segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

OFA ACT - Textos História A. Chervel - outros

As humanidades no ensino

André Chervel
Marie-Madeleine Compère

Apresentação
A história dos currículos e das disciplinas escolares tem sido objeto de pesquisa nas últimas décadas e o interesse historiográfico sobre esta temática articula-se às indagações sobre as redefinições de políticas educacionais e problemáticas epistemológicas oriundas da denominada “crise paradigmática” dos anos 70. As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por políticas educacionais que, entre outras ações, cuidaram das reformulações curriculares em muitos países do mundo ocidental. Nesse processo de reformulações, a escola e o conhecimento por ela produzido tornaram-se objeto de interesse em vários países. O cotidiano escolar, as práticas de ensino de professores e alunos e os materiais escolares começaram a ser considerados relevantes no processo educacional e, nesta perspectiva, as disciplinas escolares tornaram-se objeto de investigação, buscando-se justificar ou compreender o papel e o significado de cada uma delas na definição dos novos currículos, e preocupando-se, entre outras dimensões, em identificar e apreender o conhecimento escolar por elas produzido.
As pesquisas da história dos currículos e das disciplinas articulam-se, assim, ao processo de transformações educacionais das últimas décadas do século XX, momento em que se repensa o papel da escola em suas especificidades e como espaço de produção de saber e não mero lugar de reprodução de conhecimentos impostos externamente. Nos anos 80, em especial, várias reflexões sobre práticas educacionais contribuíram para a revisão de posições que concebiam a escola apenas como um dos principais aparelhos ideológicos do Estado e das classes dominantes, sem atentar para os aspectos contraditórios existentes no cotidiano da vida escolar. Verificavam-se, então, as ações dos diferentes sujeitos envolvidos no processo escolar, assim como os conhecimentos que produziam em suas dimensões mais amplas.
Um balanço, mesmo sem ser exaustivo, da trajetória da pesquisa, em uma perspectiva histórica, sobre currículos e disciplinas escolares, mostra que estas surgem em diferentes países, quase que simultaneamente e sem muitos contatos iniciais entre os que as realizavam. As investigações, entretanto, seguiram caminhos diferentes. O primeiro deles, notadamente realizado pelos educadores anglo-saxões, iniciava-se pela história dos currículos e, a partir deles, chegava, às vezes, às disciplinas escolares. O segundo percurso iniciava-se por estas, abordando as questões epistemológicas, buscando a gênese e os diferentes momentos históricos em que se constituem os saberes escolares, para então inserir estas problemáticas na constituição dos currículos.
Esta segunda tendência caracteriza as pesquisas de André Chervel e Marie- Madeleine Compère, historiadores do Institut National de Recherche Pédagogique (INRP) da França. A historiadora Marie-Madeleine Compère tem enfatizado a importância de se refazer a historiografia educacional para situar a escola em seus aspectos internos, denunciando as lacunas de uma produção que apenas buscou entendê-la pelo exterior, como instituição e como fruto de deliberações exclusivas das políticas públicas. Destaca a busca de novas fontes documentais que devem articular a leitura dos textos oficiais aos que são produzidos pela escola, tais como planos de aula dos professores, livros e manuais escolares, cadernos de alunos, provas e avaliações.
André Chervel, companheiro de Marie-Madeleine no artigo As humanidades no ensino, é um dos mais renomados pesquisadores franceses, tendo iniciado sua investigação sobre a história do ensino do Francês destacando a constituição das normas gramaticais como fruto de uma necessidade imposta pela escola. A partir desta pesquisa, Chervel aprofundou as análises e apresentou um significativo artigo, “A história das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisas”, traduzido e publicado na revista Teoria & Educação, em 1990. Chervel posicionou-se contra as proposições de Yves Chevallard, que enfatizava a dependência das disciplinas escolares em relação às ciências de referência, entendendo o saber escolar como transposição de um saber produzido pelo rigor metodológico científico para uma situação escolar, sendo que nessa passagem um conhecimento “superior” era transformado em um conhecimento “inferior”, por intermédio de situações didáticas. Chervel rebelava-se contra esta concepção, por acreditar que ela derivava de um pressuposto que entendia a instituição escolar como simples agente de transmissão de saberes elaborados fora dela, e a origem desta idéia, segundo ele, compartilhada por muitos intelectuais e estudiosos e também pelo grande público, estava na convicção de que a escola é, por excelência, o lugar do conservadorismo, da inércia e da rotina. Para André Chervel, portanto, a concepção do saber escolar é fundamental para se entender e ultrapassar os pressupostos de uma visão que reforça a idéia de que os agentes históricos que promovem as mudanças estão exclusivamente fora da escola e que esta se transforma apenas pelas intervenções de elites intelectuais ou pelo poder político institucional. Aliando os pressupostos políticos aos epistemológicos, Chervel contribuiu para avanços na pesquisa ao demonstrar a ausência de neutralidade nos debates e nos métodos de estudos sobre disciplinas escolares. A história das disciplinas escolares, segundo Chervel, deve partir de uma concepção de disciplina entendida em suas especificidades, com objetivos próprios, que se articula com os demais saberes mas não forma um conhecimento menor, de segunda classe, e, nesta perspectiva, as pesquisas históricas devem se preocupar em entender suas especificidades e sua autonomia.
Chervel aprofundou estudos sobre cultura escolar, publicando um outro importante trabalho sobre os concursos públicos dos professores do ensino médio da França, indicando as relações entre os conteúdos de formação das Universidades e a constituição de uma cultura escolar (Histoire de l’agrégation. Contribution à l’histoire de la culture scolaire. INRP et Kimé, 1993). A inserção das disciplinas escolares na constituição de uma cultura escolar conduziu Chervel a situar e acompanhar historicamente os currículos. Nesta perspectiva, contribuiu com importante reflexão sobre os currículos do nível secundário com o artigo “Quando surgiu o ensino secundário?”, publicado pela Revista da Faculdade de Educação, em 1992. Nesse artigo, Chervel mostra as contradições, as conciliações e os ajustes do processo de construção do que se denomina de ensino secundário no decorrer dos séculos XIX e XX.
Completando suas pesquisas sobre esta problemática, ele apreende, de forma erudita e fundamentada, o percurso do currículo humanístico, suas transformações e articulações com o currículo científico e tecnológico, percurso este que se integra à nossa história da educação escolar, seguidores que fomos, ou temos sido, da produção educacional francesa.

Circe Maria Fernandes Bittencourt
A CENP e a criação do currículo de História: a descontinuidade de um projeto educacional

Maria do Carmo Martins
Faculdade de Educação - Unicamp1



Resumo
Este trabalho trata da construção da proposta curricular de História para o Estado de São Paulo, entre os anos de 1986 e 1992, e da relação que a Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) estabeleceu com o processo de confecção dessa proposta, que esteve envolvida em muitos conflitos e polêmicas, algumas delas, frutos de discussões acadêmicas e políticas tornadas públicas pela imprensa.
Palavras-chave: Currículo; Política e Educação; Memória.

No início dos anos 80, ocorreram em São Paulo uma série de manifestações reivindicando ao poder público estadual a reformulação dos guias curriculares em vigor desde os anos 70, já pejorativamente denominados de "Verdão". O apelido dado ao guia devia-se muito mais à identificação dele com o governo militar - uma vez que fôra feito após a reforma educacional de 1971 - do que pela capa verde que revestia o material impresso. Na prática, o guia curricular para o Estado de São Paulo servia de norteador para a elaboração dos planejamentos escolares. E como uma das características mais fortes do guia era a definição dos conteúdos que deveriam ser trabalhados em cada matéria, a maioria dos livros didáticos usados na rede pública espelhavam esse conteúdo. Tínhamos então, na prática docente, pouco espaço de criação e de novas propostas de ensino.
Discutir, em âmbito estadual, a inadequação dos guias curriculares a uma sociedade em vias de se redemocratizar, significava ampliar as discussões sobre a importância dos conteúdos programáticos, métodos de ensino e teorias educacionais que subsidiavam o trabalho docente, para a rede pública de ensino paulista.
Significava também uma ação política, uma forma de expressar a crítica ao período autoritário e a centralização de poderes no Estado e suas instituições. É importante lembrar que muitas formas de resistência e ações políticas já descartavam o Estado para resolver seus problemas e se organizavam no sentido de superá-lo. Todavia, na educação, falava-se muito de democratização do ensino, mas se defendia essencialmente a educação pública, estatal e com qualidade.
A defesa do ensino público vinha na esteira de uma discussão mais abrangente sobre o papel social da escola, sobre a relações sociais que se estabeleciam no interior das instituições escolares e sobre a atuação do poder público, na elaboração de políticas sociais de caráter preventivo, para que a sociedade pudesse diminuir suas desigualdades sociais.
Como o Estado brasileiro busca, entre suas atribuições, oferecer educação e organizar sistemas de ensino, a educação passa a ser uma das áreas em que o governo atua por intermédio das políticas sociais. Estas são, de acordo com Höfling:
O termo 'políticas socias' refere-se às ações do governo voltadas para redistribuição de benefícios sociais que visam promover os indivíduos à condição de cidadãos, frente às desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento sócio-econômico. Estas ações, em geral, são de caráter redistributivo e compensatório e, em muitos casos, assistencial propriamente dito2.
O caráter preventivo das políticas sociais refere-se, grosso modo, ao conjunto de medidas que devem reduzir ao mínimo essas desigualdades sociais. Daí a oferta de um sistema de ensino que garanta o acesso e a permanência dos estudantes na escola pública.
Podemos perceber então, que apesar de muitos outros setores sociais já estarem descartando o Estado e aceitando que as soluções para os problemas fossem criados fora dele, na área educacional o Estado, e as políticas públicas eram (e são ainda hoje), essenciais.
Para profissionais ligados à educação, o Estado, como instituição política, deveria ser a um só tempo, sujeito e objeto de mudanças. Não bastaria somente garantir as eleições diretas para os cargos políticos-administrativos. As mudanças previam que o Estado, as instituições públicas e os órgãos ligados a eles incorporassem ideais de democracia. Vivia-se um momento de revalorização da ação social e da participação política
A reforma curricular dos anos 80 em São Paulo insere-se nesse contexto. Mais do que reorganizar a lista dos conteúdos a serem desenvolvidos por professores no seu dia-a-dia de trabalho, pretendia-se então, com a reorganização dos currículos, a construção de uma nova escola, assentada em um novo projeto político educacional.
Em São Paulo, a construção de novas propostas curriculares para a rede pública de ensino ficou a cargo da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), órgão da Secretaria do Estado da Educação (SEE) responsável por definir parte das políticas públicas educacionais para esse Estado.
E se o guia curricular do período da ditadura acabou se tornando conhecido pelo apelido, a reforma curricular dos anos 80 tornou-se conhecida e identificada como elaborada pela CENP. Cotidianamente, os professores chamavam-na de "proposta curricular da CENP". Conhecer esse órgão foi fundamentalmente importante para entender porque o processo de construção do currículo de História tornou-se tão demorado e polêmico. Parte dos dados sobre o órgão público e sobre a construção do currículo foram conseguidos por meio de entrevistas com profissionais que trabalharam na CENP entre os anos de 1982 e 1992.

A CENP: Estrutura e Funções
Em 1976, o governador do Estado de São Paulo, Sr. Paulo Egydio Martins reorganizou a Secretaria do Estado da Educação por meio do decreto 7510/76. Tal reforma administrativa instituía o organograma e as funções da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), órgão da SEE responsável pelas questões referentes aos currículos. Dentre as atribuições da CENP estavam a elaboração, execução e normatização dos modelos curriculares para o Estado, bem como o permanente trabalho de qualificação e requalificação docentes, técnico-pedagógicos e administrativos da área pedagógica. Cabia a ela ainda o desenvolvimento de estudos para aperfeiçoar material e metodologias de ensino e supervisão.
Até meados dos anos 80, a CENP era o órgão da SEE que mantinha o maior contato com os professores da rede pública estadual de ensino. Esses contatos existiam em função do projeto dos "cursos de capacitação" desenvolvido por ela, em convênio com as universidades USP, UNICAMP e UNESP, visando a capacitação permanente dos professores no ensino de 1° e 2° graus. A partir de 1987 parte de suas atribuições, principalmente as referentes à qualificação e requalificação profissional na área educacional, ficou sob responsabilidade da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), criada pelo governador Orestes Quércia. As questões referentes aos currículos, entretanto, continuaram sob responsabilidade da CENP.
O permanente contato com o professores da rede pública de ensino e os cursos de qualificação organizados pela CENP valeu-lhe, nas memórias de uma das entrevistadas, professora Kátia Abud3, a lembrança do órgão como:
(...) a pós-graduação da Secretaria de Educação. (...) A CENP tinha mesmo um caráter até de discussão, tínhamos longas discussões sobre os textos, líamos, éramos obrigados a ler.
A CENP organiza seu Plano de Trabalho Anual (PTA) a partir dos projetos e das premissas definidas pela SEE. Financeiramente, o órgão depende da verba definida também pela SEE, o que lhe garante apenas autonomia relativa para desenvolver seu PTA.
O Coordenador possui o cargo mais elevado dentro da hierarquia administrativa do órgão. Este cargo, segundo ainda o decreto-lei 7510/76, é definido pelo Secretário de Educação por meio de nomeação, dando-lhe um caráter de "cargo de confiança". Na sua estrutura interna, além do gabinente do coordenador, há as Divisões (Currículos, Supervisão) e os Serviços (Orientação Educacional, Recursos Didáticos, por exemplo). Os trabalhos em cada Divisão ou Serviço são garantidos por equipes. No caso específico da Divisão de Currículo que interessa para essa pesquisa, os trabalhos são desenvolvidos por Equipes Técnicas.
As Equipes Técnicas são formadas por professores da rede pública estadual de ensino que se afastam temporariamente das suas funções docentes nas escolas. Elas estão organizadas por componentes curriculares (matemática, ciências etc) ou por projetos (habilitação específica do magistério).
Foram construídas entre os anos de 1986 a 1988 propostas curriculares para o 1° grau nas disciplinas do chamado núcleo comum: Matemática, Língua Portuguesa, Ciências e Estudos Socias - esta última, após longas discussões e queixas de historiadores e geógrafos, dividida novamente nas disciplinas de História e Geografia.
Para elaborá-las, a CENP utilizou-se de equipes técnicas, assessoradas por especialistas das diversas áreas de conhecimento ligados às Universidades e, após organizar o trabalho inicial em versões preliminares, estas foram tornadas públicas e discutidas com representantes dos docentes de rede de ensino de 1° e 2° graus.
Especialmente a proposta curricular de História esteve envolvida numa série de confrontos e de conflitos, que inviabilizaram a sua construção num mesmo prazo que as outras disciplinas. Esta proposta, que começou a ser construída em 1986, só foi tornada definitiva em 1992.
Muitos autores escreveram sobre as versões da proposta curricular de história tornadas públicas. Alguns analisaram-nas, apontando a novidades e as contradições, como Fonseca4 e Cordeiro5; outros destacaram a importância do processo de construção e a reação, às vezes negativa, dos professores e da impressa quanto às versões produzidas até 1988 conforme Palma Filho6 e Ricci7. Nesse artigo procuro desvendar outra parte desses conflitos, discutindo de que forma e em que medida a CENP contribuiu para a elaboração de tal proposta ou produziu empecilhos para que essa proposta fosse finalizada e tornada oficial.

O Início das Mudanças: A Questão da Redemocratização do Ensino
A atuação da CENP em processos de reformulação da educação, especialmente após as eleições livres para governador de Estado (em 1982 foi eleito o governador Franco Montoro), vincula-se ao processo de redemocratização dos início dos anos 80, mas com uma visão muito particular do que deveria ser essa democratização.
De acordo com Palma Filho, que foi coordenador da CENP e participante direto do projeto de reforma curricular após 1985, o governo eleito privilegiava a descentralização administrativa e a participação popular nas decisões governamentais. Na área educacional, entendia por democratização do ensino a escola tornada acessível a toda a população e com mecanismos de participação popular no gerenciamento da escola pública.
À CENP coube nesse processo organizar as discussões e promover a construção das novas propostas curriculares, em princípio para as disciplinas básicas do 1° grau. A ela caberia viabilizar as mudanças, mas os novos currículos só poderiam vigorar a partir da aprovação dos professores das disciplinas.
De acordo com as professoras de História, Maria Aparecida de Aquino8 e Kátia Abud, a proposta de História sofreu impasses desde o início das discussões, feitas em 1985. A equipe preocupava-se em não transformar a proposta curricular num processo autoritário.
Discutia-se desde se deveria ou não construir uma nova proposta até as novas tendências historiográficas a serem incorporadas no projeto. Quando a maioria dos membros da equipe aceitou a tarefa de construí-la, os embates continuaram, passando então a serem feitos em relação ao formato dessa proposta: deveria conter listagens de conteúdos ou somente elaborar subsídios metodológicos? Anelise de Carvalho9, também entrevistada, lembra da continuidade dessas discussões destacando a questão dos conteúdos: estes deveriam estar estruturados de forma detalhista e rígida, ou deixados em aberto para que o professor pudesse torná-los adequados à realidade do aluno?
Esta última postura prevaleceu na equipe de História que elaborou as três versões inicialmente discutidas com professores de História, até 1988. Segundo Anelise de Carvalho:
na parte da História, por exemplo, há uma sugestão de tema, mas se o professor quiser trabalhar um outro, que ele ache mais significativo, acho válido, acho que não tem que ter um programa oficial, um programa a ser seguido tipo uma camisa-de-força.
Com todas essas discussões sobre o conteúdo e a forma da proposta, percebe-se uma preocupação da equipe técnica em resguardar no próprio processo de construção da proposta uma postura democrática. Essa postura tornou-se uma referência forte para as entrevistadas. Toda vez que falaram sobre o processo, lembraram os passos que foram dados, os problemas e as práticas adotadas na tentativa de solucioná-los. Nas memórias dessas entrevistadas, a maneira como a proposta deveria ser construída tinha uma importância igual, senão maior, que o conteúdo final do documento.

Nem Tudo são Flores na CENP
As questões até aqui relatadas, apesar de pontuais, eram importantes para o período. Entretanto, alguns entraves começaram a aparecer no interior da CENP, dificultando bastante a continuidade dos trabalhos. Parte dessas dificuldades são resultados da própria estrutura organizacional da Coordenadoria.
O cargo de chefia, como já foi dito, corresponde a cargo de confiança e, embora ao coordenador caibam as decisões e os encaminhamentos para desenvolvimento dos trabalhos e projetos sobre currículos, tal cargo não precisa ser exercido por profissionais ligados às questões curriculares. Por ser cargo de confiança, ao mudar o secretário de educação, é possível mudar também o coordenador e seus assessores mais imediatos, caso o novo titular da Secretaria queira. O cargo de coordenador da CENP é, portanto, para a Secretaria de Estado da Educação, mais um cargo político-administrativo.
Disso decorre que os projetos ficam sujeitos demais à figura do coordenador. A cada alteração na chefia da coordenação, os projetos em andamento sofriam alteração quanto aos rumos ou até mesmo quanto ao grau de importância no momento, porque, como assegurou a ex-coordenadora entrevistada, professora Regina Ivamoto10, as diretrizes são sempre definidas pela SEE e a CENP sujeita-se a desenvolver suas funções dentro dessas diretrizes.
Maria Aparecida de Aquino considera essa estrutura uma das dificuldades de desenvolver projetos que exijam um longo período para execução. De acordo com ela, a proposta de História sofreu impasses na construção, entre outros motivos, porque foram feitas num governo, que assumia o compromisso político de construí-las, mas foram discutidas em outro governo, que não assumira o mesmo compromisso com esse tipo de trabalho. Segundo ela:
Acho fundamental o seguinte: as propostas foram feitas num governo e foram discutidas num outro. O governo no qual elas foram discutidas não tem compromisso com o trabalho anterior, não somente do ponto de vista do governador como do ponto de vista da coordenadoria da CENP. O professor João Cardoso Palma Filho estava absolutamente empenhado na construção das propostas curriculares, que também era um projeto seu; o João Palma era elemento da CENP antes de ser coordenador da CENP. Então, ele tinha uma história dentro da CENP e tinha uma história nas propostas curriculares. O mesmo não acontece com a coordenadora que lhe sucedeu. Então elas foram discutidas num momento muito negativo para elas.
A demora na construção e implementação da proposta curricular de História encaixa-se na situação descrita pois os trabalhos foram iniciados durante o governo Montoro, quando a coordenadoria da CENP esteve sob responsabilidade de João Cardoso Palma Filho, que assumira o compromisso político com elas. A própria CENP foi, durante essa administração, a porta-voz das propostas daquela administração. Entretanto, ao iniciar a gestão Quércia, a nova coordenadora nomeada, professora Teresa Roserley Neubauer da Silva11, não apresentou os mesmos interesses nos projetos. Além disso, a CENP teve uma redução acentuada nas suas funções e na sua importância para a administração, pois teve que dividir com a FDE suas atribuições, principalmente nas questões que colocavam o órgão em contato com o professores.
De todo modo, ao alterar a chefia da coordenadoria, o novo coordenador e seus assessores imediatos demoravam um certo tempo para conhecer os projetos e definir suas diretrizes, o que tornava lento o processo de trabalho.
O quadro I demonstra as alterações vividas pela CENP durante as duas administrações.
Quadro I
Governador do Estado, Secretários da Educação e Coordenadores da CENP São Paulo (1983-1991)


Como podemos verificar, a alteração no cargo do coordenador da CENP foi muito maior durante o governo Quércia, embora o sistema de indicação para tal cargo tenha continuado o mesmo que no governo anterior. Uma vez que a CENP prevê em seu organograma forte concentração de poderes nas mãos do coordenador, as mudanças podem indicar também certo descontrole por parte do órgão quanto aos projetos.
Nas equipes técnicas, o problema da troca de profissionais também gera, em alguns momentos, uma alta rotatividade de professores que a compõem. Ao fazerem parte da equipe, os professores são designados para o cargo, sem tempo específico de permanência na casa e sem um projeto com prazos para serem terminados, podendo cessar a designação no momento em que o coordenador quiser.
Norma Codani12 conta sobre esse problema:
A designação tem prazo inderteminado. Todas as pessoas que estão nessa equipe, somos em seis, nós estamos designados - o que não significa que vamos ficar eternamente, porque nossa designação pode cessar ou por nossa vontade ou por vontade da chefia a partir de hoje, por exemplo. (...) Uma vez cessada a designação, as pessoas voltam para a escola, porque na realidade aqui nós não temos um cargo.
Isso resulta também em muitos momentos de descontinuidade nos projetos desenvolvidos pela CENP na medida em que as equipes podem ser reformuladas (integralmente se o coordenador quiser) a qualquer momento e em qualquer estágio do trabalho. No caso específico da construção da proposta curricular de História, houve muitos momentos de interrupção devido a alterações nos membros componentes da equipe.

A Construção da Proposta Curricular de História: Especificidades
A proposta curricular de História foi apresentada ao público em cinco versões. As três primeiras versões foram editadas durante os anos de 1986 e 1988, escritas pela equipe técnica de Estudos Sociais, quando o coordenador da CENP era o Prof. João Cardoso Palma Filho. Estas estiveram em discussão com professores da rede pública até 1988 e foram sujeitas a muitas críticas e retaliações. São estas três versões que estiveram envolvidas nos maiores conflitos para construção.
As outras duas versões são de 1991 e 1992. Estas duas últimas correspondem à proposta curricular produzida por professores universitários que prestaram serviço à CENP, demonstrando que o princípio básico de que a proposta deveria ser feita no interior da Coordenadoria fôra abandonado. A versão de 1992 é considerada definitiva pela CENP e pela SEE.
As versões iniciais (1986/1988) foram feitas partindo de princípios expressos num documento síntese das linhas norteadoras da reorganização curricular, produzido pela CENP, no qual as assessoras Barreto e Arelaro13 deixavam claro que as propostas visavam adequar os conteúdos escolares ao aluno que freqüentava a escola pública naquele momento. O aluno pobre, de um país que passava por transformações sócio-políticas e econômicas rápidas. Os currículos dessa nova escola não somente deveriam inquietar o professor, mas deveriam também
(...) dar pistas de para onde o novo mundo e a nova escola estão a caminhar. Daí a necessidade desta nova proposta ser simples e objetiva, possível mas instigante, viável mas que caiba a utopia da construção de uma nova sociedade: que passa pela escola, não se resume nela, mas não prescinde dela. E portanto, de cada um de nós14.
Além de tais pressupostos, a equipe técnica de História deveria adequar os conteúdos e a distribuição deles para as séries, bem como discutir as diferentes abordagens historiográficas que durante os anos 80 se propagaram nos meios acadêmicos.
Para garantir a participação dos professores da rede pública, a CENP optou por discutir as propostas com grupos de professores, definidos a partir das Delegacias de Ensino. Dessa forma foi feita com a primeira versão. As considerações originaram a segunda e terceira versões. Esta última deveria ser rediscutida em outubro de 1986, mas uma longa greve de professores impossibilitou tal realização. Somente em julho de 1987, já durante o governo Quércia e com a CENP sob a coordenadoria da professora Teresa Roserley Neubauer da Silva foram realizadas as discussões. Esta coordenadora manteve o calendário de discussões programado. Questionada, a proposta de História passou por um longo período sem que uma nova versão fosse tornada pública.
As versões apresentadas sofreram críticas por parte dos professores, mas essas críticas eram esperadas (e desejadas) pela equipe técnica. Mas uma crítica mais severa, essa por parte dos jornais de São Paulo, favoreceu o processo de engavetamento da proposta. Essa fôra identificada como uma proposta de esquerda, alguns chegavam a identificá-la com o Partido dos Trabalhadores, acusavam a equipe técnica de valorizar demasiadamente o tema "Trabalho" como eixo norteador da proposta. A tal ponto a proposta de História entrou em evidência, que no início da gestão Quércia, o Secretário de Educação, Sr. Chopin Tavares de Lima, amenizou em sessão na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (dia 07/10/1987) a importância do trabalho de construção dos currículos em seu plano de ações.
Somente no final da gestão Quércia o projeto foi retomado. Professores universitários foram convidados a fazer a versão que está vigorando, diferenciando a proposta de História das outras propostas curriculares, elaboradas por professores da rede pública. Kátia Abud relata que 1991, uma semana antes de iniciar a gestão Fleury, uma nova versão feita pelos professores universitários Ernesta Zamboni (UNICAMP), Kátia Abud e Luís Koshiba (UNESP) e Maria Helena Capelato (USP) - profundamente diferente da proposta anterior - foi lançada pela CENP. Discutida por alguns professores convocados novamente pelas DEs, esta foi reelaborada ao final daquele ano, por duas das autoras (Zamboni e Abud) resultando na versão definitiva até o momento.
Rastreando o calendário de contrução da proposta curricular de História percebe-se que praticamente durante toda a gestão Quércia a proposta sofreu um impasse na sua construção. O calendário de discussões mostra-se também curioso: a proposta foi apresentada como uma obra em construção contínua aos professores nos momentos em que o governo presta conta de suas ações, angaria votos ou nos momentos em que lança as bases para suas políticas educacionais. Através da alteração na escolha dos autores percebe-se que o projeto inicial mudou de feição, na medida em que não se priorizou mais a construção feita pelos professores da rede pública de 1° e 2° graus. A idéia de democratização envolvida na construção foi deixada de lado.

Conflitos Ideológicos no Interior da CENP e a Construção do Currículo de História
Os relatos dos elaboradores das versões discutidas até 1988 indicam que a alteração dos coordenadores na transição do governo Montoro para o governo Quércia significou a instalação de visões diferenciadas sobre os currículos e a importância política deles, resultando dessa forma em diretrizes e ações também bastante diferenciadas pela CENP.
Os dois coordenadores mais lembrados pelas entrevistadas - Palma Filho e Neubauer da Silva - assumem a importância de um currículo básico, subsidiário do trabalho docente e que seja elaborado levando-se em conta o saber sistematizado historicamente pela humanidade, como produto cultural.
As discordâncias começam quando se analisa o papel político desses currículos e das escolas organizadas a partir deles. De acordo com Palma Filho, em cuja gestão iniciou-se o projeto de reforma de curricular da História
1) o currículo não pode ser separado do social, deve ser historicamente situado e culturalmente determinado; 2) o currículo é um ato inevitavelmente político, que objetiva a emancipação das camadas populares 15.
A escola onde se aplicaria tal currículo era vista
(...) como um espaço de luta, de contradição, e nesse sentido, do ponto de vista político acaba por transmitir uma mensagem otimista, de esperança16.
Para Palma Filho, a escola era uma intituição política, capaz de promover mudanças estruturais na sociedade e nesse sentido, um dos espaços em que o indivíduo exerce seu direito à cidadania.
A coordenadora Neubauer da Silva entretanto, afirma que:
Não faz sentido, por outro lado, atribuir à escola o papel de agência conscientizadora do povo a respeito de seus direitos e do seu potencial de ação política, como foi postulado por vários pedagogos nos últimos dez anos. (...) É necessário reconhecer que a escola é uma instituição cujo objetivo fundamental é a socialização dos conhecimentos acumulados. Não há como negar que o papel inerente à escola seja a transmissão do saber sistematizado - formação cultural como instrumento de inserção social dos indivíduos enquanto cidadãos. É esta a sua função possível e indispensável17.
A escola, para a coordenadora Neubauer da Silva, não é capaz de desenvolver a consciência política necessária para que o cidadão consiga exercer de fato a sua cidadania. Ao contrário da perspectiva libertária proclamada por Palma Filho, a escola de Neubauer da Silva possui poderes bastantes limitados, cabendo a ela instrumentalizar o cidadão para sua adequação à sociedade.
Embora não proclamado diretamente pelos coordenadores citados, tal embate teórico resultou em práticas e ações decisórias diferenciadas por parte da CENP durante suas respectivas gestões. A forma como cada coordenador trabalhou com os currículos materializavam tais diferenças de posturas e de modos de agir.
A equipe técnica de História demonstrou estar mais afinada com os pressupostos teóricos do então coordenador Palma Filho. A coordenadora Neubauer da Silva, movida por outros pressupostos e negando a perspectiva libertária que inspirava os trabalhos realizados, gerou, através das relações conflitantes com a equipe, o esfriamento do processo de criação.
Todavia, a forma como os coordenadores encaminham o processo e as características que tentam imprimir aos currículos durante suas gestões, demonstra que ambos partiam de um ponto comum: a convicção de que por meio dos conteúdos e das atitudes que o currículo fomenta na comunidade que ele atinge, pode-se controlar e dirigir parte considerável dessa comunidade. Essa é, por sinal, uma das conclusões mais consensuais sobre os currículos. Hoje admite-se que estão diretamente vinculados conhecimento e currículo com controle de poder, como nos alerta Silva:
O processo de criação, seleção, organização e distribuição de conhecimento escolar está estreitamente relacionado com os processos sociais mais amplos de acumulação e legitimação da sociedade capitalista.
Aquilo que é definido como sendo conhecimento escolar constitui uma seleção particular e arbitrária de um universo mais amplo de possibilidades.
O poder socializador da escola não deve ser buscado tão somente naquilo que é oficialmente proclamado como sendo seu currículo explícito, mas também (e talvez principalmente) no currículo oculto expresso pelas práticas e experiências que ela propicia.
A definição social cristalizada daquilo que constituem formas legítimas de escola, sala de aula etc, e a estrita regulamentação estatal dos modos de Educação limitam, conformam e determinam as possíveis transformações dos arranjos educacionais existentes, particularmente os referentes a currículo18.
Controlá-lo significa também promover, da escola para a sociedade, determinados comportamentos e valores que estejam de acordo com o que pensam os detentores do poder. O Estado, ao controlar a parte burocrática e os conteúdos expressos nesse sistema escolar, acaba por deter o monopólio da decisão sobre o modo como a Educação se efetiva na nossa sociedade.
A ideologia política, com a qual o Estado mais se afina nos vários momentos, aparece na forma como os órgãos e as divisões das secretarias de Estado efetivam seus trabalhos. Este é o exemplo que a CENP dá durante o processo relatado. Entretanto, é importante ressaltar que não se trata de projetos maquiavélicos de controle. Os relatos e os casos resgatados aqui procuram demonstrar que é no fazer diário que esse controle vai se estabelecendo.

Correndo em Outra Raia: uma Proposta Feita Fora da CENP
Enquanto ocorriam os embates com a proposta curricular de História em construção, a CENP passa a subsidiar um projeto de ensino dessa disciplina denominado "Programa de Qualificação do Ensino de História" criado a partir da iniciativa de professores da UNESP, campus de Araraquara, e desenvolvido inicialmente com o auxílio da Delegacia de Ensino da cidade. Esse programa iniciou-se com a produção de alguns textos de apoio aos professores, com realização de um curso de 36 horas ministrado na DE e a publicação de um material didático para alunos feito em off-set na própria gráfica da UNESP.
Desde 1986, a equipe responsável pela experiência selecionou 12 professores da rede pública de ensino, que passaram a ser comissionados na CENP e deveriam acompanhar a experiência nas escolas. Em 1988, justamente durante a gestão de Neubauer da Silva, a CENP e a UNESP firmaram um convênio para dar continuidade aos trabalhos, ampliando-os para a participação de professores de São Carlos, São João da Boa Vista e Pirassununga. Tal convênio teria duração até 1990. A CENP assegurou que professores trabalhariam como monitores e posteriormente conseguiu que a Imprensa Oficial do Estado (IMESP) imprimisse o material didático, reorganizado e reescrito. De acordo com Mori19, um dos responsáveis pelo programa, a partir desse momento o projeto contava com participantes de mais de 20 cidades (ligadas às DEs já citadas), envolviam cerca de 140 professores e mais de 20 mil alunos.
Em 1988 também a equipe de professores da UNESP elaborou e imprimiu a Proposta Pedagógica do Programa de Qualificação em questão. Através do pequeno caderno da proposta pedagógica, era feita a síntese das discussões ocorridas para elaboração da experiência, apresentava-se o referencial teórico-pedagógico, definia-se a concepção de História do programa e organizavam-se os temas por série. Procurava-se também organizar as diretrizes do programa, uma vez que estas alcançaram um tamanho muito extenso e os organizadores não conseguiram mais controlá-lo.
Verificando o alcance do programa e o investimento da CENP, tal projeto transformou-se num programa curricular "extra-oficial", naquele momento endossado pela CENP/SEE. As vantagens desse programa para a CENP decorriam principalmente do fato dele não estar envolvido em polêmicas com a imprensa, de já estar sendo testado pelos professores e em grande medida aceito sem maiores problemas. Este programa não propunha mudanças substanciais na estrutura do trabalho dos professores, na medida em que o conteúdo já selecionado e dividido nas séries eram trabalhados pelo material de orientação aos professores e também no material dirigido aos alunos.
Tal programa também se caracteriza por propor um currículo menos politizado do que a proposta construída no interior da CENP, além de afirmar não querer polemizar com intelectuais da História, uma vez que o projeto não apresenta uma única linha historiográfica. Até 1990, esse programa elaborado pela UNESP contou com os recursos da CENP. Depois dessa data, os organizadores do Programa passaram à coordenadoria dos núcleos de ensino da UNESP o encargo de continuar ou encerrar os trabalhos. Após avaliações, a direção dos núcleos de ensino iniciou um processo de desmontagem do programa, embora o material tenha sobrevivido e seja usado até hoje por professores de História.
Justamente durante esse período de crescimento do Programa (1987 a 1990), a proposta curricular elaborada no interior da CENP não recebeu mais nenhuma versão para ser distribuída aos professores da rede pública de ensino e discutida pelos mesmos.
Analisando as datas e o projetos coincidentes, parece claro que houve, além da mudança na concepção de currículo, como já foi demonstrado, uma alteração também no modo como a CENP passa a desempenhar suas funções. Ela distanciou-se da construção do currículo e aceitou o papel de financiadora de uma proposta experimental. Ao mesmo tempo, ela distanciou-se dos professores na medida em que perdeu a função de trabalhar com a qualificação docente, passando esta para a responsabilidade da FDE.
Todavia, após 1990 a disciplina História era a única das disciplinas do núcleo comum da grade curricular do Estado que continuava sem uma proposta curricular oficial. Imbuída de suas novas características, mas ainda com a função de elaborar propostas curriculares e abandonando por completo o ideal de ter proposta produzida por professores de História no 1° e 2° graus, a CENP convida quatro professores universitários (ligados à USP, UNICAMP e UNESP) para elaborarem a versão definitiva.
Foi muito longo o período de construção do currículo de História até a elaboração do documento final, se compararmos com o tempo de construção das outras propostas. Todos os sujeitos que dele participaram, direta ou indiretamente, aparecem com passagens sempre interrompidas. Alguns desses sujeitos demonstraram que as dificuldades geradas pela CENP ou pelo próprio Estado resultaram em frustrações com o trabalho.

Frutos do Trabalho ou Frustações com o Trabalho?
Dentre as pessoas entrevistadas, Maria Aparecida de Aquino e Anelise M. M. de Carvalho, componentes da equipe técnica responsável pelas versões impressas e discutidas de 1986 a 1988, deixaram claro, às vezes em tom de denúncia, às vezes em tom de desabafo, que as dificuldades na construção da proposta não eram provenientes da ausência de recursos financeiros. Ao contrário, para elas, as maiores dificuldades são provenientes da forma como a CENP encaminhava seus trabalhos, da censura do gabinete da coordenadoria ao projeto em construção, a centralização das decisões nas mãos do coordenador e da tensão presente no relacionamento com esse gabinete de poderes centralizados.
Maria Aparecida de Aquino desabafa:
Se você me perguntar qual o resultado que eu tenho do meu trabalho nesses anos todos na CENP - é um resultado de frustração.
E continua:
Os impedimentos, que aconteceram infelizmente, não foram questões financeiras. Os impedimentos foram questão de direção. Então, quando o material não vai para rede, pelo menos na minha experiência, não é porque não há condições financeiras; não vai porque não não há intenção política que ele vá.
Anelise de Carvalho anuncia:
A nossa relação (com o gabinete do coordenador) era realmente dada a partir do que cada coordenador tinha como projeto, como prioridade.
E sobre o processo de interrupção da proposta:
(...) Olha, eu sofri muito. Eu sempre falo que foi uma fase muito difícil da minha vida, uma fase de muito sofrimento. (...) Eu tentava fazer um bom trabalho, me esforçava, mas eu não tinha essa visão institucional do Estado, essa questão de poder, a manipulação do poder - e de repente, percebi isso. Então foi uma fase sofrida, mas acho que foi uma fase de crescimento.
Torna-se curioso perceber por meio dos relatos a ocorrência - mesmo que não seja de forma explícita - da manipulação dos órgãos públicos por parte dos ocupantes dos cargos de chefia, como ocorreu na CENP. Embora os projetos que esses órgãos tenham de formular digam respeito à parcela da sociedade para qual são voltados, os órgãos passam por um processo de constante privatização - privatização não no sentido econômico, pois esses órgãos não estão sendo leiloados ou passados para a esfera do capital privado. O termo "privatização" aqui está sendo usado no sentido de ser manipulado como propriedade privada por intermédio de cada ocupante do cargo de chefia. O sentido geral dessa privatização a que me refiro é o de imprimir peculiaridades, particularidades de gerenciamento e administração à coisa pública, de tal forma que as instituições ou órgãos públicos sejam reconhecidos pelas marcas desses administradores e políticos.
Questiona-se o fato de projetos serem interrompidos, mesmo quando uma parte da sociedade ainda está se mobilizando na defesa deles. Se os ocupantes temporários dos cargos de chefia dos órgãos públicos possuem projetos e premissas distintos, torna-se cada vez mais importante que a sociedade participe ativamente das instituições, faça valer suas vontades e garanta a continuidade e a finalização de projetos que possam vir a beneficiá-la.
Dentro do programa de reformas educacionais para o Estado de São Paulo, as propostas curriculares tinham importância grande, destacada pela própria administração. O projeto de História, entretanto, tornou-se um exemplo de como relacões de poder - privatizacões como as destacadas acima - tornam inoperante um órgão público e dificultam a elaboração de projetos.
De forma bastante genérica, percebemos que os movimentos pela reforma educacional, tendo como pressuposto as construções de novos currículos, visavam promover nas redes de ensino (públicos ou privados) uma modernização. Essa modernização levava para dentro dos órgãos públicos e do sistema escolar o discurso de representatividade, da participação e da transformação da sociedade.
Nem sempre, entretanto, o órgão responsável por formular projetos segundo um discurso democrático mostrava-se capacitado para desenvolver tal tarefa. As contradições e as relações de poder no interior da CENP, e a forma como os projetos eram desenvolvidos e/ou deixados de lado mostram que, embora os discursos tenham se alterado, a maneira como o órgão desenvolvia seus projetos ainda não havia incorporado o discurso que ela mesma propagava.

Notas
1 Esse artigo é referente a uma parte da dissertação de Mestrado, intitulada A construção da proposta curricular de História da CENP no período de 1986 a 1992: confrontos e conflitos. Defendida em 1996, na FE/Unicamp sob orientação da Profª Drª Ernesta Zamboni.
2 HÖFLING, Eloísa de Mattos. A FAE e a execução da política educacional: 1983 - 1988. Tese de Doutoramento, Campinas, Faculdade de Educação da Unicamp, 1993, p. 140. [ Links ]
3 A professora Kátia Maria Abud participu da equipe técnica da CENP durante os anos de 1981 e 1983-1985. Quando foi entrevistada, a professora ministrava aulas na Faculdade de História, Direito e Serviço Social da Universidade Estadual Paulista (UNESP).
4 FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História ensinada. Campinas, Papirus, 1993.
5 CORDEIRO, Jaime Francisco Parreira. A história no centro de debate: da crítica do ensino ao ensino crítico - as propostas de renovação do ensino de história nas décadas de setenta e oitenta. Dissertação de Mestrado, São Paulo, Faculdade de Educação da USP, 1994. [ Links ]
6 PALMA FILHO, João Cardoso. A reforma curricular da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo para o ensino de 1º grau (1983-1987): uma avaliação crítica. Dissertação de Mestrado, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1989. [ Links ]
7 RICCI, Claudia Sapag. Da intenção ao gesto — quem é quem no ensino de história em São Paulo. Dissertação de Mestrado, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1992. [ Links ]
8 A professora Maria Aparecida de Aquino participou da equipe técnica de Estudos Sociais e depois de História da CENP em dois momentos: de 1985 a 1988 e de 1990 a 1991. Quando foi entrevistada, a professora ministrava aulas no curso de História da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH - USP). Sua entrevista ocorreu na USP, dia 26/10/1993.
9 A professora Anelise Maria Müller de Carvalho foi membro da equipe técnica de História da CENP de 1985 a 1988. Quando foi entrevistada, atuava como Assistente Pedagógica, na Oficina Pedagógica da 3ª Delegacia de Ensino na Capital. Ela foi entrevistada dia 08/10/1993.
10 Regina Maria F. H. Ivamoto iniciou seus trabalhos na CENP na equipe técnica de Língua Portuguesa. Mais tarde tornou-se Diretora de Serviço de Ensino do 1º grau, na divisão de currículo da própria CENP. Sua entrevista ocorreu em 21/02/1994. Nessa ocasião era coordenadora da CENP.
11 A professora Teresa Roserley Neubauer da Silva (Rose Neubauer) é atualmente a Secretária de Educação do Estado de São Paulo.
12 Norma L. Codani foi entrevistada dia 04/10/1993. Na ocasião ela fazia parte da equipe de História, na qual ingressara em 1991.
13 BARRETO, Elba Siqueira de Sá e ARELARO, Lisete Regina Gomes. "As uvas não estão mais verdes: um novo currículo? (Documento síntese das linhas norteadoras da reorganização curricular)". In Fundamentos da educação e realidade brasileira: a relevância social dos conteúdos de ensino.São Paulo, SEE/CENP, ano II, nº 07, 1986. [ Links ]
14 Idem, p. 03.
15 Idem, p. 58.
16 Idem, p. 58.
17 SILVA, Teresa Roserley Neubauer da. Conteúdo curricular e organização da Educação básica: a experiência paulista. Tese de Doutoramento, São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1988, pp. 12-13. [ Links ]
18 SILVA, Tomaz Tadeu da. O que produz e o que reproduz em Educação. Porto Alegre, Artes Médias, 1992, pp. 78-80 e 84. [ Links ]
19 MORI, Airton Sérgio. Um projeto de ensino de História. Texto base para apresentação na 6ª Conferência Brasileira de Educação (CBE) realizada na USP, 1991.

Quando os discursos não se encontram: imaginário do professor de História e a Reforma Curricular dos anos 80 em São Paulo1

Claudia Sapag Ricci
Universidade Federal de Minas Gerais


Resumo
Este artigo analisa as percepções dos professores de História da Rede Estadual de Ensino de São Paulo a respeito do seu trabalho, seu papel, sua formação acadêmica, seus alunos, órgãos governamentais, e mesmo suas concepções sobre a História e a produção do conhecimento, no período de discussão que precedeu a reforma curricular de 1989. Demonstra a profunda heterogeneidade de concepções entre o professorado paulista, revelando um tempo de execução das políticas de Estado (no caso, a reforma educacional) que não coincide com o tempo necessário para construção de um projeto comum dos educadores.
Palavras-chave: Reforma Curri-cular de História; Imaginário do Professorado Público (São Paulo); Formação de Professores.
Abstract
This article analyses São Paulo state system History teachers' perceptions of their jobs, their role, academic background, students, as well as their conception of History and knowledge production, during the discussions which preceded the 1989 curriculum reform. It demonstrates the intense heterogeneity of conceptions among teachers from São Paulo, revealing a period of state policy (educational reform, in this case) which is not adequate to the time necessary to build an education project common to the teachers.
Key words: History Curriculum Reform; Imaginary of Public Teachers (São Paulo); Formation of teachers.


A estranheza de tal situação lembra a de uma sessão espírita na qual determinado número de pessoas, reunidas em torno de uma mesa, vissem subitamente, por algum truque mágico, desaparecer a mesa entre elas, de sorte que duas pessoas sentadas em frente uma à outra já não estariam separadas mas tampouco teriam qualquer relação tangível entre si.
Hannah Arendt


A armadilha que persegue os pesquisadores que procuram analisar o imaginário do professorado no período em questão é a de tentar buscar as referências ao ensino de História nos debates ocorridos nas universidades, entidades profissionais, ou mesmo na imprensa. Contudo, não foram nessas instâncias que os professores expressaram suas dúvidas, certezas e angústias, mas nos mecanismos de consulta inaugurados pela Secretaria de Educação nos anos 80, em especial, no que diz respeito ao docentes de 1º e 2º graus.
Foi a partir deles que os professores discutiram e expuseram, com mais clareza e espontaneidade, a intimidade de seu desgaste cotidiano, assim como a defasagem e inadequação de sua formação, ao pensarem em desenvolver possibilidades de mudanças. A discussão iniciou-se, formalmente, na Rede, a partir de 1982, após a vitória do PMDB nas eleições em São Paulo2.
Dentre as propostas da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, estava o agrupamento das oito séries do 1º grau em três ciclos: básico, intermediário e final3. O ciclo básico - integração das duas primeiras séries - foi implantado com o objetivo de diminuir o índice de evasão e repetência da 1ª para a 2ª série do 1º grau. Após sua implementação, a SE, por meio da CENP (Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas), estendeu o processo de reorganização curricular para as demais séries, auxiliada por convênios com as Universidades para assessoria técnica.
Especificamente na área de História, desde o início de 1985, através de convênio entre a CENP e a USP, professores do Departamento de História ministraram cursos ao longo do ano e em períodos de recessos escolares, sendo que nos meses de agosto, setembro e novembro desse ano houve três encontros com um representante de cada Delegacia de Ensino (DE). Esses encontros tiveram como objetivo discutir as diversas linhas historiográficas, realizar críticas ao guia curricular existente e, a partir daí, lançar as bases de uma nova proposta.
Em maio de 1986, cada Delegacia de Ensino foi convidada a enviar um grupo de no mínimo 05 e no máximo 20 professores para discutir um texto preliminar, que mais tarde serviria de base para a 1ª versão da Proposta Curricular de História.
A partir dessa discussão pretendia-se iniciar um processo de ampla consulta ao professorado, adiado em função de paralisações da categoria em campanhas salariais.
A tão esperada e protelada discussão da Proposta pelos professores de 1º e 2º graus ocorreu nos dias 27, 28 e 29 de julho de 1987, com a CENP sob outra coordenação e desta vez com toda a Rede de Ensino, que foi chamada a elaborar relatórios para serem enviados às Equipes Técnicas da CENP. Esses relatórios dos professores sobre a Proposta Curricular de História, produzidos em meio à acirrada polêmica aberta pela grande imprensa em torno das Propostas Curriculares, num contexto em que dirigiam os órgãos educacionais agentes alheios ao que fôra feito até então, trazem inúmeras questões e concepções que permeiam o seu cotidiano de trabalho. Nesse sentido, entende-se que revelam muito da sua prática pedagógica, na medida em que explicitam o seu posicionamento frente ao conhecimento, aos alunos, à escola, aos órgãos governamentais ligados à educação, ao uso do livro didático e à própria História.
É claro que contêm os mesmos limites de outros instrumentos de pesquisa, tais como entrevistas ou observação de aulas, pois não deixam de ser carregados de subjetividade, referenciados a um determinado momento histórico, produzidos para e em circunstâncias específicas, sem levar em conta que podem não representar necessariamente a média da prática pedagógica do professorado paulista de cada região4. No entanto, constituem-se em material que expressa reflexões sobre o ensino de História pois, ao discutirem outra possibilidade ou proposta de trabalho, vieram à tona não só desejos e medos de mudanças, como muitos de seus hábitos e embates do dia-a-dia.
Para a maioria dos professores, a Proposta Curricular em apreciação significou a perspectiva de mudar. Mudar seu trabalho rotineiro, repensar os conteúdos há anos repetidos, os programas que nunca chegaram a ser cumpridos, as insatisfações advindas das condições e dos procedimentos do trabalho pedagógico, apontando a falta de interesse por parte dos alunos até mesmo por entenderem que a disciplina tornou-se "elitista". Muitos deixaram claro que as mudanças importariam diretamente em alterações na forma de conceber e pensar o seu trabalho, a História e mesmo a maneira de ver o mundo, pois implicava em "mudar cabeças":
Há vinte anos que aprendi trabalhar de determinada maneira, como posso mudar? (...) Em primeiro tem que mudar a minha cabeça para eu mudar a maneira de trabalhar. (1ª DE Capital)
Frente à história passada e recente dos professores, a possibilidade de participação na elaboração de um projeto de orientação educacional foi uma novidade de grande impacto. É preciso lembrar que, durante a década de 70, a relação dos professores com os órgãos dirigentes da SE fôra marcada pela total ausência de diálogo e com a imposição de "pacotes" que os desqualificavam profissionalmente5.
Nesse sentido, é compreensível que muitos professores carreguem um certo receio e mesmo desconfiança quando convocados a opinar/discutir a Proposta Curricular da CENP, enquanto outros manifestam ter incorporado uma clara postura submissa em relação aos órgãos governamentais.
Esse novo exercício de relacionamento gerou insegurança em relação ao futuro da Rede e da política educacional, assim como temores a respeito da sua estabilidade profissional, não só pelas incertezas acima apontadas, mas porque, desde então, a sua opinião podia ser objeto de avaliação, revelando por inteiro sua concepção educacional, que nunca fôra alvo de reflexão até o momento.
As falas dos professores revelam esses medos e inseguranças, diante da viabilização de mudanças que, mesmo almejadas, assustaram a muitos. Além do medo, interessa perceber a existência de uma apreensão em relação ao momento vivenciado, ao contexto em que se situam essas falas. A perspectiva de mudanças vinha desde a posse do primeiro presidente civil, em 1985, das eleições de 1986, do Congresso Constituinte e dos discursos de setores conservadores da sociedade e de partidos políticos, como PFL e PMDB, que então endossavam a necessidade premente de mudanças, embora indicando a importância de um pacto, de uma aliança, para que a transição ocorresse sem traumas, sem rupturas, gradativamente. Nesse sentido, há uma evidente justaposição entre os argumentos encontrados nos relatórios dos professores da Rede sobre a Proposta Curricular da CENP e o discurso político das forças partidárias hegemônicas do período, sintetizadas no emblema. "É preciso mudar, mas de forma gradativa":
Com essa nova proposta a CENP propõe algo radical. Entendemos que é muito difícil e gostaríamos que houvesse mudanças. Mas como? É preciso que se comece das bases. não pode ser uma mudança como um todo. É necessário que se busque principalmente os estudantes em fim de curso para que, iniciando suas carreiras, já as façam nesse novo sentido. Desse modo a mudança seria gradativa. Achamos muito difícil um professor que dá suas aulas há muito tempo, mudar. Quando muito, ele vai misturar o novo e o antigo. (DE Piracicaba)
Como esta fala revela, não é a mudança em si que assusta, mas o ritmo e o método de como ela vai ser implantada. A década de 70 foi prodigiosa em incutir no professorado a radical dicotomia entre a capacidade de elaborar e a de executar, de produzir saber e saber reproduzi-lo. E agora chegava uma proposta do governo toda baseada na capacidade do professor produzir saber. A questão que se colocava era como operacionalizar essa mudança. Além de muita semelhança com o discurso corrente na sociedade sobre a necessidade de mudanças graduais, também fica perceptível a indicação do "outro", no caso o recém-formado, para a realização das mudanças. Com isso, este relatório da DE Piracicaba traz à tona uma subdivisão que os próprios professores fazem de sua categoria: os professores antigos - incapazes de mudança - e os recém-formados - possuidores de um instrumental teórico adequado aos objetivos propostos.
Que professor é capaz de produzir uma fala como essa? É um professor intimidado por uma concepção de ciência que lhe impõe uma sensação de incompetência, uma concepção de ciência na qual "o não-saber que habita a experiência" é recusado como fonte de conhecimento e na qual "o perigo da indeterminação social e política" necessariamente deve ser abandonado em prol de um conhecimento sólido, seguro e normatizado, isto é, recheado pelas certezas e verdades das idéias instituídas6. Esse professor é incapaz de conceber que o seu cotidiano produz conhecimentos, ou mesmo vislumbrar possibilidades que não constam nos seus manuais.
Todavia, apesar de expressarem temores e inseguranças, ao lado de uma enorme diversidade de obstáculos para a sua efetivação e mesmo divergindo no entendimento do que de fato seriam as transformações, essas colocações foram unânimes em admitir a necessidade de mudanças. A partir desse ângulo, manifestaram unanimidade também no registro de pedidos de cursos, monitorias, assessorias, reciclagens, encontros e fóruns nos quais a proposta fosse melhor detalhada, explicada e nos quais fosse possível a troca de experiências e acompanhamento no desenvolvimento dos trabalhos. A demanda por capacitação vem reafirmar o isolamento e atomização das práticas a que esses professores estavam submetidos até esse momento, bem como o sentido de seus receios e contra-argumentações frente às propostas de mudanças.
E é possível perceber um sutil descompasso entre o tempo que os professores necessitavam para amadurecer uma concepção de ensino apropriada e o tempo que um governo exige para implantação de uma política pública, especialmente um governo que adotara como marketing político o slogan da mudança. Ao mesmo tempo em que aparecem pedidos de apoio e de garantias, que traduzem dimensões de posturas passivas, inseguras, apreensivas quanto a eventuais perdas, pedem amparo paternalista dos órgãos competentes. Em muitos relatórios, em especial os da 2ª e 7ª DEs da Capital, professores solicitaram reciclagem à SE, por meio de cursos ministrados por um professor especialista treinado pela CENP, cujo tema seria reformulação do ensino de História. Considerando-se despreparados para colocar em prática a Proposta Curricular em discussão, foram recorrentes os pedidos de treinamentos específicos, sendo que os cursos não aparecem apenas como uma necessidade imediata, já que, conforme determinadas falas, a capacitação do professor é entendida como tarefa que deve ser executada permanentemente.
O que se vai delineando com clareza, à medida que avança a leitura dos relatórios, é uma enorme diversidade de posicionamentos em relação à preparação de profissionais para um novo método de trabalho. Alguns chegam a apontar problemas em relação ao próprio termo reciclagem, enquanto outros chegam não só a solicitá-la, como expressam uma idéia de total submissão frente a esse recurso, chegando a confundi-lo com "adestramento".
Como, ao solicitar cursos ou encontros para apoio ou troca de experiências, o professorado remete-se a profissionais que estão na universidade ou em instituições ligadas à Secretaria de Educação, interessa acompanhar a explicitação de como esses órgãos são vistos e quais as funções que lhes são atribuídas. Por um lado, aparecem insistentes pedidos de auxílio e monitorias, expressos de formas diversas, que podem ser traduzidos por paternalismo e intercâmbio, conforme considerações anteriores; por outro, revelam reconhecimento e ressentimentos quanto às distintas realidades de quem vive o dia-a-dia de sala de aula e dos técnicos que compõem esses órgãos. Importa registrar que o entendimento que alguns têm sobre esses profissionais está muito distante de pensá-los como professores, como sendo seus pares :
A nossa realidade de trabalho é bastante diferente daqueles que ganham para fazer apenas trabalhos intelectuais. É preciso tempo hábil para que isso possa ser feito, e nós não temos tempo nem para nos especializar, quanto mais para sentarmos e resolvermos um problema que nem vocês, especialistas técnicos, conseguem resolver. (1ª DE Capital)
É possível apreender nessa fala um profundo ressentimento pelo qual perpassam várias idéias. A primeira expressa uma forte separação entre o trabalho dos técnicos da CENP - que seria um trabalho intelectual - e o dos professores - que, mesmo não definido, seria um trabalho de execução prática. Uma segunda idéia é a de que o professor não tem tempo para se especializar, fruto direto das condições de trabalho que lhe foram impostas nos últimos anos, devido ao rebaixamento salarial. E, finalmente, apontam que caberia, acima de qualquer outro profissional, aos especialistas técnicos, a elaboração do projeto educacional. O especialista aparece aqui, novamente, como alguém que se interpõe entre a existência real de cada um e o saber, definindo o que deve ser trabalhado em sala de aula com o aval do responsável por esse trabalho. No limite, para muitos, a solicitação por parte dos técnicos da CENP, para que os professores se colocassem e opinassem sobre a Proposta Curricular, era uma atitude que não condizia com o papel de um especialista. Mais uma vez, o agente das mudanças é o outro. Não é mais o professor recém-formado que aparece como o indicado para concretizá-las, mas técnicos e órgãos competentes.
Ainda cabe considerar que, quando passam a se pensar como agentes das mudanças, os professores esbarram na sua formação acadêmica, distante das questões formuladas pela Proposta Curricular:
(...) a universidade atual que é a instituição formadora dos docentes não prepara para a "História Nova" e sim para a História chamada de oficial - e que chamamos de tradicional. (DE Santos)
Em meio a todas estas discussões e colocações, a crítica à formação obtida na universidade aparece com força e, muitas vezes, é apontada como a principal causa da atual situação do ensino de História . O maior ataque é dirigido à formação linear e factual obtida na universidade. Nesse sentido, as falas não partem de um professor passivo, mas de um profissional descontente consigo mesmo, havendo inclusive colocações que desqualificam e criticam o nível de ensino das faculdades, onde a formação acadêmica é questionada.
A partir da exposição desta deficiência da profissionalização obtida na universidade, alguns professores - conforme traços de sua própria formação e bastante próximos daqueles apontamentos de que as mudanças deveriam ser gradativas, chegaram a propor a reestruturação e reformas nos currículos dos cursos universitários.
Os professores percebem que a universidade não se coloca como formadora do profissional que vai atuar no ensino de 1º e 2º graus, numa defasagem que tem origem na própria divisão feita, por muitos professores universitários, entre ensino de História e produção historiográfica. E os professores da Rede, em seus relatórios de 1987, não poupam críticas a essa omissão da universidade. Na ânsia de transferir a culpa de sua incapacidade de elaboração frente às novas perspectivas e metodologias de trabalho ao 3º grau, os professores chegaram a adotar, reincidentemente, uma visão etapista para a necessária mudança na Rede de Ensino, muitas vezes acompanhada de uma concepção hierárquica do saber, que apresenta em ordem crescente o Professor I, Professor III, técnicos da CENP e professores universitários.
Entretanto, as manifestações mais significativas para este estudo são as que, além de expressarem traços da formação do professorado paulista, apontam para concepções que os mesmos têm sobre o conhecimento e até sobre suas posturas de vida, no que diz respeito a uma constante busca do "todo", do "integral". É o caso da formulação expressa no relatório da 2ª DE Capital, no qual afirmam
(...) como é sabido que a formação filosófica e política do professor é muito deficiente, o projeto jamais será aplicado integralmente porque o docente não terá noção do que está a fazer (2ª DE Capital),
o que pressupõe a valorização de um sistema educacional homogêneo, no qual o professor necessariamente precisa estar totalmente identificado com o que seria o referencial teórico e metodológico da Proposta Curricular. Algumas falas foram mais longe, ao tentarem identificar, por trás da proposta em discussão, uma "postura científica alicerçada no materialismo dialético e histórico" - o que sinaliza para a confusão e o desentendimento, ou a exploração por terceiros em torno do que estava sendo proposto, o que os aproximava do discurso conservador manifestado pela grande imprensa paulista7. Daí, ser invocado, como dificuldade para a sua implantação, o argumento de que o conjunto do professorado não é portador de um conhecimento baseado nessa concepção teórica:
(...) o método proposto exige do professor uma postura científica alicerçada no materialismo dialético e no materialismo histórico, sem o qual, efetivamente, não é possível compreender a História. Entretanto, a maioria dos professores foram formados no período da ditadura militar e conseqüentemente, tiveram uma formação filosófica idealista e, portanto, tem uma visão metafísica da História. (DE Presidente Prudente)
Apesar da multiplicidade de posições expressas e da variedade de circunstâncias e/ou aspectos que suscitaram estas manifestações, pode-se surpreender uma linha de argumentação comum em todas as falas até aqui reproduzidas. É recorrente a crítica à formação dos professores, embora essa deficiência seja apontada de diversas e variadas formas. Mas a partir dessa crítica comum à sua formação, as formulações passam a ser cada vez mais heterogêneas e diferenciadas.
Se em relação ao papel desempenhado pelos órgãos técnicos da SE as falas expressam desde uma profunda ironia, até mesmo sugestões para um maior controle sobre o próprio trabalho dos educadores, ressaltando que o seu caráter não deve ser policialesco, mas uma "avaliação de competência"8, diante de outros aspectos e dimensões de suas atividades sociais e/ou profissionais, deixam ver ou pressentir uma infinidade de nuanças e ambigüidades.

Sala de Aula - Espaço do Professor
A heterogeneidade fez-se presente quando os professores falam do espaço da sala de aula. Enquanto alguns sugerem controle sobre o seu trabalho, outros defendem, ferrenhamente, a "liberdade de cátedra":
Na sala de aula o professor age conforme a sua consciência. (...) o professor tem toda liberdade dentro da sala de aula. (...) A liberdade de cátedra é importante no sentido de você poder estar veiculando diferentes ideologias para se criar um espírito crítico. (...) para a liberdade de cátedra, deve haver uma liberdade pedagógica com um programa oficial sem que haja interferências de posições pessoais. (2ª DE Capital)
Curiosamente, a autonomia dos profissionais de ensino foi uma dimensão vital levantada pela Proposta Curricular de História da CENP, que poucos professores perceberam na época, embora muitos fossem fortemente solidários de outros trabalhadores que defenderam, de várias formas, suas prerrogativas nos espaços de trabalho desde os anos 709. Embora essa seja a tônica de toda a proposta de trabalho apresentada aos professores, isto é, pensar a sala de aula como espaço de possibilidades pedagógicas10, o relatório dos professores da 2ª DE da Capital, descrito acima, reafirma a importância da "liberdade de cátedra" como se esta estivesse ameaçada. No entanto, a diversidade ou a confusão e desorientação é tão profunda no seio do professorado que, em outro relatório, da mesma DE, alguns professores expressaram uma posição diametralmente oposta, pedindo pela homogeneidade dos conteúdos, seu nivelamento e sua uniformização.
A leitura e análise desta Proposta Curricular de História por parte do professorado foi antecedida por artigos e editoriais de jornais da grande imprensa, com avaliações bastante pejorativas, influenciando a reação de diversos professores que endossaram essas avaliações sem mesmo conhecerem seu conteúdo. Alguns trechos dos relatórios parecem cópias exatas do teor desses artigos. O jornal O Estado de S. Paulo, por meio de seus editoriais, já em maio anunciou o seu posicionamento frente ao projeto de reformulação curricular da CENP, com o título: "Ainda a Marxização do ensino", termo utilizado por diversos professores em seus relatórios.
O mesmo jornal publicou uma matéria dia 25 de julho de 1987 - "Proposta politiza o currículo escolar"-, às vésperas das discussões na Rede, que se realizaram dias 27, 28 e 29, onde selecionou alguns títulos da bibliografia procurando exemplificar que a proposta de História tinha embasamento na produção da "esquerda radical", omitindo os nomes dos autores. Nesse sentido, é significativo o relatório citado a seguir, por sinalizar o grau de interferência da opinião veiculada pela grande imprensa na leitura da proposta pelos professores:
Nos preocupa a linha marxista adotada pela proposta (..) A bibliografia citada é altamente socializante e a prova contundente da linha extremamente radical e esquerdista da proposta. (DE São João da Barra)
Assim, os relatórios são bastante significativos por expressarem a enorme diversidade dos professores constituintes da Rede Paulista de Ensino e sua leitura atenta permite surpreender as reações desse professorado diante dos ângulos explorados pela imprensa, se forem analisados levando-se em conta o contexto da sua elaboração. Vários deram conta de explicitar a heterogeneidade da Rede, inclusive quanto a essas questões divulgadas na imprensa, sendo que um é exemplar ao particularizar a reação dos professores, inclusive comentando esse artigo acima citado:
Para uma parte dos professores a "proposta" é tendenciosa, uma vez que tem caraterísticas da teoria marxista. Para eles a aplicação da mesma formará ativistas políticos e não cidadãos conscientes e independentes. (DE Santos)
No dia 30 do mês de julho, a Folha de São Paulo publicou, além do editorial, artigos11 que iniciaram uma série de ataques às propostas curriculares e às intenções do governo do Estado nessa reformulação. A expressão populismo, utilizada por esse jornal para denominar a postura governamental, foi muito usada por professores da Rede. Abordando especificamente a proposta de História, esse jornal anunciou: a História será reduzida à "dominação e resistência", expressões que também apareceram repetidas em alguns relatórios.
A imprensa, principalmente por intermédio de O Estado de S.Paulo, Folha de São Paulo e Jornal da Tarde, publicou em torno de 50 artigos criticando a reformulação curricular nos meses de julho a outubro de 1987. Utilizando falas de professores da universidade, várias vezes endossou ataques à Proposta Curricular, argumentando em defesa de uma "liberdade de escolha", do direito do professor fazer opções, criticando a existência de uma proposta curricular como forma de cerceamento e limitação ao trabalho do professor.
Na realidade, toda a polêmica, inclusive a utilizada pela imprensa, explicita um embate no qual estavam em jogo, além de posturas teórico-metodológicas e concepções históricas, questões político-partidárias e violentas disputas de poder e de espaço nas instituições presentes e ausentes na formulação da proposta discutida. E dentro dessa confrontação, ampliada pela imprensa e respaldada por setores universitários, o professor discutiu uma proposta curricular que significava mudar, para muitos drasticamente, a rotina do seu trabalho.

O Lugar da Política
Ao refletir sobre a ideologia que estaria embasando a Proposta Curricular, diversos foram os depoimentos de professores que aí identificam um campo de disputa entre correntes políticas opostas, do qual se auto-excluem. Nas verbalizações de parcelas de professores, ideologia tem um sentido pejorativo, muitas vezes sinônimo de teorias de análises, tendências políticas, orientações de ação. Muitos consideram que o seu trabalho deva ser neutro e, numa perspectiva positivista, chegaram a não permitir, ou admitir, a idéia de transmitirem ideologias. Não aparecem, nesse sentido, questionamentos sobre a ideologia que possam estar veiculados no desenvolvimento do seu trabalho. Enquanto a nova Proposta Curricular lhes pareceu ideológica, a que desenvolvem é neutra, assim como a postura que assumem frente ao conhecimento:
O objetivo é esvaziar a História de seu verdadeiro conteúdo em favor de uma temática com objetivos de radicalização político-social óbvia e permeado de um conteúdo ideológico duvidoso, incompatível com a postura neutra que deve ter o historiador no fazer, transmitir, elaborar e discutir a História. (DE Guarujá)
Mas há falas nas quais a neutralidade na postura do professor não está presente, apontando, ao contrário, para a necessidade do "posicionamento crítico" frente ao seu papel:
(...) rever a atual posição do professor enquanto profissional da educação, que é condicionada pela metodologia conservadora e anti-social da atualidade. Necessidade de criar um novo modelo de professor que saia da esfera das simples indagações pedagógicas encarando a sua existência como parte de um processo político/econômico, e que por isso deve se posicionar criticamente dentro dela para, só assim, projetar em seus alunos a consciência de seres sociáveis e dotados de inteligência. (DE Suzano e Ferraz de Vasconcelos)
Ainda ao analisarem o aspecto ideológico da proposta, uma situação é exemplar para ilustrar a diversidade do professorado de História em São Paulo: de uma mesma delegacia/cidade foram encaminhados dois posicionamentos divergentes, expressos em diferentes relatórios, já que não conseguiram chegar a um entendimento comum sobre como se manifestariam:
Na atual proposta de reforma curricular o aspecto teórico e ideológico sendo bem trabalhado e conduzido, nos dará chances de analisar e questionar, dando oportunidades aos grupos minoritários a escrever a sua História. (DE São João da Barra)
(...) não concordamos e não aceitamos a ideologia e a filosofia sugeridas na nova proposta curricular de História. (DE São João da Barra)

Um Professor sem História
A par do contraponto ideologia/ciência e da idéia de ciência como algo neutro, mais uma oposição apareceu nas colocações de vários professores _ a separação do cidadão e do professor. Conforme referência do relatório da 7ª DE Capital, o homem enquanto cidadão interpreta a realidade que vive com os elementos da própria vida, da sua história de vida, realizando julgamentos dos fatos e tendo direito de fazer opções. Já enquanto professor, não é um sujeito que constitui a realidade. A sua experiência de vida não faria parte da prática de ensinar, pois o professor deveria ser um instrumento de transmissão, uma peça da engrenagem escolar, sem injunções socioculturais, sem direito a opiniões, interpretações ou opções, devendo e podendo abstrair-se da realidade ao transpor os muros da escola ou a porta da sala de aula para não desfigurar uma verdade contida e inerente aos fatos.
Em outras palavras, o professor de História deveria ser um ente a-histórico na sala de aula. O professor secundário seria apenas um veículo da formação dos alunos, portador de um objetivo - expor fatos históricos sem induzir a uma única interpretação. Ao associar essa neutralidade à ciência, explicitaram uma forma de concebê-la como comprometida com a verdade, em contraposição com a associação ideologia/falsidade:
(...) nos recusamos a colocar a 'luta de classes', discriminações e assuntos outros polêmicos de forma apresentada, levando a conflitos, discriminações, violências, ódios, como única forma de superar os problemas reais. Colocaríamos com tratamento científico, isso sim, os temas polêmicos inseridos no contexto histórico, compromissados com a verdade e a realidade social subjacente. (DE Bauru)
De forma um pouco diversa, já que apresenta a noção de luta por uma transformação da sociedade, esse tipo de argumento também se preocupa com a rebeldia dos alunos ao alertar ao professorado que tenha "cuidado especial" no trabalhar o presente histórico:
Nessa nova proposta curricular o professor deverá ter cuidado especial com os seus alunos para que, ao tomar conhecimento de sua realidade de classe dominada, não se torne um ser revoltado contra a classe dominante e sim capaz de lutar para modificar a situação de sua classe. (7ª DE Capital)

O Aluno - Sujeito ou Objeto de Reflexão?
Além da preocupação em trabalhar com o presente, a citação anterior explicita a consciência que diversos professores têm sobre a sua relação com os alunos, onde suas dimensões de saber, poder e autoridade diferenciam-se e não se identificam com os mesmos. Aliás, convém assinalar que o aluno aparece de forma bastante freqüente nesses relatórios: desde a necessidade de transmitir-lhes um programa completo, sem lacunas, com unidade, até a acusação de que são culpados do nível em que se encontra o ensino, por serem desinteressados e mesmo incapacitados. A incapacidade atribuída por alguns professores aos alunos foi, às vezes, justificada com base na sua falta de maturidade, na sua posição sociocultural, ou, até mesmo, na sua nacionalidade, na sua condição de "aluno brasileiro" :
(...) mas será que o aluno brasileiro está preparado para ela, a partir de sua realidade? (DE São João da Barra)
Determinados argumentos caminharam no sentido de tentar "poupar" as crianças do conhecimento de sua própria realidade, expondo uma variante paternalista de conceber os alunos e de se relacionar com eles:
(...) alguns professores resistem a aceitar esta proposta por julgá-la avançada demais, no sentido de que coloca a criança cedo demais frente a uma realidade muito dura, feia e massacrante. A realidade é assim, mas a criança deve ser poupada. (7ª DE Capital)
Esse, inclusive, foi mais um dos ingredientes destacados pela grande imprensa ao rechaçar a Proposta Curricular da CENP:
Se aplicado, o projeto fará com que os estudantes antes mesmo de saírem da infância sejam obrigados a discutir temas como a ocupação das terras dos índios, as injustiças da legislação trabalhista, a fazer exercícios de dominação e resistência12.
Coerente com a maneira de entender o professor como veículo e formador de hábitos, nos relatórios o aluno aparece como objeto de adestramento e da ação disciplinadora. Assim, ainda na maneira como os professores percebem seus alunos, os relatórios traduzem posições completamente diferentes, sustentando a impressão da existência de enorme heterogeneidade do professorado paulista. Até mesmo vindos de escolas pertencentes a uma mesma delegacia de ensino, ficou evidente a diversidade no entendimento sobre a relação do aluno com o conhecimento. Mas no referente à visão que os professores carregam a respeito de seus alunos e das atividades ligadas ao ensino/aprendizagem, chamam atenção as colocações que perguntam:
como o aluno poderá produzir História se ele ainda não tem noção de seqüência de idéias enquanto composição escrita? (DE Diadema)
Variadas são as formas como os alunos aparecem nestes relatórios - incapazes, ingênuos, indisciplinados, passivos, rebeldes e até mesmo obstáculos à implementação da proposta:
(...) recusa dos alunos em seguir uma determinada proposta - a questão de fundo pode ser a descrença dos jovens - o que extrapola a condição de aluno - e pode se encaixar na estrutura social do aluno. (13ª DE Capital)
Nessa fala, a culpa é do aluno, por não querer "seguir uma determinada proposta", sendo que até o motivo desta recusa foi apontado - a sua "estrutura social". O que não fica claro é qual proposta ele se recusa a seguir? A própria família foi lembrada, ou melhor, citada, mais uma vez de forma bastante diferenciada, como outra justificativa para a recusa das mudanças sugeridas na Proposta Curricular da História - como se realmente os posicionamentos de alunos e pais de alunos das escolas públicas fossem levados em conta - e mesmo como causa dos problemas do ensino atual:
E a família, que mantém a escola com fruto do seu trabalho, estaria de acordo em que seus filhos fossem submetidos a uma lavagem cerebral tão primária, desumana e imbecilizante? (2ª DE Capital)
Ao descrever os seus alunos, a maioria dos professores procurou poupar-se de reflexões sobre si, nessa relação. Algumas vozes destoantes, também de forma diversa, lembraram a presença do professor neste processo:
O professor é levado a 'julgar o aluno' tendo como medida os 'valores' do professor - pois o professor normalmente vem de classes sociais diferentes. (1ª DE Capital)
(...) o docente entra em aula para formar e informar (em todos os aspectos), dar ao educando espírito crítico, não para fazer doutrinação. (DE Santos)
A nosso ver o professor é a arma de transformação, ele deverá mostrar ao aluno as formas surdas de resistência, mostrar os caminhos, conscientizar o aluno e dar chance para que ele escolha seu caminho. O professor não deve temer, e sim falar, participar, clarear as idéias do aluno, desde as primeiras séries para que o mesmo tenha esclarecimentos sobre sua posição de classe social e de que ele pode ser um instrumento de transformação e não uma mera 'mão-de-obra barata'. (10ª DE Capital)
As expressões "deixar", "mostrar", "conscientizar", "dar chance", deixam claro, até mesmo em falas pretensamente democráticas, a relação de poder professor/alunos, explicitando práticas autoritárias estabelecidas no cotidiano escolar e no processo de aprendizagem. Desde incapazes devido à imaturidade, ou social e fisicamente insuficientes, os alunos apareceram como impedimento a uma proposta de trabalho que busca ampliar o seu espaço e papel na relação com o professor, na produção de conhecimentos.

Ensino com Pesquisa - É Possivel Produzir Conhecimento?
A partir destas considerações a respeito dos alunos, os professores sinalizaram para uma concepção de ensino desvinculada da pesquisa, manifestando um grande descrédito quanto à perspectiva de trabalho constituidora na Proposta Curricular, que acreditava "na possibilidade da coexistência e mesmo identidade do ensino/pesquisa, ou seja, da produção do conhecimento em todos os níveis sociais e graus de escolaridade (...)"13.
Para muitos professores, a pesquisa da universidade, a pesquisa do outro, produz conhecimentos, mas a sua e de seus alunos não, pois partem de um entendimento elitizado sobre a pesquisa, além de um ponto de vista desfocado em relação às proposições de articulação ensino/pesquisa, que não pressupõem o desconhecimento da história até então produzida, mas um relacionamento ativo e questionador com o conhecimento histórico como referencial para a pesquisa.
A proposta da CENP nos parece pertinente desde que não desprezemos conteúdos importantes para que o aluno se situe dentro do conteúdo do trabalho, de modo que não transformemos o ensino de História em relatos de 'historinhas' de vida, dissociada dos fatores políticos, sociais, econômicos e culturais que construíram a sociedade estudada. (2ª DE Capital)
Em nome de um específico conhecimento científico, vários professores desqualificaram seus alunos em seu saber-fazer, em seu modo de viver, de ser, de pensar e de agir. Ainda relacionado com determinada maneira de conceber o conhecimento científico, como saber unificado, hierarquizado, com unidade e centralização, alguns professores não concebem e não conseguem dimensionar as possibilidades de produzir conhecimentos no exercício da sua prática pedagógica. Assumem, assim, o divórcio entre ensino e pesquisa: ao seu trabalho cabe o ensino como transmissão de informações, enquanto a alguns competentes, a pesquisa e a conseqüente produção de conhecimento. Os mais avançados nesta perspectiva, chegaram a esboçar uma tímida compreensão em torno do trabalho com os documentos possibilitar formas de acesso ao "como o saber é produzido":
Há dúvidas quanto à possibilidade de o aluno/professor ser produtor do conhecimento. Na verdade ele vai, ao trabalhar com os documentos, ter acesso ao como o saber é produzido, e isto precisa ficar mais esclarecido. (8ª DE Capital)
Além de veicularem um entendimento dissociado entre ensino e pesquisa, chegaram a confundir o encaminhamento de professores e alunos questionarem conhecimentos produzidos e produzirem formas sistematizadas de conhecer, a partir de suas experiências, com uma hipotética pretensão de "formar historiadores no 1º grau":
Conclui-se que existe uma divisão do trabalho intelectual e que ao 1º grau não cabe formar historiadores. Não se produz História-ciência no 1º grau. (Diadema)
Mais uma vez, a visão etapista aparece, endossando a separação dos locais para produção e reprodução de conhecimentos:
A proposta curricular não tem fundamento, pois a produção do conhecimento histórico deve ser iniciada nos cursos universitários. (DE Santos)
Ao discutirem a Proposta Curricular, os professores foram explicitando suas concepções sobre os alunos, a matéria que lecionam, seu trabalho, o conhecimento em geral e o de História em particular. Seja pela preocupação com os exames vestibulares, com a contínua transferência de alunos ou com a formação do "alicerce firme", de maneira geral os argumentos sobre os cuidados com o conteúdo a ser trabalhado caminham no sentido de que ele tenha unidade, seqüência e até mesmo lógica.
Muitos professores expressam determinada maneira de conceber História, Ciência e Ensino como algo seqüencial, igual e determinado, que contém um "todo", que se desdobra evolutivamente no tempo e no espaço. Desse modo, para eles, a proposta apresentava o risco de fragmentar ou de pulverizar e parcializar o ensino de História. Dentro dessa perspectiva da seqüenciação, do encadeamento causa e conseqüência, própria do racionalismo positivista, e que deixou suas marcas na formação do professorado, apareceram preocupações com a necessidade da homogeneidade dos conteúdos comuns. Essa idéia expressa, também, a reivindicação de vários professores, de rumos, comando, direção para suas atividades, além de certezas a serem seguidas:
(...) a proposta curricular mostra-se generalizada e ausente de um conteúdo programático que direcionaria e unificaria as atividades a serem desenvolvidas nas várias séries e nas diferentes escolas. (7ª DE Capital)

A Concepção de História
Em muitos relatórios, a História aparece como algo completo, "denso", com fatos que precisam ser conhecidos de forma plena e igual, para que não existam "lacunas" no conhecimento histórico do aluno, em forte perspectiva, totalizante. Articulado a essa pretensão, está uma concepção de História como tempo passado, linear, racionalmente lógico e evolutivo, a ser totalmente estudado, que conflita com novas perspectivas propostas, onde a História é entendida como uma prática social, tendo que conviver com o indefinido, indeterminado, sem a presença de uma lógica fechada ou de um sentido único.
Alguns relatórios permitem ir mais longe e perceber que o presente só aparece, na sua relação com o passado, como causa ou conseqüência. Nesse sentido, a História é entendida como a seqüência de fatos passados:
(...) onde fica a História do passado da humanidade? (DRE - Sul)
(...) a proposta é boa como História da atualidade, mas precisamos da História do passado para melhor compreendê-la. (DE Mauá)
Esta acentuada concepção de História como o conhecimento do passado tem subjacente a visão do passado como o "conteúdo oficial" e "verdadeiro" da História, sendo que vários professores sentem falta deste conteúdo nas sugestões programáticas da proposta:
(...) percebemos um esvaziamento do conteúdo verdadeiro da História. (DE Guarujá)
A proposta de História temática é interessante, porém , deixa grandes lacunas na História oficial. (7ª DE Capital)
Além de ser o "conhecimento do passado" e estar a ele umbilicalmente ligada, a História, para muitos professores, ainda carrega um conteúdo indiscutível - nomes, datas que a compõem:
A cronologia, a datação é objeto da História. (DE Diadema)
Além do entendimento da História como estudo de datas e fatos de um passado acabado e remoto, e da dificuldade de entendimento do presente, a não ser na articulação causa/conseqüência, muitos professores reafirmaram a necessidade da periodização para a "visão global" da História, para a compreensão do todo:
Na medida em que não se estabelece uma periodização, corre-se o risco de uma perda de visão do processo histórico. (8ª DE Capital)
E importa ter presente que essa periodização é significativa, no entender dos professores, na medida em que aponta para etapas a serem cumpridas, para a importância do factual ou para um imprescindível embasamento anterior. A partir dessas maneiras de conceber a História, ficava difícil apreender a sugestão de trabalhar as experiências cotidianas, contidas na Proposta Curricular de História. Daí que, em muitos relatórios, os professores expressaram receios de perder a seqüência lógica da História:
(...) será que trabalhar experiências quotidianas e buscar a apreensão de outras realidades no tempo e no espaço, sem uma visão estrutural da História, não deixaria os fatos um tanto jogados sem uma relação lógica? (DE Lorena)
Na percepção que os fatos tradicionalmente estudados não estão jogados, porque houve uma lógica que os reuniu, articulou, apresentou sistematicamente, chegaram a manifestar que foram reunidos em uma "visão estrutural da História". No entanto, não há questionamento a respeito de que lógica e de que estrutura seria esta. O que assusta os professores é a sua falta, o receio de trabalhar de outra forma, sem aquela lógica estruturadora.
Trabalhar com eixos temáticos, ao invés da História linear, periodizada através de marcos cronológicos que agem como balizas, dividindo-a em momentos estanques, suscitou dúvidas, inclusive com argumentos tanto na defesa da História linear, como na da História temática, que buscavam respaldo em experiências de outros países, explicitando, novamente, contraposições no interior do professorado:
(...) o conhecimento histórico ordenado, periodizado e linear (embora não isento de falhas) é um método que pela própria clareza vem sendo utilizado em escolas de países com uma tradição no repensar da História muito maior que a nossa e, portanto, mais capacitados a julgar sua efetividade no ensino de História. (DE Guarujá)
Nessas divergências podem estar subjacentes as idéias de atraso, subdesenvolvimento e mesmo incapacidade até, para pensar o ensino de História14. Sua rígida articulação ao estudo do passado fez com que muitos professores vissem a Proposta Curricular, que sugeria um estudo articulado a partir das experiências socialmente vivenciadas no presente, perspectivas de trabalho próprias de outras disciplinas, tais como Sociologia, OSPB, ou mesmo Estudos Sociais:
(...) parece uma tentativa de ressuscitar "Estudos Sociais" sob um nome mais prestigioso de História ou uma tentativa de fundir os campos de atuação de OSPB e História descaracterizando e mutilando esta última. (DE Guarujá)
Se nessa última colocação há um tom crítico às atividades curriculares que tentaram descaracterizar o ensino de História, fazendo lembrar a luta pela extinção de Estudos Sociais, em outras aparecem cobranças que sugerem a ausência, na proposta, justamente do aspecto "cívico" dessas disciplinas:
Além dessas noções (tempo; diferença e semelhança; permanência e mudança), acreditamos ser possível passar aos alunos algumas informações básicas sobre a História do Brasil, formando no educando uma consciência cívica. (2ª DE Capital)

E o Livro Didático?
No meio desta profusão de considerações e de questionamentos, uma preocupação constante disse respeito ao material a trabalhar. Nesse sentido explicitou-se, por parte de diversos professores, uma prática pedagógica bastante dependente do livro didático, de um texto base:
Devemos tomar como base que toda mudança é válida, desde que esteja estruturada em termos de material didático para o professor. (2ª DE Capital)
(...) dificuldades para se libertar do livro didático, pela própria formação de alguns professores que não dominam o assunto. (DE Garça)
A própria expressão utilizada, "libertar", revela a relação de dependência e até aprisionamento estabelecida com o material didático, reafirmada de diversificadas formas na maioria das colocações :
É difícil deixar o livro didático. O professor não tem tempo para elaborar temas e deixar totalmente de usar o livro didático (DE Franca)
Precisamos de treinamentos, e para sairmos da camisa de força, que é o livro básico, precisamos ainda de um livro base para não ficarmos perdidos só com textos soltos, o que fica muito difícil não só para nós, mas para o aluno também, devido a uma série de fatores. (2ª DE Capital)
Entretanto, encontram-se nuanças em relação ao uso do livro didático, pois apareceram colocações que, a partir da discussão suscitada pela proposta no sentido da opção de conteúdos com base nas experiências de alunos e professores, pensaram em selecionar o material a ser trabalhado, organizando-o diversificadamente:
(...) o livro base é necessário, mas o professor deve dar explicações, levar o aluno a fazer suas anotações, trabalhar com pesquisas e também buscar-se em outros livros (2ª DE Capital)
Mesmo assim, as opções são limitadas, o livro base não é descartado e a organização do material, sua sistematização e principalmente seleção não aparecem como sua tarefa. Esse trabalho, mais uma vez, é delegado a outros - o material tem que vir pronto, preparado e indicado pela Secretaria de Educação, através de seus órgãos competentes:
(...) se não vier material, não haverá condição do professor pesquisar os temas por conta própria" (1ª DE Capital)
(...) fornecimento de coletâneas de textos e documentos históricos que auxiliem os professores em seu cotidiano escolar. (2ª DE Capital)
Além de indicarem uma grande dependência em relação ao material didático, os relatórios ainda manifestaram uma enorme carência de materiais, de uma infra estrutura para o trabalho dos professores em suas escolas, em suas cidades.

Professor - Mostra a tua Cara
É assim que, através dos seus imaginários sociais, uma coletividade designa a sua identidade: elabora uma certa representação de si; estabelece a distribuição de papéis e das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns; constrói uma espécie de código de 'bom comportamento', designadamente através da instalação de modelos formadores tais como o do 'chefe' , o 'bom súdito', o 'guerreiro corajoso'.
Bronislaw Baczko

Ao analisar o imaginário do professorado paulista registrado nos relatórios elaborados para a CENP, salta aos olhos a diversidade que permeia a abordagem que fazem de inúmeras questões. Mesmo na unidade de algumas delas, tais como a necessidade de mudanças urgentes da atual situação do ensino de História, foram aos poucos se revelando nuanças diferenciadas do que acreditam ser preciso mudar e, principalmente, de quem vai efetuar essas mudanças. Ao explicitarem as mais diversas formas de apreensão sobre o papel do Estado, da escola, da universidade, do aluno e mesmo do seu, enquanto profissional do ensino de História e cidadão, os professores que, em julho de 87, discutiram uma nova proposta de trabalho e elaboraram os relatórios para a CENP, sinalizaram para a existência de um universo difícil de ser mensurado, porque não homogêneo.
Qual a cara do professorado paulista? Essa questão ficou ainda mais difícil de ser respondida, pois não há uma cara, não há um perfil a ser delineado. O que apareceu foi uma Rede de Ensino complexa e com diferenciadas demandas e posicionamentos que não consegue ser enquadrada, disciplinada por conteúdos uniformes e padronizados. Ao contrário do que se dissemina na universidade, que o 1º e 2º graus seriam lugares diferenciados de compreensão e reprodução da História, ao analisar determinadas reflexões produzidas na Academia percebe-se uma articulada convergência em formulações de concepções que embasam o trabalho desses profissionais. Muitas vezes, o discurso é o mesmo, desdobrando-se apenas em linguagens diferenciadas.
A partir daí foi interessante perceber que o 3º grau, tão crítico e aparentemente tão distante, está, ao mesmo tempo, bastante próximo e presente no 1º e 2º graus, sendo mesmo possível afirmar que as duas falas muitas vezes justificam, embora critiquem, simultaneamente, a dicotomia produção/reprodução enquanto locais distintos de trabalho, alimentando-se e negando-se mutuamente.
Por outro lado, se não há uma divisão clara que separe os graus de ensino, também não se pode afirmar que existe uma unidade de posições. Em todos os níveis há compreensões diversas. No caso do professorado de 1º e 2º graus, a profunda heterogeneidade foi revelada a respeito da compreensão que tem sobre o seu papel, a sua relação com os alunos, os órgãos governamentais, o conhecimento e a História.
Talvez, nesse sentido, torna-se compreensível o "risco" que a Proposta Curricular de História - ao incentivar o aflorar dessas diferenças -, significou para diversos setores da sociedade, alinhados com uma política educacional que sempre se pautou em padronizar e homogeneizar a Rede de Ensino, desde a sua organização na década de 30, seja por meio da formação de professores e/ou elaboração de currículos.
É preciso ressaltar que, se o trabalho e a postura dos profissionais do ensino de História, no 1º e 2º graus, mostrou-se extremamente heterogêneos e que muitas concepções atribuídas a estes, se são predominantes, não são consensuais, o mesmo revelou-se em relação à universidade. As reflexões produzidas na Academia sobre o ensino de História são acentuadamente diversificadas. Não há uma fala única, homogênea. A partir dos vários momentos em que se debateu o ensino de História e que professores de todos os graus de ensino posicionaram-se em acirradas discussões, sobressaíam não só posicionamentos divergentes entre a universidade e o 1º e 2º graus, mas entre professores com concepções diferenciadas sobre História.
O que permeia toda essa diversidade, seja ela da Academia ou do 1º e 2º graus, é a paulatina perda do significado do papel social do professor. A inexistência dessa percepção é referendada no resultado de uma pesquisa realizada em 1991, com professores da Rede Estadual de Ensino de São Paulo15, que apontou que a maioria dos professores da Rede hoje exerce outra atividade fora do magistério, é jovem e tem no máximo 05 anos de exercício profissional16, sinalizando para um perfil da categoria como uma "profissão de passagem".
Se entendermos a questão educacional como fundamental num processo de consolidação democrática de uma país, esse perfil explicita uma grave crise no que diz respeito à identidade dos professores atribuída pela coletividade perpetuada no imaginário social.
Em outro ângulo, fica a perspectiva que qualquer projeto ou proposta educacional tem que necessariamente levar em conta essa infinidade de apreensões existentes na Rede Pública de Ensino. Perspectiva essa que, hoje, reveste-se de significativa relevância, devido ao atual debate sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais elaborados pelo MEC com o intuito de superar a atual fragmentação das ações educativas, oferecendo diretrizes mais claras às políticas para a Educação no âmbito do ensino fundamental17. A constatação torna-se mais grave, pois se adota como pressuposto que a elaboração de parâmetros curriculares deva superar uma diversidade que é constitutiva da trajetória dos profissionais da educação. Além disso, na prática, a construção de projetos curriculares globais e oficiais ainda desconsidera a necessidade de criação de mecanismos e instrumentos de participação efetiva dos professores na sua formulação, capazes de dar lugar às múltiplas vozes de quem concretiza os objetivos de ensino em sala de aula.
Notas
1 Esse artigo é uma síntese do último capítulo da dissertação de mestrado Da Intenção ao Gesto - Quem é Quem no ensino de História em São Paulo, defendida no Departamento de História da PUC-SP, em 1992, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Antonieta Martinez Antonacci.
2 Em 1982, após vinte anos de indicações indiretas para os cargos executivos, realizaram-se eleições gerais para governadores de todos os Estados, com um resultado favorável para o Partido do Movimento Democrático Brasileiro, que de 1965 até 1979 fôra o único partido da oposição legalizado.
3 O ciclo básico aglutinaria as 1ª e 2ª séries, o intermediário as 3ª, 4ª e 5ª séries e o final as 6ª, 7ª e 8ª séries.
4 Especialmente nesse caso é importante não esquecer como muitos professores conheceram a proposta: a polêmica suscitada pela imprensa antecipou preconceitos e idéias sobre algo que muitos ainda nem tinham visto.
5 Conforme a reforma de 1971, os programas de ensino, os objetivos e mínimos de conteúdo de cada disciplina eram previamente definidos pelo Conselho de Educação.
6 Ver CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia - o discurso competente e outras falas. São Paulo, Moderna, 1981, p. 05. [ Links ]
7 Como ficou manifesto em editoriais e artigos da grande imprensa, que se ocuparam da Proposta às vésperas e durante os dias de sua análise pelo conjunto dos professores, foi reeditado um clima de "Anos Rebeldes" com pichações em torno de seus encaminhamentos como "Ainda a Marxização do Ensino". In OESP, 24/05/87 [ Links ]ou "A barbarização ideológica do ensino". In OESP, 02/08/87.
8 "Deve haver uma maior cobrança dos profissionais dentro do quadro do magistério. Em hipótese alguma pelo diretor - pelo Conselho de Escola desde que funcione como órgão representativo da comunidade (não policial). E também através de concursos periódicos internos (avaliação de competência - não será avaliado por uma pessoa mas por prova específica) - com cursos antes, subsídios periódicos ao professor - promoção extra." (1ª DE Capital)
9 Cf MARONI, Amnéris. A estratégia da recusa. São Paulo, Brasiliense, 1981. [ Links ]
10 Logo na Apresentação da Proposta Curricular foi afirmado que:
"(...) uma reformulação curricular, que assume existirem múltiplas possibilidades ao trabalho de professores e alunos dentro de um referencial teórico preocupado com a diversidade do social, não padroniza nem homogeneiza as situações de ensino/aprendizagem, podendo abrir caminhos e espaços que, somados aos já existentes, permitam a criação de novas práticas e perspectivas, refazendo constantemente as discussões em torno do ensino de História e da produção do conhecimento."
11 "A ignorância no poder" (editorial); "Populismo na Educação - CENP crítica método científico no ensino de Ciências" e " O que é o conceito de populismo". In Folha de São Paulo, 30/07/87. [ Links ]
12 "Proposta politiza o currículo escolar". In O Estado de S. Paulo, 25/07/87. [ Links ]
13 SÃO PAULO, S.E.E. CENP - Proposta Curricular de História, 1º grau. São Paulo, S.E.E./ CENP/, 1986, p. 04. [ Links ]
14 Ao analisar o surgimento de propostas curriculares no Brasil, na década de 80, principalmente a de Minas Gerais, Souza retoma o caso inglês, onde um grande debate foi suscitado devido à tentativa, por parte do governo, de centralizar e uniformizar os currículos. Isso levou vários grupos a se manifestarem, entre os quais o "History Workshop" - grupo que contribuiu para a renovação dos estudos da História, "que a fizeram ultrapassar os limites da academia indo procurar um sentido social maior para essa disciplina." A experiência britânica é apontada como exemplo da possibilidade de produção de um novo tipo de conhecimento, devido ao estudo de aspectos pouco ou mal explorados pela historiografia tradicional. Ver SOUZA, Maria Inêz Salgado de. "História e Política: Vicissitudes da História no contexto da Reforma Educacional. O caso da Inglaterra". In Educação em Revista. Belo Horizonte, nº 09, jul. 1989. [ Links ]
15 Cf. ALMEIDA, Maria Isabel de. Perfil dos Professores da Escola Pública Paulista. Dissertação de Mestrado, São Paulo, USP, 1991. [ Links ]
16 Portanto, a maior parte dos professores da Rede que vivenciou os debates, reivindicações e questionamentos da década de 80 abandonou as salas de aulas das escolas públicas.
17 PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS - Documento Introdutório. Brasília, Secretaria do Ensino Fundamental, novembro 1995, p. 04.

Representações e Linguagens no Ensino de História1

Ernesta Zamboni2
Universidade Estadual de Campinas


Resumo
O objetivo deste texto é refletir sobre as representações e linguagens mais usadas na produção do conhecimento histórico, no ensino funda-mental. Enfocamos o uso da fotografia, do desenho, da narrativa dos cronistas, dos conceitos e do livro didático como representações do real.
Palavras-chave: Produção do Conhecimento; Representação; História.
Abstract
The objective of this text is to think about the most common ways of expressions used in the production of historical knowledge for the elementary education. We focused in the use of photography, drawings, the narrative of the chroniclers, the concepts and the text book as a representation of the construction of the real world.
Key words: Production of Knowledge; Representation; History.


O propósito deste texto é refletir sobre as representações constantes de diferentes linguagens como a fotografia, o desenho e o texto escrito usados na construção do conhecimento histórico em sala de aula. O tema Representações no ensino de História nos reporta a uma infinidade de situações pela multiplicidade de sentidos que o termo evoca. Esta multiplicidade está associada às mudanças paradigmáticas, a uma crise dos valores contemporâneos, ao fim de uma visão homogênea e absoluta em considerar e analisar os fenômenos sociais e históricos, à visão unitária do mundo, ao questionamento dos discursos científicos, à idéia de progresso, de nação e formação de nacionalidade que caracterizaram, e às vezes ainda caracterizam, o ensino de história em determinada época.
Vivemos em uma era que se define pela expansão das relações virtuais em inúmeras instâncias sociais, redimensionando, conseqüentemente, as categorias espaço e tempo, relações sociais e cultura. Era na qual o espaço é cada vez menor, o tempo cada vez mais veloz, e as relações sociais mais voláteis. Assim, a consideração pelo imaginário deixa de ser uma visão deformadora do conhecimento para se tornar um objeto de estudo na vertente da história cultural e das mentalidades, desenvolvendo-se no momento em que as posturas interpretativas também não dão conta do real.
Essas transformações ocorrem em diferentes momentos do social e o processo educativo não está excluído e nem independente de todas estas mudanças. Elas envolvem um conjunto de relações existentes entre os significantes (imagens e palavras) e os seus significados (as representações).
Nesta articulação a sociedade constrói a sua ordem simbólica, que, se por um lado não é o que se convenciona chamar de real (mas sim uma sua representação), por outro lado é também uma outra forma de existência da realidade histórica (...)3
Tratando-se das análises das representações construídas para atender às exigências educacionais, o nosso olhar dirige-se a várias situações - uma delas ligada à apreensão e construção do conhecimento em sala de aula, isto é, a relação de aprendizagem existente entre os professores e os alunos -, e a outra, às múltiplas mercadorias produzidas pela indústria cultural, como vídeos, livros, filmes, pinturas, gravuras, fotografias, enfim, todos os materiais considerados didáticos.
No processo de produção de tais materiais as mudanças são mais evidentes na escolha das temáticas propostas pela História Nova, às quais foram incorporadas as propostas curriculares, do que no tratamento metodológico a elas atribuído. Nesses materiais, o conhecimento histórico é visto como uma verdade absoluta, homogeneizadora, sem problematização: por exemplo, o tema Trabalho nos livros paradidáticos é enfocado de forma compartimentada, sob a ótica de modelos pré-determinados, criados pela história tradicional - o trabalho compulsório sempre relacionado ao indígena, o escravo ao negro e o assalariado aos imigrantes. Não há texto que mostre as permanências, as simultaneidades, as semelhanças e os diferentes olhares sobre o tema Trabalho.
Nos livros paradidáticos, aparentemente, os seus autores teriam a liberdade e a possibilidade de aproximar o conhecimento histórico da antropologia, da psicologia, da história da cultura, podendo atribuir à história um olhar especial e próximo do cotidiano, sem certezas absolutas, e com uma infinidade de possibilidades, apresentando em suas explicações causas necessárias e nunca suficientes. Na prática, entretanto, isto não acontece. As análises estão fundamentadas na sociologia e na economia como modelos explicativos absolutos.
Consideramos que a essência do conhecimento histórico são as ações humanas repletas de emoção, de sensibilidades, de contradições traduzidas no fato histórico. Concordamos com Pesavento ao afirmar que
Todo fato histórico - e, como tal, fato passado - tem uma existência lingüística, embora o seu referente (real) seja exterior ao discurso. Entretanto, o passado já nos chega enquanto discurso, uma vez que não é possível restaurar o real já vivido em sua integridade. Neste sentido, tentar reconstituir o real é reimaginar o imaginado, e caberia indagar se os historiadores, no seu resgate do passado, podem chegar a algo que não seja uma representação (...)4
Também é parte do conhecimento e do fato histórico o tratamento dado à cultura e ao documento. Como nos lembra Le Goff, o trabalho com o documento
(...) escrito, arqueológico, figurativo, oral, que é interrogar os silêncios da História (...) algo que nos foi dado intencionalmente, ele é o produto de uma certa orientação da História, de que devemos fazer crítica, não só segundo as regras do método positivista, que obviamente continuam necessárias a um certo nível, mas também de uma maneira que eu qualificaria de quase ideológica. É preciso para explicar e reconhecer o documento o seu caráter sempre mais ou menos fabricado5.
Próximo ao documento trabalha-se o conceito de cultura, entendida como manifestação de todos os comportamentos humanos e diretamente ligada à ideologia, tomada como a sistematização de valores e crenças - nada inocentes - e que estão presentes na vida cotidiana, no processo de interação entre os sujeitos. Na ideologia há uma intenção explícita.
Como este procedimento com documentos e suas representações é apresentado nos materiais didáticos ?
Sabemos que os materiais didáticos são expressões de representações e "em cada um deles devemos adotar um procedimento específico para analisá-los". A fotografia como linguagem documental representa uma dada realidade em um determinado momento. O fotógrafo é um sujeito que conhece o tema que está sendo registrado, uma pessoa que tem um olhar direcionado e cheio de significados e significantes. Entre os dois momentos fotográficos, a criação e a produção, o fotógrafo é envolvido em um conjunto de decisões que vão desde a escolha do filme (marca, asa, cor) até a qualidade do papel no qual o filme será revelado. São os detalhes referentes à intensidade de luz, cor, velocidade, aproximação, tipo de lente existentes no momento da fotografia, que dão ao fotógrafo a concretude de suas intenções. Não é indiferente fotografar uma dada realidade como um filme branco e preto ou com filme colorido: os resultados são distintos. Quando se quer dar à fotografia um ar mais intimista, explora-se o filme em branco e preto, jogando com momentos em claro e escuro, sempre na dimensão dos contrastes. Assim, também não é indiferente ao fotógrafo a utilização de um papel brilhante ou opaco, ou mesmo dar à fotografia um tom amarelado, envelhecido. A fotografia é um tipo de representação que expressa a relação existente entre dois sujeitos: o fotografado e o fotógrafo. Este último tem uma ideologia e uma intenção expressas na escolha do outro sujeito a ser retratado, atribuindo-lhe símbolos de vida. Para o fotógrafo é uma representação particular, única. Como diz Benjamin "o espírito dominando a mecânica, reinterpreta seus resultados mais exatos como símbolos de vida"6. Nesse sentido, a representação do real é em si mesma uma transformação do próprio real. Ao pensar neste real, o fotógrafo pensou em todos os referenciais que estão ao seu redor. Portanto, a fotografia não é apenas uma ilustração, é um documento direcionado. Cada fotografia tem um significado e gera significantes, cada pessoa que olha uma fotografia ou um desenho, passa a lê-los com um determinado olhar e busca nestas representações uma mensagem.
Borges7, ao trabalhar com a recuperação da memória e a construção da história dos índios guaranis, mesclou diferentes representações imagéticas: as planchas de Debret, a fotografia e os desenhos dos índios. Entre os vários procedimentos adotados com a intenção de reavivar a memória dos índios sobre os fatos vividos por seu povo, o pesquisador utilizou várias planchas de Debret, entre elas as xilogravuras criadas por Hans Staden localizadas no livro Duas viagens ao Brasil.
O desenho de Debret a respeito do apresamento indígena nos campo de Curitiba não deixa de ser o olhar europeu sobre um povo e um dado local. Se nos detivermos na representação das figuras femininas e das crianças, nos traços das pernas, da forma do corpo e do cabelo, concluiremos que elas estão mais próximas das figuras européias do que da mulher indígena.
(plancha nº 20)8


No processo de observação da plancha foi solicitado aos índios que escrevessem algo sobre a cena9. A escrita produzida é também um tipo de representação. Depois disso, pediu-se aos mesmos índios que além da escrita, representassem-na por meio de desenho e que escrevessem, com base neste, um texto.



A partir da representação de Debret, os índios produziram uma segunda, diferente da anterior. No novo desenho, as índias estão vestidas, o perfil das mulheres está mais próximo do real vivido. O texto10, por sua vez, evoca a autoridade do cacique, a necessidade das relações de parentesco, bem como as conseqüências do não atendimento às suas decisões.
Este é um dos exemplos que mostra como o trabalho do historiador é um trabalho sobre palavras, que por sua vez constituem representações construídas sobre outros referenciais carregados de valores, de traços culturais e ideologias. Nas representações citadas estão expressas as preocupações dos autores de manter valores e permanências existentes no seu grupo, como, por exemplo, a importância de se respeitar a autoridade do cacique. Este trabalho que envolveu a observação, a recuperação de uma memória, a análise de uma determinada representação e a produção de novas representações foi objeto de produção/transmissão e construção de representação, integrando um enfoque compreensivo de comunicação de massa.
Todos os produtos culturais, ao serem apropriados, o são por grupos inseridos em contextos sócio-culturais específicos, portanto, há modos específicos de apropriá-los. Qual é a construção da representação de um real expresso por meio das palavras?
Com relação à produção do conhecimento em sala de aula, lidamos diretamente com a construção e elaboração de imagens e palavras. Nesse aspecto, a compreensão dos sentidos das palavras é de fundamental importância. Estudos de Vygotsky sobre a formação do pensamento e da linguagem da criança afirmam que "o significado das palavras é um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa - uma união da palavra e do pensamento"11. Quando uma palavra adquire determinado significado, pode ser aplicada a outras situações: é a aplicação de um conceito a novas situações concretas, é um tipo de transferência.
Exemplo do que se tem afirmado aqui são as representações criadas pelos alunos de conceitos e situações que nos parecem unidimensionalmente compreensíveis. Silva, em sua investigação a respeito do processo de construção de conhecimento em uma 5ª série do ensino fundamental, com o objetivo de conhecer as idéias prévias dos alunos sobre os bandeirantes, propôs a seguinte pergunta: "O que vocês sabem sobre os bandeirantes?"12 e solicitou a representação de seus conhecimentos por intermédio de desenhos. Depois destes dois tipos de representação, constatou que a palavra "bandeirante" estava associada ao mundo conhecido pelos alunos, como a Rodovia Bandeirantes, grupo dos escoteiros, a bandeira, os exploradores de terras e de ouro e a personagens históricos. Portanto, a palavra "bandeirante" tinha para os alunos diferentes significados.
Para o professor trabalhar a dimensão histórica dos bandeirantes, dotando o tema de real significação histórica para os alunos, foi fundamental a exposição inicial das diversas significações que a palavra "bandeirante" continha.
O procedimento adotado pelo pesquisador está correto pois durante o processo de aprendizagem é necessário que o professor trabalhe as representações dos conceitos espontâneos das crianças e a sua capacidade de defini-los. O aluno aprende um conceito no momento em que sabe usá-lo em situações concretas e, paulatinamente, vai interiorizando-o a ponto de aplicá-lo em outras situações; é a chamada fase da transição do conhecimento concreto para o abstrato ou vice-versa13.
Outro exemplo de "como se dá o processo de conhecimento em História e Geografia em classes da 2ª série" é a pesquisa desenvolvida por Camargo em uma escola pública de Campinas14. O trabalho tinha como objetivo estudar a exploração e o desenvolvimento da criatividade e do imaginário no interior da sala de aula, tendo como referências o livro didático e a relação entre a professora e os alunos. A hipótese da pesquisadora era a do furto do imaginário infantil no interior da sala de aula, provocado pela ação docente e pela estrutura e conteúdo do texto didático. Em uma das aulas o tema era o Folclore, e a professora perguntou aos alunos o que eles sabiam sobre os índios15. Uma criança disse que eram seres do outro mundo e outra, que eram duendes. Sem explorar o referencial que levou as crianças a essas afirmações, ou mesmo despertar o interesse delas para novos referenciais culturais, a professora perdeu a oportunidade de trabalhar com as semelhanças e diferenças, permanências e mudanças existentes entre os grupos culturais e sociais. Ela simplesmente respondeu: "os índios são os indígenas", transmitindo assim uma falsa informação.
Este é mais um dos inúmeros exemplos que focalizam o distanciamento existente entre a fala dos professores, o texto do livro didático e o universo cultural dos alunos. Se a professora tivesse pedido aos alunos que explicassem o porquê de suas respostas, teria penetrado no seu universo cultural, identificado as razões que os levaram a responder daquele modo, explicado e/ou proposto uma pesquisa na qual as crianças encontrariam os fundamentos das suas representações, ampliando-as.
Os documentos históricos também contêm uma infinidade de situações que nos permitem trabalhar com diferentes representações sobre o mesmo objeto. Um deles é o da representação sobre o tatu feita por cronistas antigos. Pero Magalhães Gandavo assim o descreve em História da Província de Santa Cruz (1576):
(...) o mais fora do comum dos outros animais (...) chama-lhe tatus e são quase como leitões: tem um casco como de cágado, o qual é repartido em muitas juntas como lâminas e proporcionadas de maneira que parece totalmente um cavalo armado. Têm um rabo comprido todo coberto do mesmo casco. O focinho é como de leitão, ainda que mais delgado e só botam fora do casco a cabeça. Têm as pernas baixas e criam-se em covas como coelhos. A carne destes animais é a melhor e mais estimada que há nesta terra e tem o sabor quase como de galinha (...)16
E Gabriel Soares de Souza em 1587 no Tratado descritivo do Brasil assim o faz:
(...) é um animal estranho, tem as pernas curtas, cheias de escamas, o focinho comprido cheio de conchas, as orelhas pequenas e a cabeça que é toda cheia de lâminas redondas (...) quando este animal tem outro, mete-se todo debaixo destas armas, sem lhe ficar nada de fora (...); tem as unhas grandes, com que fazem as covas debaixo do chão, onde criam. Mantêm-se de frutas silvestres e minhocas, andam devagar e, se caem de costas, têm trabalho para se virar, e têm barriga vermelha cheia de verrugas (...)17
Em ambas as representações, o tatu é descrito a partir de referências conhecidas, com o objetivo de dar concretude às suas falas: Gandavo compara-o com outros animais que fazem parte do seu universo conhecido "são quase como leitões", "têm casco como de cágado", "criam-se em covas como coelhos", "o sabor quase como de galinha". Enquanto isso, Gabriel Soares de Souza utiliza-se de outros referenciais: "a cabeça é toda cheia de lâminas redondas", "quando este animal tem outro, mete-se todo debaixo destas armas", "mantém-se de frutas silvestres e minhocas", "tem barriga vermelha cheia de verrugas". Nestas representações sobre o tatu, animal desconhecido pelos europeus, ambos criam uma representação baseada no significante, isto é, numa imagem sobre o tatu.
Os contos camponeses medievais foram criados no fazer social, por sujeitos que viviam no acontecer cotidiano, subjugados pelo poder do senhorio, dos poderosos, sem nenhuma lei que os amparasse e os protegesse. Criar, imaginar e narrar histórias baseadas no cotidiano, em uma sociedade fundamentada na oralidade, eram os meios encontrados pelo povo para manifestar sentimentos de alegria, tristeza, injustiça, revolta, dificuldades e comportamentos imaginários de que os camponeses lançavam mão ou não para sair do estado de miséria em que viviam. Estes contos camponeses transmitidos oralmente no final do século XVII, foram registrados por Charles Perrault e reconhecidos nos salões literários franceses, sendo fundamentalmente, os atuais contos infantis, tão bem estudados e explorados por Darnton. São as versões das histórias da Cinderela, Joãozinho e Maria, Chapeuzinho Vermelho, Mamãe Ganso, O Gato de Botas.
A representação existente na História do Gato de Botas mostra que a única saída para o estado de pobreza e miséria em que viviam os pobres, era o uso da esperteza e da astúcia, bem como da ignorância e ingenuidade dos mais favorecidos. É a figura do gato que coloca em prática todas as artimanhas necessárias para que o seu proprietário possa casar-se com a filha do rei e sair da situação de pobreza em que vivia. Os pobres só conseguiam conquistar um status melhor na sociedade por meio do casamento e da esperteza.
Outras histórias representam a pobreza, a fome, a doença e o alto índice de mortalidade de mulheres, são os contos de Joãzinho e Maria e a Cinderela e/ou Gata Borralheira. No primeiro conto, um lenhador é instigado pela mulher, por motivos de extrema miséria, a abandonar o casal de filhos, do primeiro casamento, na floresta. As crianças se salvam porque são atraídas pela casa da bruxa que era coberta de doces, e quando nela se encontravam, conseguem escapar de morrer na panela de água fervente, pela esperteza. No segundo conto, a Cinderela só consegue sua liberdade com a ajuda de uma fada e pelo fato de se casar com o príncipe. Nas histórias, a madrasta geralmente personifica a maldade.
O uso dos contos como linguagem e representação para se conhecer a história também é uma porta para adentrar o universo cultural e construir a história das camadas populares da sociedade que, analfabetas, acabaram desaparecendo, quase sem deixar vestígios. Como afirma Darnton, "rejeitar os contos populares porque não podem ser datados nem situados com precisão, como outros documentos históricos, é virar as costas a um dos poucos pontos de entrada no universo mental dos camponeses, nos tempos do Antigo Regime".18
Com relação aos livros paradidáticos e didáticos, eles entram na sala de aula como objetos, cuja intenção é apresentar um conhecimento já organizado, fechado. Têm um status especial, foram produzidos para a sala de aula. Portanto, cada um deles tem uma forma particular de organização. Os textos são curtos, bem divididos e com uma linguagem especial. São colocados na sala de aula como sujeitos que intermediam a relação de conhecimento entre o professor e o aluno. Muitos apresentam uma parte introdutória com orientações de como usá-los e explorá-los. As imagens são postas ao lado dos textos, muito mais como meras ilustrações do que como um outro texto a complementar o principal. Em inúmeros livros didáticos não há fontes que indiquem a origem das ilustrações. Quanto às palavras usadas nos textos, são destituídas de sentido para os alunos; eram válidas para uma determinada época, mas hoje não há uma atualização das palavras usadas, distanciando-se do universo lingüístico dos alunos. Como exemplo cito: "bandeirantes", "o bloqueio continental", "a tomada" de Constantinopla, o "esfacelamento" do Império romano, a "queda do Império Romano", "Inconfidência Mineira" "Inconfidência Baiana". Além destas palavras estarem desatualizadas, há nos livros o uso de outras que expressam claramente a ideologia do autor, como por exemplo a palavra "inconfidente" para os grupos de pessoas que participaram dos movimentos em Minas Gerais e Bahia e cujo objetivo era a separação do Brasil de Portugal, ou ainda a denominação de "rebeldes e arruaceiros" aos brasileiros que lutaram por seus direitos na "Noite das Garrafadas", em 1824.
Segundo Vygotsky, o significado de uma palavra representa um amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se se trata de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento. Uma palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da palavra, seu componente indispensável19.
Se o texto é formado por um conjunto de representações, com a ausência de significados não há aprendizagem. Assim também a teoria da associação é igualmente inadequada para explicar o desenvolvimento do significado das palavras, como no caso do "bloqueio continental".
Os paradidáticos são mais fáceis de serem produzidos por sua natureza temática. Os temas e os procedimentos geralmente são atuais, muitos deles síntese de trabalhos acadêmicos. Alguns autores, com a intenção de transmitir uma visão crítica da história, quando se referem a determinados sujeitos, criam representações que acabam adulterando o conhecimento e provocando o seqüestro dessa mesma história. Uma das figuras que mais sofre esse tipo de tratamento é D. Pedro I. Em alguns livros20, ele é apresentado como pessoa irresponsável, inconseqüente, mulherengo, sem vontade firme. Representações desta natureza transmitem aos jovens a idéia de que a independência ocorreu por um ato voluntarioso, distanciando-o de um processo político, no qual diferentes sujeitos estavam envolvidos. Por outro lado, a representação de Tiradentes, um herói construído pelos republicanos, assemelha-se à figura de Jesus Cristo.
Concluindo, quero enfatizar a existência de inúmeras outras linguagens que produzem também outras representações utilizadas em sala de aula e que são diretamente voltadas para a produção e compreensão do conhecimento histórico, principalmente em uma sociedade imagética como a nossa, caracterizada pela comunicação de massa, pela força das imagens produzidas para e pela televisão. Todos esses processos representativos são mão única, isto é, temos diante da televisão uma atitude passiva, sem diálogo.
A nossa escolha na análise de algumas representações foi determinada pela presença e mediação do professor em todo processo interativo, pois a produção da aprendizagem não é simples nem fácil, é eivada de representações e clarezas. Por não ser um processo unidimensional, exige uma série de elaborações intelectuais e é neste contexto que inserimos o presente estudo.

Notas
1 Este texto foi apresentado no 3º Encontro de Professores de História em Curitiba, na UFPR no mês de julho de 1998.
2 As idéias contidas neste texto são resultantes de pesquisas desenvolvidas na pós-graduação e os exemplos usados foram autorizados pelos meus orientados: Cláudio Borges da Silva, Paulo Humberto Porto Borges e Simone Cristina Camargo.
3 PESAVENTO, Sandra Jatahy. "Em busca de uma outra história: Imaginando o Imaginário". In Revista Brasileira de História. São Paulo, Contexto/ANPUH, vol. 15, nº 29, 1995, p.16. [ Links ]
4 Idem, p.17.
5 LE GOFF, Jacques e outros. A Nova História. Lisboa, Edições 70, s/d, p. 34. [ Links ]
6 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. 3ª ed., São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 105. [ Links ]
7 BORGES, Paulo H. P. Ymã, Ano Mil e Quinhentos: Escolarização e Historicidade Guarani Mbya na aldeia de Sapukai. Dissertação de Mestrado, Campinas, UNICAMP, 1998 (mimeo). [ Links ]
8 DEBRET, Jean B. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/EDUSP, tomo I, 1989, p. 20. [ Links ]
9 BORGES, Paulo H. op. cit. O índio Adílio da Silva Benitez escreveu: "Antigamente o povo guarani vivia bem em suas aldeias. Mas os brancos chegaram com bastante gente para começar guerra com o guarani e muita gente acabou morrendo. Agora, já não tem tanta gente. O povo branco encontra-se em todo lugar e sobraram poucos guarani", p. 88.
10 Idem. "São duas mulheres presas carregando cinco crianças que estão chorando de fome, e mais dois soldados que estão acompanhando. Elas estão presas. Elas conversam: Puxa, a gente devia ter ouvido o cacique. Agora, a gente está presa e nenhum parente nunca mais vai saber o que aconteceu com a gente. A gente está presa porque não ouviu o cacique". Valdo da Silva Vera, p. 87.
11 VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo, Martins Fontes Editora, 1991, p. 69. [ Links ]
12 SILVA, Cláudio B. Labirintos da Construção do Conhecimento Histórico. Dissertação de Mestrado. Campinas, UNICAMP, 1966, (mimeo). [ Links ]
13 VYGOTSKY, L. S. op. cit., p. 69.
14 CAMARGO, Simone C. O furto do imaginário em sala de aula. Trabalho de Iniciação Científica e TCC. Campinas, UNICAMP, 1998, (mimeo). [ Links ]
15 É necessário chamar a atenção para o erro que comete a professora ao incluir a temática "indígena" no tema "folclore". O referencial da professora é estereotipado, além de estudar de forma equivocada os povos indígenas. Este procedimento pode reforçar preconceitos e dicriminações.
16 AMADO, Janaína e GARCIA, Ledonias F. Navegar é Preciso. Grandes descobrimentos marítimos europeus. São Paulo, Atual, 1989, p. 43. [ Links ]
17 Idem, pp. 43-44.
18 DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro, Graal, 1986, p. 32. [ Links ]
19 Idem, p. 105.
20 Coleção Cotidiano da História. São Paulo, Ática, 1989.

Esta é a versão em html do arquivo http://www.rededosaber.sp.gov.br/contents/SIGS-CURSO/sigsc/upload/br/site_25/File/mapa_guerras.pdf.
G o o g l e cria automaticamente versões em texto de documentos à medida que vasculha a web.
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Informes gerais do projeto e “A riqueza dos mapas”
Informes:
Ao abrir a nova videoconferência do ciclo Grandes temas da Atualidade, a
gestora do projeto Apoio à Continuidade de Estudos, Maria Aparecida
Ceravolo Magnani, apresenta o professor Paulo Miceli e esclarece alguns
pontos sobre a certificação dos professores participantes do curso.
De acordo com o projeto, informa Aparecida Magnani, o critério para emissão
dos certificados obedece a três pontos. Serão certificados os professores que
obtiverem no mínimo oito presenças nas videoconferências, oito presenças nas
atividades coletivas e oito conceitos satisfatórios nas atividades, atribuídos
pelo professor-coordenador.
A professora explica ainda os critérios de avaliações que estão no Boletim n
o
63, disponível aqui no site do São Paulo Faz Escola.
Feitos os esclarecimentos necessários, a professora Aparecida Magnani
apresenta o professor Paulo Miceli: “O professor Paulo é especialista na área
de história e faz parte da equipe de autores dos Cadernos dos Professores. Ele
vai falar sobre o mapa das guerras, com a intenção de explorar as raízes desse
mundo contemporâneo cheio de conflitos e pontuado de combates”.
A riqueza dos mapas
O professor Paulo Miceli abriu sua explanação destacando a importância da
cartografia para o entendimento dos conflitos. “Neste primeiro diálogo
gostaria de destacar, como nós, professores de história, devemos perceber e
aplicar nas salas de aula o uso de mapas”.
“Mais do que documentos históricos”, ressalta o professor Miceli, “os mapas
são Monumentos nos quais podemos verificar as raízes históricas dos conflitos
humanos, estabelecidos no cenário do mundo, ao longo de séculos.”
Lembrando um dos grandes historiadores franceses, o professor cita um
pensamento de Lucien Febvre: “A história normalmente registra as más ações
das pessoas, os conflitos, as guerras, as rivalidades, as subjugações de culturas
e até mesmo o extermínio de civilizações inteiras, ao invés de trabalhar as
boas ações humanas.” E, concluindo a idéia inicial, considera que: “na
verdade, quando a gente analisa a história, o que mais nos chama a atenção é o
nível de aperfeiçoamento dos mecanismos de destruição coletiva.”
Segundo o professor Miceli, a cartografia surgiu como um saber estratégico
importante a partir do século XVI, há mais de 500 anos; um sistema de
avaliação entre a humanidade e o seu universo.
Como exemplo, o professor apresentou o mapa da África, de 1914, que revela
um continente dividido entre grandes potências européias, no auge do

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processo do imperialismo. O domínio do continente africano, que teve início
com a conquista de Celta, foi disputado por oito nações, países,
principalmente Ibéricos, que saíram em busca de caminhos para o comércio de
mercadorias, bloqueado pelos turcos, ao conquistarem Constantinopla – hoje,
Istambul.
“Das guerras, desde a América pré-colombiana, época em que os Astecas
dominavam populações, passando pelas grandes guerras do século XX,
essencialmente de 1914/18 e de 1939/45, até as guerras em tempo real,
especialmente no Oriente, que são assistidas no conforto das salas das casas,
demonstram”, diz, “uma característica, até mitológica do ser humano, de ao
invés de construir a solidariedade, perpetuar o acirramento das rivalidades”.
“O que se verifica”, ressalta Paulo Miceli, “é que os conflitos, ainda que
localizados em determinados países, têm uma característica mundial.”
Caminhos abstratos para a imaginação concreta...”
“Eu gostaria”, diz o professor, “de deixar para vocês alguns dados a respeito
da cartografia. Existem várias formas de manifestações cartográficas. Elas
estão nas identificações de limites, fronteiras, nos campos de caça,
estabelecendo as relações de poder entre os vários grupos que formam a
história da sociedade”.
“A cartografia”, completa, “é a primeira linguagem. Surgiu na humanidade em
pinturas rupestres, ou seja, é mais antiga do que a escrita”.
Segundo ele, nossa linguagem cotidiana está assinalada por vocábulos e
códigos que compõem a linguagem cartográfica. Quando dizemos que uma
pessoa está desnorteada, afirmamos que ela não tem norte. Se definirmos uma
pessoa como desorientada, concluímos que ela não tem oriente. Ao
considerarmos uma cidadezinha, dizemos que ela é tão pequena que não está
nem no mapa.
Para explicar a importância de “estar no mapa”, o professor lembrou
Abraham Ortélius – cartógrafo flamengo de Antuérpia, século XVI, nascido
em 1527 e falecido em 1598, autor do primeiro Atlas, o Theatrum orbis
terrarum, no qual representou a Terra Conhecida, em mapas construídos
segundo um sistema de projeção matemática – e contou que, ao terminar o
trabalho, o cartógrafo apresentou-o a um cardeal, que após não localizar a
cidade natal dele no mapa, disse a Ortélius: “Esse mapa está errado, vá fazer
outro”.
Para exemplificar que um mapa pode servir como uma obra de arte, o
professor Miceli citou o poema “O esplendor dos mapas”, de Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos): “um poema histórico e cartográfico.”

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E o esplendor dos mapas,
caminho abstrato para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.
O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias)
dos velhos livros.
Em outro exemplo curioso, que mostra a riqueza e diversidade do uso dos
mapas, o professor Miceli mencionou a obra do inglês Robert Burton, A
Anatomia da Melancolia, na qual o acadêmico e vigário da Universidade de
Oxford diz que a visualização de mapas trazia bem-estar e cura para a
melancolia.
O desenho do Brasil
Na parte final da videoconferência, o professor Paulo Miceli apresenta uma
seqüência cartográfica, que traça a importância geopolítica e estratégica dos
mapas.
Partindo do mapa-múndi extraído da geografia de Ptolomeu, em que as
Américas ainda não são mencionadas, o professor expôs o imaginário bíblico
da época, lembrando que o mundo ali retratado teria sido dividido em três
partes por Noé, após o dilúvio. Partes que correspondem aos seus três filhos –
Sem, Jafé e Cam (o filho amaldiçoado) – que segundo a Bíblia – Gênesis
9:18/19 – teriam povoado toda a terra. A quarta parte, a surgir no futuro, seria
a das Américas.
Ao detalhar o desenho do mapa do Brasil, Miceli explicou as cinco Entradas,
que compuseram a imagem geográfica brasileira, a partir dos conflitos pela
disputa da nova terra. Na primeira, a preocupação era o traçado detalhado da
costa brasileira; na segunda, as fronteiras da Amazônia; na terceira, o
Nordeste; na quarta, o mapa do sertão, descrito como o mapa da antropofagia;
a última, da região Sul, mostra uma cartografia de dentro para fora, ou seja, a
entrada feita do interior do País para o litoral.
O professor Paulo Miceli encerrou o que chamou de diálogo solicitando que
os trabalhos fossem dirigidos com ênfase na importância da cartografia e
desejando “que todos nós encontremos o mapa da educação”.

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