad foi ao cinema e se converteu

Hoje, ele prepara “a base de um levante cultural”, com migrantes nordestinos e gaúchos sem-terra, em Passo Fundo

Nivaldo Florentino de Lucena recebeu a dica de um amigo: “Tem um filme com a história de um negão que é da hora!”. O “negão” era Malcolm X. O filme era a biografia do ativista americano, dirigida por Spike Lee. Numa sessão lotada de rappers, Nivaldo, da Zona Leste de São Paulo, concluiu que o negão era da hora mesmo. Filho de uma mãe que, no censo do IBGE, se declarava “branca” e de um pai que se anunciava “pardo”, ele pertencia à geração que tinha certeza de que eram todos “negros”. Saiu do cinema decidido a encontrar uma mesquita. Era 1992. Muhammad trocou a bebida, as drogas e os pequenos crimes pelo Alcorão. Anos mais tarde, se formou em teologia islâmica na Líbia. Em 2002, desembarcou na gaúcha Passo Fundo, cidade de colonização europeia, onde loiras naturais são tão corriqueiras como o chimarrão. Tinha duas metas sob a takiah muçulmana: assumir um posto numa multinacional de frangos halal (abatidos segundo a prescrição islâmica) e divulgar o islã.

Quando Muhammad Lucena chegou, havia três famílias muçulmanas de origem árabe. Hoje, ele conta mais de 40, a maioria composta de trabalhadores da empresa. Muhammad se tornou o imã, líder religioso, de uma comunidade com um perfil inédito: migrantes nordestinos que chegaram ao sul como mascates e gaúchos que trocaram a zona rural pela periferia da cidade. No caso de Passo Fundo, o islã disputa, no campo religioso, com a Igreja Católica e com as neopentecostais evangélicas. No campo político, com o MST. “Sempre fui peão e, como negro, fui vítima de muito preconceito aqui no Rio Grande”, diz Valdivino Bueno da Silva. “Tinha intenção de virar sem-terra, como o meu irmão, mas acabei ficando por aqui e me convertendo.” Em 2005, aos 24 anos, ele conseguiu vencer o alcoolismo e virou Abdallah.

Tornou-se “irmão” no islã de João Paulo Silva, que deixou o sertão do Ceará para vender artigos de cama e mesa pelas ruas de Passo Fundo. “Gaúcho chama todos os nordestinos de baiano”, diz. “Era uma vida sofrida.” Aos 20 anos, mudou de sina, adotou o nome de Jaber e virou um obstinado divulgador do islã. Converteu a mulher, irmã de um pastor da cidade. E também os sogros, que abandonaram a crença evangélica e vieram do interior do Paraná para ficar perto da comunidade islâmica de Passo Fundo, em franca expansão. Ela já tem um cemitério e o terreno da futura mesquita, doado pelo governo do Kuwait.

Muhammad, de 33 anos, casado com uma branca e pai de cinco filhos, defende um islã para todas as cores e raças. Na Líbia, conheceu Louis Farrakhan, mas não simpatiza com as “ideias radicais” do líder da Nação do Islã. Ele crê, porém, que o Brasil vive “uma nova revolução islâmica”. “Há focos do islã borbulhando em toda parte. Existem hoje brasileiros estudando na África, na Ásia e no Brasil para fazer a inserção de muçulmanos em órgãos-chave”, diz. “Já temos a base pronta, com os mais pobres. Só nos falta um líder para ter um levante. Não armado, mas cultural.”





CAMINHOS DO ISLÃ

Brasileiras sem ascendência árabe, Latifa, Samira e Andréia vivem na comunidade muçulmana da gaúcha Passo Fundo... e Luana, Elisângela e Dona Ilma, que cruzam o Viaduto Santa Ifigênia, no centro da capital paulista, são militantes da religião na Grande São Paulo

Por trás do véu, um novo perfil de mulher islâmica

Chamadas de “mulher-bomba” nos ônibus metropolitanos, elas começam a alterar o cenário urbano

Ela é “Dona” Ilma. E tão dona que o dela merece maiúscula e já se integrou ao nome. Não por acaso, é a que lidera a fila na foto. Como ela mesma diz, abriu seu espaço com “punhos e conhecimento”. Ilma Maria Vieira Kanauna é uma das pioneiras no movimento islâmico afro-brasileiro, em São Paulo. Aos 53 anos, convertida há mais de duas décadas, é tratada com um temor respeitoso, porque Dona Ilma é mulher braba. Nada mais distante dela que o estereótipo da mulher árabe submissa, sempre dentro de casa, que resiste no imaginário ocidental como a realidade única da mulher no islã. Sua cartilha é a das malês, mulheres ativas no levante escravo de 1835. “A América foi edificada sobre os ombros dos homens negros e o ventre das mulheres negras”, diz com solenidade. “E o islã é o espelho em que eu me vi refletida.”

Dona Ilma é filha de uma “tradicional família negra”, de origem matriarcal. Até os 6 anos, se criou numa área de quilombo, em Minas Gerais. Lembra a avó e a mãe sempre vestidas de preto, rezando com a janela aberta e mandando nos homens e no curso da vida. Quando a mãe morreu de parto, o pai se mudou, e ela ainda hoje diverte-se com a memória dos primeiros brancos que surgiram no seu campo de visão. “Eu e meu irmão achávamos que eram lobisomens”, diz. “Nos chamavam pra brincar, e a gente se escondia achando que iam nos comer.”

Algumas aventuras mais tarde, porque a vida de Dona Ilma dá mesmo um romance, acabou filha adotiva de uma família de descendentes de alemães, com quem ainda hoje vive e se entende bem. Primeiro tornou-se comunista, depois muçulmana. É educadora por vocação e, por convicção, só trabalha em escolas de periferia. Compara o 11 de setembro a “uma mulher que passa a vida apanhando e um dia dá 11 tiros no marido”. E acredita que a violência no Brasil, da qual já foi vítima, é a forma de as minorias sem identidade e futuro pedirem socorro. “Nossas crianças estão perdidas, escrevendo Joaquim com ‘n’ e não se reconhecendo em espelho algum”, diz.

A testa lisa de Dona Ilma só é contraída por uma ruga quando fala sobre a nova geração de muçulmanos. “O islã sempre trouxe cidadania para as minorias. E as periferias são as senzalas de hoje. Mas as novas gerações têm muito punho ainda, tenho medo que acabem sendo segregacionistas”, afirma. “Não precisamos mais de um discurso de raça, precisamos de cidadania. Acredito, porém, que é um ritual de passagem. Quando me converti, também era muito radical. Vamos deixar eles gritarem um pouco.”

Na foto, ela é seguida por Elisângela Résio, de 31 anos, e Luana de Assis, de 28. Há quatro, Luana trocou a vida de “balada de segunda a segunda” e um figurino hip-hop para se tornar muçulmana. Elisângela se converteu em maio, no dia em que casou com o rapper Leandro Arruda, que conheceu num show dos Racionais MC’s. Até pouco tempo, um início de romance inusitado para uma muçulmana. “O que você acha de Jesus?”, ele perguntou. Tudo começou a dar certo quando ela disse que Jesus era um profeta – e não o filho de Deus.

Como qualquer trabalhadora, elas pegam ônibus e trens lotados de segunda a sexta- -feira, da Grande São Paulo para a capital, e vice-versa. Nas ruas, já se habituaram a ser chamadas de “mulher-bomba” ou “prima do Bin Laden”. “O povo não está acostumado a ver muçulmanas sacolejando em ônibus e trens como qualquer mulher que precisa trabalhar”, diz Luana. “Confundem religião com cultura, acham que todo muçulmano é árabe e toda muçulmana só fica em casa.”

Fiel às rimas de sua geração, Elisângela dá um conteúdo político próprio à indumentária islâmica. “A mídia impõe que brasileira tem de andar de minissaia ou shortinho, meio pelada. É a imposição de um estereótipo que as mulheres seguem desde criança sem nem se dar conta”, diz. “Por que minha roupa de muçulmana chama a atenção dentro do trem e a menina seminua não?” A própria Elisângela responde: “ Porque estou fora dos padrões que a mídia impõe, tenho identidade própria, fiz minha escolha”.

Elisângela afirma que conseguiu até parar de fumar. Só demorou a aceitar que o marido possa ter outras mulheres – “direito” pouco exercido no Brasil, que pune a bigamia no Código Penal. Depois de embates internos, ela capitulou. “É um direito dele. Quem sou eu para discordar do Alcorão? ”, diz. “Prefiro que tenha uma segunda mulher do que me traia. O homem tem necessidades.”

Essa mesma mulher traz na cabeceira O capital, de Karl Marx, e diz admirar Che Guevara com fervor revolucionário.

::: Esta reportagem é a vencedora do Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha de Imprensa, divulgado no dia 28 de janeiro de 2010.