quarta-feira, 7 de maio de 2014

A ditadura e o ‘jeitinho brasileiro’, segundo Maria Rita Kehl POR MORRIS KACHANI Para Kehl, ditadura deu vazão a sadismo que as pessoas não se autorizam Cinquenta anos depois do golpe, como a sociedade brasileira lida com a memória deste período? Como funciona o subterrâneo psíquico de quem nela atuou, seja como agente repressor ou na luta armada? Qual seria o saldo do inconsciente coletivo? A psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade, recebeu a reportagem em seu consultório no bairro de Perdizes, em São Paulo, para uma conversa que teve o tempo de duração de uma sessão de análise – 40 minutos. Kehl foi editora do jornal Movimento, um dos mais importantes veículos da imprensa alternativa durante a ditadura. Atende pacientes desde 81, é autora de oito livros, e venceu o prêmio Jabuti de 2010 com “O tempo e o cão”. Como lidamos com a memória do período da ditadura? Muito mal. A ditadura espalhou uma ideia que até hoje funciona na cabeça dos desinformados, de que era preciso “pôr ordem na bagunça”, ou “acabar com a corrupção”, e de que se houve alguma violência, ela foi pouca e necessária. Então até hoje, para muitos, o golpe está associado a isso, embora a corrupção não tenha acabado, pelo contrário. E nem a ‘bagunça’. Agora temos os protestos e o governo Dilma, que é inábil. Não digo que não seja uma boa governante mas não tem habilidade para deixar todo mundo contente, como o Lula. Voltando à ditadura, há quem se recuse a se referir a ela como tal e afirme que a tortura inexistiu. O autor judeu italiano Primo Levi, que sobreviveu aos campos de concentração na Segunda Guerra, escreveu que seu maior pesadelo era imaginar que ao contar sua história as pessoas não iriam acreditar. E é isso que acontece. Elas estão tão reprimidas no seu imaginário que não têm coragem de fantasiar situações desta natureza. Existe algo de tipicamente brasileiro nesta relação? O ponto central é a Lei da Anistia, especificamente no tópico que determina que ninguém seja julgado. Isso cria uma equivalência entre os que arriscaram a própria vida com os que exerceram a tirania. Existe um ‘jeitinho brasileiro’ na maneira como esse pacto foi costurado e na rápida reacomodação da sociedade, com ninguém tendo sido punido. Arnaldo Jabor fala sobre isso em “Tudo Bem”. E é o que Sérgio Buarque de Holanda chama de ‘homem cordial’. Este homem pode ser brutal no trato com empregados por exemplo, mas depois deixa barato pra dizer que ‘todo mundo se ama’. E assim a dominância de classes se perpetua. Após a escravidão houve também uma reacomodação rápida da sociedade, não? Sim, e a um preço horroroso, com hordas de escravos tendo sido jogados na rua. Nos Estados Unidos foi diferente, cada um ganhou um palmo de terra para trabalhar. Foi por isso que o cineasta Spike Lee chamou sua produtora de 40 Acres and a Mule. Em alguns países a revisão da ditadura é tratada de forma diferente. Veja o caso da Argentina. É claro que muito mais gente morreu por lá, mas isso não é parâmetro. O fato é que até os presidentes foram julgados e encarcerados. Como uma pessoa comum se torna torturadora? Instaurou-se um regime político autoritário sem uma oposição consentida. Só aí já temos uma ditadura. E se criou um mecanismo semi-secreto de abusos cuja prática dependia dos traços pessoais de cada agente do Estado. Assim a tortura se institucionaliza, mas nunca no papel. Não foi um desvio patológico. Virou um mecanismo de controle e repressão. Diria até que com a tortura o principal objetivo era criar um clima de terror. Só a intimidação não basta, é preciso mostrar que o regime também é capaz de matar. E a tortura enquanto método de investigação? Fica claro que a tortura não era utilizada para obter informação. Não é um mecanismo científico. Em geral tem uma hora que o torturado diz qualquer coisa, diante de tanto horror. Como funciona a estrutura psíquica do torturador? Ele sabe que está fazendo algo que não pode, tanto que até hoje pouca gente admite que a praticou. Raros são os depoimentos como o do coronel Paulo Malhães, em que assume que torturou, matou e ocultou cadáveres. O torturador sabe que se trata de um ato de exceção, escondido – mas o pratica porque está podendo. Tem um jogo sádico aí. Isso não quer dizer que todo torturador é um perverso em sua estrutura psíquica. É o que, então? Dizia Lacan que o superego não é uma instância ética. Seu funcionamento é muito paradoxal. No sentido de que o superego não é apenas um interditor, ele também nos encoraja a buscar o caminho mais fácil para exercer o narcisismo infantil. É como se ele estivesse dizendo: “você não pode gozar mas tem que continuar tentando”. E se tem um Estado falando “goza, meu filho” para um Sebastião Curió, para um Calhandra, para um Luis Maciel, deu no que deu. Em outras palavras, a prerrogativa para ficar fora da lei é permanente, mas desde que seja sem um sentimento de culpa. Esse é um traço do neurótico. E se o Estado o autoriza, o perigo é imenso. Isso explica como os alemães abraçaram o nazismo. O povo alemão não ficou perverso de uma hora para outra. Foi o Estado que deu vazão ao instinto e ao sadismo que as pessoas não se autorizam por causa própria. O filósofo Slavoj Zizek resumiu muito bem o papel do superego: se você pode, você deve. A ditadura venceu Vladimir Pinheiro Safatle Hoje é o dia que marca, afinal, os 50 anos do golpe militar ocorrido em 1º de abril de 1964. Durante as últimas semanas, a sociedade brasileira foi obrigada a ler afirmações de personagens como o senhor Leônidas Pires Gonçalves, primeiro ministro do Exército pós-ditadura, insultando o país ao dizer que: "a revolução (sic) não matou ninguém" e que ela teria sido uma necessidade histórica. Antes, correntistas do banco Itaú, uma instituição tão organicamente ligada à ditadura que teve um de seus donos, o senhor Olavo Setúbal, nomeado prefeito biônico da cidade de São Paulo, receberam uma singela agenda onde se lia que o dia de hoje seria o aniversário da dita "revolução". Ninguém, nem nas Forças Armadas nem no setor empresarial que tramou e alimentou o golpe teve a dignidade de pedir à sociedade perdão por um regime que destruiu o país. É claro que ainda hoje há os que procuram minimizar a ditadura afirmando que ela foi responsável por conquistas econômicas relevantes. Raciocínio semelhante foi, por um tempo, utilizado no Chile. Tanto em um caso quanto no outro esse raciocínio é falso. A inflação brasileira em 1963 era de 78%. Vinte anos depois, em 1983, era de 239%. O endividamento chegou, ao final da ditadura, a US$ 100 bilhões, legando um país de economia completamente cartelizada, que se transformara na terceira nação mais desigual do mundo e cujas decisões eram tomadas não pelo ministro da economia, mas pelos tecnocratas do Fundo Monetário Internacional chefiados pela senhora Ana Maria Jul. A concentração e a desigualdade se acentuaram, o êxodo rural destruiu nossas cidades, a educação pública foi destroçada, a começar por nossas universidades. Mas o maior exemplo desse revisionismo histórico encontra-se na crença, de 68% da população brasileira, de que aquele era um período de menos corrupção. Alguém deveria enviar para cada uma dessas pessoas os dossiês de casos como: Coroa-Brastel, Capemi, Projeto Jari, Luftalla, Banco Econômico, Transamazônica e Paulipetro. Tudo isso apenas demonstra o fracasso que foi, até agora, o dever de memória sobre a ditadura. Mas o que poderíamos esperar de governos, como o de Fernando Henrique Cardoso, cujos fiadores eram Antônio Carlos Magalhães e Jorge Bornhausen, e de Luiz Inácio Lula da Silva/Dilma Rousseff, que tem em José Sarney um de seus pilares e em Antonio Delfim Netto um de seus principais conselheiros? Como esperar uma verdadeira política contra a ditadura de governos que dependem de figuras vindas diretamente da ditadura? Foi assim, de maneira silenciosa, que a ditadura venceu. Vladimir Pinheiro Safatle é um filósofo e professor livre-docente da Universidade de São Paulo. Notabilizou-se ao grande público sobretudo por sua atividade como colunista no jornal Folha de S. Paulo ----------------------------------------------- ------------------------------------------------- ----------------------------------------- Trevas, nunca mais Clovis Rossi 02/01/2014 Passei a noite de 31 de março de 1964 para 1º de abril pulando, no DKW azul de meu pai, da sede do governo paulista, então no Palácio dos Campos Elíseos, para o QG do Exército, à época na rua Conselheiro Crispiniano, no centrão, cobrindo para o jornal carioca "Correio da Manhã" o que mal sabia que viria a ser o golpe que faz 50 anos logo mais. Após 50 anos, só um fanático negaria o quanto o país mudou para melhor em termos institucionais, por muito que falte para chegar a ser plenamente civilizado. Para a grande maioria dos brasileiros, que não viveu aquela madrugada nem as trevas densas que a ela se seguiram, é difícil compreender o avanço que é os jornalistas já não precisarmos mais fazer plantão às portas dos quartéis. Ou ser obrigado a decodificar o Almanaque do Exército para tentar entender se a promoção a general de fulano ou beltrano podia significar mais fechamento ou alguma abertura. Por falar em "Correio da Manhã", meu primeiro emprego, acabou sufocado pela ditadura, mesmo tendo publicado dois dos três editoriais mais notórios de todos os tempos ("Basta" e "Fora"), cobrando a deposição do presidente João Goulart. Depois se arrependeu e passou a ser crítico do novo regime, o que levou a uma implacável perseguição, incluída forte pressão sobre os anunciantes, até quebrar. Um caso como esse, apenas uma entre as milhares de arbitrariedades e violências praticadas no período 1964/1985, torna até risível, hoje, achar que os governos do PT pretendem acabar com a liberdade de imprensa. Que gostariam de ter uma mídia domesticada, gostariam, como todos os governos, de qualquer signo. Mas, na democracia, não dá para fazer o que a ditadura pôde fazer com o "Correio da Manhã". Na democracia, quem quer grita "onde está Amarildo" –e os policiais responsáveis por seu desaparecimento acabam descobertos e punidos. Na ditadura, milhares de gritos similares foram silenciados e, mesmo depois de encerrado o ciclo, ainda não se chegou à verdade, do que dá prova a existências das "Comissões da Verdade". O golpe que faz 50 anos em 2014 inaugurou um ciclo nefando na América Latina. Primeiro, caiu a Argentina (1966, com uma recaída 10 anos depois), depois o Uruguai, o Chile –até que todos os países sul-americanos e a maioria dos latino-americanos se transformassem em ditaduras, exceção feita a Venezuela, Colômbia, México e Costa Rica. Cinquenta anos depois, caiu na rotina a realização de eleições presidenciais. Serão sete só este ano (El Salvador, Costa Rica, Colômbia, Panamá, Bolívia, Uruguai e o próprio Brasil). No Brasil, aliás, será a sétima consecutiva, santa rotina que marca um recorde, como lembrou ontem Fernando Rodrigues. É tal a rotina que posso ter a certeza de que jamais voltarei a fazer plantão à porta dos quartéis, mas nem por isso dá para esquecer que levou 35 anos para que um presidente legitimamente eleito passasse a faixa para outro presidente eleito nas mesmas condições. Clóvis Rossi é repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhador dos prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor de obras como 'Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo' e 'O Que é Jornalismo'. ------------------------------------------------------------------------------------ -------------------------------------------------------------------------------------- -------------------------------------------------------------------------------------------- Nunca mais? Jânio de Freitas 01/04/2014 Ninguém imaginou que o capitalismo voltasse a imperar na imensidão que perdera, mais de 70 anos antes, para o comunismo da União Soviética e seus domínios posteriores. Os horrores da chamada Primeira Guerra Mundial, de 1914-18, e as providências para a preservação da paz disseminaram a crença fervorosa de que as nações e a própria humanidade entravam em nova era. Os embates de interesses e poderes só se dariam e se solucionariam em conferências, e nunca mais em campos de batalha. Passados apenas 20 anos, começava a Segunda Guerra Mundial, a das bombas atômicas sobre cidades. Os exemplos gritantes do mundo alheio, citáveis ao infinito, têm ecos por aqui, para confirmar que a história faz uso de regras universais, não de desarranjos particulares. O Getúlio ditador foi derrubado em 1945 pelos militares da FEB, lê-se ainda nos livros sobre o período, que voltaram da guerra impregnados das convicções democráticas, absorvidas no convívio com os americanos. Em 1954, Getúlio, presidente por legítima eleição, recusou-se com o suicídio a ser derrubado pelo golpe militar. Eram os mesmos militares guardiães da democracia. Outra vez inspirados pelos americanos, sob o comando do embaixador Berle Jr. Imposta ao golpismo a posse de Juscelino, eleito com legitimidade, seguiram-se cinco anos em que a dissolução quase pacífica de dois levantes militares consolidara o sentimento de estabilidade institucional e democrática. Não havia mais ambiente para golpes, no país que crescia e se projetava com a pujança sintetizada em sua nova capital. E assim foi –por oito meses. Em agosto de 61, na renúncia de Jânio Quadros, o golpismo militar recusa a posse do vice João Goulart, sendo derrotado pela rebelião gaúcha do governador Brizola. O golpe de 64 foi a retomada vitoriosa do golpe derrotado em 61, que, por sua vez, tentara continuar o golpe incompleto, em 54, contra o getulismo, suas teses nacionalistas e de menor desigualdade social. Lá estavam, cabelos brancos e barrigudos por trás das armas, aqueles militares jovens e de meia-idade que chegaram da Itália como vanguarda do "Exército pela democracia". O cinquentenário de 64 mostra-se como um brado uníssono de "ditadura nunca mais". Talvez seja assim. Mas só poderá ser se consumadas duas condições. O ensino das escolas militares precisaria passar por reformulação total. A do Exército, mais que todas. Nas escolas militares brasileiras não se ensinam apenas as matérias técnicas e acadêmicas apropriadas para os diferentes ramos da carreira militar. Muito acima desse ensino, as escolas militares ocupam-se de forjar mentalidades. Uniformes, planas, infensas à reflexão, e, por aí já está claro, ideológica e politicamente direcionadas. São produtos criados ainda para a Guerra Fria. É por isso que se vê, há tantos anos, tão igual solidariedade e defesa dos atos e militares que, para a lei e para a democracia, são criminosos, muitos de crimes hediondos e de crimes contra a humanidade. As escolas militares não preparam militares para a democracia. Outra condição é que se propague a noção de soberania, tão escassa nos níveis socioeconômicos que influenciam a condução do país. Em seu artigo naFolha de ontem, o embaixador Rubens Ricupero contou de documentos por ele vistos, na Biblioteca Lyndon Johnson, em que os "reformistas" conduzidos por Roberto Campos, no governo Castello Branco, sujeitavam aos americanos até a revisão do currículo escolar. Se a imaginação conseguir projetar a mesma conduta para o sistema financeiro privado, por exemplo, pode-se ter uma ideia dos obstáculos que a construção do desenvolvimento brasileiro enfrenta. Nunca mais? Pode ser. Ou: depende. O certo é que a história não faz gentilezas. ----------------------------------------------------------- Janio de Freitas, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha, é um dos mais importantes jornalistas brasileiros. Analisa com perspicácia e ousadia as questões políticas e econômicas