segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

E. Morin Os sete Saberes Necessários à Educação do Futuro

Morin, Edgar - Os sete Saberes Necessários à Educação do Futuro 3a.
ed. - São Paulo - Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2001
Em 1999, a UNESCO solicitou ao filósofo Edgar Morin - nascido na
França, em 1921 e um dos maiores expoentes da cultura francesa no
século XX - a sistematização de um conjunto de reflexões que servissem
como ponto de partida para se repensar a educação do século XXI.
Os sete saberes indispensáveis enunciados por Morin, objeto do presente livro:

- as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão;
- os princípios do conhecimento pertinente;
- ensinar a condição humana;
- ensinar a identidade terrena;
- enfrentar as incertezas;
- ensinar a compreensão;
- a ética do gênero humano,
são eixos e, ao mesmo tempo, caminhos que se abrem a todos os que
pensam e fazem educação e que estão preocupados com o futuro das
crianças e adolescentes.
O texto de Edgar Morin tem o mérito de introduzir uma nova e criativa
reflexão no contexto das discussões que estão sendo feitas sobre a
educação para o Século XXI.
Aborda temas fundamentais para a educação contemporânea, por vezes
ignorados ou deixados à margem dos debates sobre a política
educacional.
Sua leitura levará à revisão das práticas pedagógicas da atualidade,
tendo em vista a necessidade de situar a importância da educação na
totalidade dos desafios e incertezas dos tempos atuais.
Seus capítulos - ou eixos - expõem a genialidade, clareza e
simplicidade do filósofo Morin, num texto dedicado aos educadores, em
particular, mas acessível a todos que se interessam pelos caminhos a
trilhar em busca de um futuro mais humano, solidário e marcado pela
construção do conhecimento.
I - As cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão
É impressionante que a educação que visa a transmitir conhecimentos
seja cega ao que é conhecimento humano, seus dispositivos,
enfermidades, dificuldades, tendências ao erro e à ilusão e não se
preocupe em fazer conhecer o que é conhecer.
De fato, o conhecimento não pode ser considerado uma ferramenta "ready
made", que pode ser utilizada sem que sua natureza seja examinada. Da
mesma forma, o conhecimento do conhecimento deve aparecer como
necessidade primeira, que serviria de preparação para enfrentar os
riscos permanentes de erro e de ilusão, que não cessam de parasitar a
mente humana. Trata-se de armar cada mente no combate vital rumo à
lucidez.
É necessário introduzir e desenvolver na educação estudo das
características cerebrais, mentais, culturais dos conhecimentos
humanos, de seus processos e modalidades, das disposições tanto
psíquicas quanto culturais que o conduzem ao erro ou à ilusão.

O calcanhar de Aquiles do conhecimento
A educação deve mostrar que não há conhecimento que não esteja, em
algum grau, ameaçado pelo erro e pela ilusão. O conhecimento não é um
espelho das coisas ou do mundo externo. Todas as percepções são, ao
mesmo tempo, traduções e reconstruções cerebrais com base em estímulos
ou sinais captados pelos sentidos. Resultam, daí, os inúmeros erros de
percepção que nos vêm de nosso sentido mais confiável, a visão.
Ao erro da percepção acrescenta-se o erro intelectual
O conhecimento, como palavra, idéia, de teoria, é fruto de uma
tradução/construção por meio da linguagem e do pensamento e, por
conseguinte, está sujeito ao erro. O conhecimento comporta a
interpretação, o que introduz o risco de erro na subjetividade do
conhecedor, de sua visão de mundo e de seus princípios de
conhecimento.
Daí os numerosos erros de concepção e de idéias que sobrevêm a
despeito de nossos controles racionais. A projeção de nossos desejos
ou de nossos medos e pás perturbações mentais trazidas por nossas
emoções multiplicam os riscos de erro.
O desenvolvimento do conhecimento científico é poderoso meio de
detecção de erros e de luta contra as ilusões. Entretanto, os
paradigmas que controlam a ciência podem desenvolver ilusões, e
nenhuma teoria científica está imune para sempre contra o erro. Além
disso, o conhecimento científico não pode tratar sozinho dos problemas
epistemológicos, filosóficos e éticos.
A educação deve se dedicar, por conseguinte, à identificação da origem
de erros, ilusões e cegueiras.
Os erros podem ser mentais - pois nenhum dispositivo cerebral permite
distinguir a alucinação da percepção, o sonho da vigília, o imaginário
do real, o subjetivo do objetivo. A própria memória é fonte de erros
inúmeros. Nossa mente tende, inconscientemente, a selecionar as
lembranças convenientes e eliminar as desagradáveis. Há também falsas
lembranças, fruto de pura ilusão.
Os erros podem ser intelectuais - pois os sistemas de idéias (teorias,
doutrinas, ideologias) não apenas estão sujeitas ao erro, como
protegem os erros possivelmente contidos em seu contexto.
Os erros da razão: a racionalidade é a melhor proteção contra o erro e
a ilusão. Mas traz em seu seio uma possibilidade de erro e de ilusão
quando se perverte, se transforma em racionalização. A racionalização,
nutrindo-se das mesmas fontes da racionalidade, constitui grande fonte
de erros e ilusões. A racionalidade não é uma qualidade de que são
dotadas algumas pessoas - técnicos e cientistas - e outras não. A
racionalidade também não é monopólio ou uma qualidade da civilização
ocidental. Mesmo sociedades arcaicas podem apresentar elementos de
racionalidade em seu funcionamento. Começamos a nos tornar
verdadeiramente racionais quando reconhecemos a racionalização até em
nossa racionalidade e reconhecemos os próprios mitos, entre os quais o
mito de nossa razão toda-poderosa e do progresso garantido.
É necessário reconhecer, na educação do futuro, um princípio de
incerteza racional: pois a racionalidade corre risco constante, caso
não mantenha vigilante autocrítica quanto a cair na ilusão
racionalizadora. E a verdadeira racionalidade deve ser não apenas
teórica e crítica, mas também autocrítica.
Os erros paradigmáticos - os modelos explicativos - os paradigmas -
também são sujeitos a erros - de concepção e de interpretação de
conceitos. O paradigma cartesiano, por exemplo - mola mestra do
desenvolvimento científico e cultural do Ocidente - se fundamenta em
contrastes binários: sujeito/objeto, alma/corpo, espírito/matéria,
qualidade/quantidade, sentimento/razão, existência/essência,
certo/errado, bonito/feio, etc. - não encontram, no mundo de hoje, a
fundamentação que parecia possuir no início do século XX. O paradigma
- como o cartesiano - mostra alguma coisa e esconde outras - podendo,
portanto, elucidar e cegar, revelar e ocultar. É no seu seio que se
esconde o problema -chave do jogo da verdade e do erro.

O "imprinting" e a normalização
"Imprinting" é o termo proposto por Konrad Lorenz para dar conta da
marca indelével imposta pelas primeiras experiências do animal recém
nascido. O 'imprinting" cultural marca os humanos desde o nascimento,
primeiro com o elo da cultura familiar; depois da cultura da escola,
prosseguindo pela universidade e na vida profissional.
A normalização - forma de estandartização das consciências - é um
processo social (conformismo) que elimina o poder da pessoa humana de
contestar o "imprinting".
A noologia: possessão
O autor cita Marx, ao dizer "os produtos do cérebro humano têm o
aspecto de seres independentes, dotados de corpos particulares em
comunicação com os humanos e entre si". Edgar Morin está se referindo
às crenças e idéias - muitas vezes reificadas, corporificadas, a ponto
de afirmar que "as crenças e idéias não são somente produtos da mente,
mas também seres mentais que têm vida e poder; e assim, podem
possuir-nos". O homem, na visão do autor, é prisioneiro, por vezes, de
suas crenças e idéias, nos dias de hoje, assim como o foi,
anteriormente, prisioneiro dos mitos e superstições.
O inesperado
O inesperado, no dizer de Morin, "surpreende-nos"; nós nos acostumamos
de maneira segura com nossas teorias, crenças e idéias, sem deixar
lugar para o acolher o "novo". Entretanto, o 'novo" brota sem parar...
Quando o inesperado se manifesta, é preciso ser capaz de rever nossas
teorias e idéias, em vez de deixar o fato novo entrar à força num
ambiente (ou instância, ou teoria) incapaz de recebê-lo.

A incerteza do conhecimento
É preciso destacar, em qualquer educação, as grandes interrogações
sobre nossas possibilidades de conhecer. Pôr em prática as
interrogações constitui o oxigênio de qualquer proposta de
conhecimento. E o conhecimento permanece como uma aventura para a qual
a educação deve fornecer o apoio indispensável. II - Os princípios do
conhecimento pertinente
Existe um problema capital, sempre ignorado, que é o da necessidade de
promover o conhecimento capaz de aprender problemas globais e
fundamentais para neles inserir os conhecimentos parciais e locais.
A supremacia do conhecimento fragmentado de acordo com as disciplinas
impede freqüentemente de operar o vínculo entre as partes e a
totalidade, e deve ser substituída por um modo de conhecimento capaz
de apreender os objetos em seu contexto, sua complexidade, seu
conjunto.
É necessário desenvolver a aptidão natural do espírito humano para
situar todas essas informações em um contexto e um conjunto. É preciso
ensinar os métodos que permitam estabelecer as relações mútuas e as
influências recíprocas entre as partes e o todo em um mundo complexo.
Da pertinência no conhecimento
A pertinência do mundo enquanto mundo é uma necessidade, ao mesmo
tempo, intelectual e vital.
É o problema universal de todo cidadão do novo milênio: como ter
acesso às informações e organizá-las? Como perceber e conceber o
Contexto, o Global (relação todo/partes) o Multidimensional, o
Complexo?
Para articular e organizar os conhecimentos e, assim, reconhecer e
conhecer os problemas do mundo, é necessária a reforma do pensamento.
Entretanto, essa reforma não é programática, mais sim, paradigmática -
é questão fundamental da educação, já que se refere à nossa aptidão
para organizar o conhecimento.
Esse é o grande problema a ser enfrentado pela educação do futuro -
tornar evidentes:
- o contexto: o conhecimento das informações ou dados isolados é
insuficiente; é preciso situar as informações e dados em seu contexto
para que adquiram sentido;
- o global (relação todo/partes); é mais que o contexto, é o conjunto
das diversas partes ligadas a ele de modo inter-retroativo ou
organizacional; assim, uma sociedade é mais que um contexto: é o todo
organizador de que fazemos parte;
- o multidimensional: sociedades ou seres humanos são unidades
complexas, multidimensionais; assim, o ser humano é, ao mesmo tempo,
biológico, psíquico, afetivo, social, racional; a sociedade comporta
dimensões histórica, econômica, sociológica, religiosas; o
conhecimento pertinente deve reconhecer esse caráter multidimensional
e nesse inserir todos os dados a ele pertinentes.
- O complexo: há complexidade quando elementos diferentes são
inseparáveis constitutivos do todo e há um tecido independente,
interativo e inter-retroativo entre o objeto de conhecimento e seu
contexto, partes e todo, todo e partes, partes em si; assim,
complexidade é a união entre unidade e multiplicidade.
A inteligência geral
O desenvolvimento de aptidões gerais da mente permite melhor
desenvolvimento das competências particulares ou especializadas.
Quanto mais poderosa é a inteligência geral, maior é sua faculdade
para tratar de problemas especiais. A compreensão de dados
particulares também necessita da ativação da inteligência geral, que
opera e organiza a mobilização dos conhecimentos de conjunto de cada
caso particular.
A educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e
problemas essenciais e, de forma correlata, estimular o uso total da
inteligência geral. Este uso total pede o livre exercício da
curiosidade, a faculdade mais expandida e a mais viva durante a
infância e a adolescência, que com freqüência a instrução extingue e
que, ao contrário, se trata de estimular, caso esteja adormecida,
despertar.
A educação do futuro, em sua missão de promover a inteligência geral
dos indivíduos, deve ao mesmo tempo utilizar os conhecimentos
existentes, superar as antinomias decorrentes do progresso nos
conhecimentos especializados e identificar a falsa racionalidade.
A antinomia - para Morin, nos dias atuais, os sistemas de ensino
portam antinomias - contradições - criando e alimentando disjunções
entre as ciências e as humanidades, assim como a separação das
ciências em disciplinas hiperespecializadas, fechadas em si mesmas. Os
problemas fundamentais da humanidade e os problemas globais estão
ausentes das ciências disciplinares; o enfraquecimento da percepção
global conduz ao enfraquecimento da responsabilidade (cada um passa a
responder somente por sua tarefa especializada), assim como ao
enfraquecimento da solidariedade (as pessoas não sentem mais os
vínculos com seus concidadãos).
Os problemas essenciais
Disjunção e especialização fechada - hiper-especialização impede tanto
a percepção do global (que ela fragmenta em parcelas) quanto do
essencial (que ela dissolve).
Redução e disjunção - o princípio da redução (limitar o conhecimento
do todo ao conhecimento de suas partes) leva naturalmente a restringir
o complexo ao simples. Aplica às complexidades vivas e humanas a
lógica mecânica e determinista da máquina artificial. Como nossa
educação sempre nos ensinou a separar, compartimentar, isolar, e não
unir os conhecimentos, o conjunto deles constitui um quebra-cabeças
ininteligível.
A inteligência compartimentada, parcelada, mecanicista, reducionista,
enfim - disjuntiva - rompe o complexo do mundo em fragmentos
disjuntos, fraciona os problemas, separa o que está unido, torna
unidimensional o multidimensional. É uma inteligência míope que acaba
por ser normalmente cega. Reduz as possibilidades de julgamento
corretivo ou da visão a longo prazo. Assim, quanto mais a crise
progride, mais progride a incapacidade de pensar a crise; quanto mais
os problemas se tornam multidimensionais, maior a incapacidade de
pensar sua multidimensionalidade; quanto mais os problemas se tornam
planetários, mais eles se tornam impensáveis.

A falsa racionalidade - ou seja, a racionalização abstrata, triunfa
hoje em dia, por toda a parte, na forma do pensamento tecnocrático -
incapaz de compreender o vivo e o humano aos quais se aplica,
acreditando-se ser o único racional. O século XX viveu sob o domínio
da pseudo-racionalidade que presumia ser a única racionalidade, mas
atrofiou a compreensão, a reflexão e a visa em longo prazo. Sua
insuficiência para lidar com os problemas mais graves constituiu um
dos mais graves problemas para a humanidade. Daí, o paradoxo: o século
XX produziu avanços gigantescos em todas as áreas do conhecimento
científico, assim como no campo da técnica. Ao mesmo tempo, produziu
nova cegueira para os problemas globais, fundamentais e complexos,
gerando inúmeros erros e ilusões.
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III - Ensinar a condição humana
O ser humano é a um só tempo, físico, biológico, psíquico, cultural,
social, histórico. Esta unidade complexa na natureza humana é
totalmente desintegrada na educação por meio das disciplinas, tendo-se
tornado impossível aprender o que significa ser humano. É preciso
restaurá-la, de modo que cada um, onde quer que se encontre, tome
conhecimento e consciência, ao mesmo tempo, de sua identidade complexa
e de sua identidade comum a todos os outros humanos.
Desse modo, a condição humana deveria ser o objeto essencial de todo o
ensino. É possível, como base nas disciplinas atuais, reconhecer a
unidade e a complexidade humanas, reunindo e organizando conhecimentos
dispersos nas ciências da natureza, nas ciências humanas, na
literatura e na filosofia, pondo em evidência o elo indissolúvel entre
a unidade e a diversidade de tudo que é humano.
Enraizamento/desenvolvimento do ser humano
A educação do futuro deverá ser o ensino primeiro e universal,
centrado na condição humana. Conhecer o humano é, antes de mais nada,
situá-lo no universo, e não separa-lo dele. Todo o conhecimento deve
contextualizar seu objeto para ser pertinente; "quem somos?" é
inseparável de "onde estamos", "de onde viemos', para "para onde
vamos?". Interrogar nossa condição humana implica questionar nossa
posição no mundo. Para a educação do futuro, é necessário promover
grande remembramento (consolidação) dos conhecimentos oriundos das
ciências naturais, a fim de situar a condição humana no mundo, dos
conhecimentos derivados das ciências humanas para colocar em evidência
a multidimensionalidade e a complexidade humanas.
O humano do humano
O homem é um ser a um só tempo plenamente biológico e plenamente
cultural, que traz em si a unidualidade originária. É super e
hipervivente: desenvolveu de modo surpreendente as potencialidades da
vida. Exprime de maneira hipertrofiada as qualidades egocêntricas e
altruístas do indivíduo, alcança paroxismos de vida em êxtases e na
embriagues, ferve de ardores orgiásticos e orgásmicos e é nessa
hipervitalidade que o "Homo Sapiens" é também "Homo Demens".
O homem e o humano se encontram anelados a três circuitos fundamentais
para sua vida enquanto ser e enquanto pessoa:
- o circuito cérebro/mente/cultura;
- o circuito razão/afeto/pulsão; e
- o circuito indivíduo/sociedade/espécie.
Todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o
desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações
comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana.
"Unitas multiplex": unidade e diversidade humana
Há uma unidade humana; e há uma diversidade humana. A unidade não está
apenas nos traços biológicos da espécie; a diversidade não está apenas
nos traços psicológicos, culturais e sociais. Existem outras unidade e
diversidades perfilhando as características do ser humano em "ser
humano".
Cabe à educação do futuro cuidar para que a idéia de unidade da
espécie humana não apague a idéia de diversidade e que a diversidade
não apague a unidade. A educação deverá ilustrar este princípio de
unidade/diversidade em todas as esferas do conhecimento.
IV - Ensinar a identidade terrena
O destino planetário do gênero humano é outra realidade até agora
ignorada pela educação. O conhecimento dos desenvolvimentos da era
planetária, que tendem a crescer no século XXI, e o reconhecimento da
identidade terrena, que se tornará cada vez mais indispensável a cada
um e a todos, devem converter-se em um dos principais objetos da
educação.
Convém ensinar a história da era planetária, que se inicia com o
estabelecimento da comunicação entre todos os continentes no século
XVI, e mostrar como todas as partes do mundo se tornaram solidárias,
sem, contudo, ocultar as opressões e a dominação que devastaram a
humanidade e que ainda não desapareceram. Será preciso indicar o
complexo de crise planetária que marca o século XX, mostrando que
todos os seres humanos, confrontados de agora em diante aos mesmos
problemas de vida e de morte, partilham um destino comum.
A contribuição das contracorrentes
O século XX deixou como herança contracorrentes regeneradoras.
Freqüentemente, na história, contracorrentes suscitadas em reação ás
correntes dominantes podem se desenvolver e mudar o curso dos
acontecimentos. Devemos considerar, como movimentos importantes e
atuantes:
- a contracorrente ecológica que, com o crescimento das degradações e
o surgimento de catástrofes técnicas/industriais, só tende a aumentar;
- a contracorrente qualitativa que, em reação à invasão do
quantitativo e da uniformização generalizada, se apega à qualidade em
todos os campos, a começar pela qualidade de vida;
- a contracorrente da resistência à vida prosaica puramente
utilitária, que se manifesta pela busca da vida poética, dedicada ao
amor, à admiração, à paixão, à festa;
- a contracorrente de resistência à primazia do consumo padronizado,
que se manifesta de duas maneiras opostas: uma, pela busca da
intensidade vivida (consumismo); a outra, pela busca da frugalidade e
temperança (minimalismo);
- a contracorrente, ainda tímida, de emancipação em relação à tirania
onipresente do dinheiro, que se busca contrabalançar por relações
humanas e solidárias, fazendo retroceder o reino do lucro;
- a contracorrente, também tímida, que, em reação ao desencadeamento
da violência, nutre éticas de pacificação das almas e das mentes.
V - Enfrentar as incertezas
As ciências permitiram que adquiríssemos muitas certezas, mas
igualmente revelaram, ao longo do século XX, inúmeras zonas de
incerteza. A educação deveria incluir o ensino das incertezas que
surgiram nas ciências físicas (microfísica, termodinâmica,
cosmologia), nas ciências da evolução biológica e nas ciências
históricas.
Será preciso ensinar princípios de estratégia que permitiriam
enfrentar os imprevistos, o inesperado e a incerteza, e modificar seu
desenvolvimento em virtude das informações adquiridas ao longo do
tempo. É preciso aprender a navegar em um oceano de incertezas em meio
a arquipélagos de certeza.
A fórmula do poeta grego Eurípedes, que data de vinte e cinco séculos,
nunca foi tão atual: "O esperado não se cumpre, e ao inesperado um
deus abre o caminho". O abandono das concepções deterministas da
história humana que acreditavam poder predizer nosso futuro, o estudo
dos grandes acontecimentos e desastres de nosso século, todos
inesperados, o caráter doravante desconhecido da aventura humana
devem-nos incitar a preparar as mentes para esperar o inesperado, para
enfrenta-lo. É necessário que todos os que se ocupam da educação
constituam a vanguarda ante a incerteza de nossos tempos.

VI - Ensinar a compreensão
A compreensão é a um só tempo meio e fim da comunicação humana.
Entretanto, a educação para a compreensão está ausente no ensino. O
planeta necessita, em todos os sentidos, de compreensão mútua.
Considerando a importância da educação para a compreensão, em todos os
níveis educativos e em todas as idades, o desenvolvimento da
compreensão pede a reforma das mentalidades. Esta deve ser a obra para
a educação do futuro.
A compreensão mútua entre os seres humanos, quer próximos, quer
estranhos, é daqui para a frente vital para que as relações humanas
saiam de seu estado bárbaro de incompreensão. Daí decorre a
necessidade de estudar a incompreensão a partir de suas raízes, suas
modalidades e seus efeitos. Este estudo é tanto mais necessário porque
enfocaria não os sintomas, mas as causas do racismo, da xenofobia, do
desprezo. Constituiria, ao mesmo tempo, uma das bases mais seguras da
educação para a paz, à qual estamos ligados por essência e vocação.

As duas compreensões
Há duas formas de compreensão: a compreensão intelectual ou objetiva e
a compreensão humana intersubjetiva. Compreender significa
intelectualmente apreender em conjunto, comprehendere, abraçar junto
(o texto e o seu contexto, as partes e o todo, o múltiplo e o uno). A
compreensão intelectual passa pela inteligibilidade e pela explicação.
Explicar é considerar o que é preciso conhecer como objeto e
aplicar-lhe todos os meios objetivos de conhecimento. A explicação é,
bem entendido, necessária para a compreensão intelectual ou objetiva.
Mas a compreensão humana vai além da explicação. A explicação é
bastante para a compreensão intelectual ou objetiva das coisas
anônimas ou materiais. A compreensão humana comporta um conhecimento
de sujeito a sujeito. Por conseguinte, se vemos uma criança chorando,
nós a compreendemos, não pelo grau de salinidade de suas lágrimas, mas
por buscar em nós mesmos nossas aflições infantis, identificando-a
conosco e identificando com ela. Compreender inclui, necessariamente,
um processo de empatia, de identificação e de projeção. Sempre
intersubjetiva, a compreensão pede abertura, simpatia e generosidade.
Educação para os obstáculos à compreensão
Há múltiplos obstáculos exteriores à compreensão intelectual:
- o "ruído" que interfere na transmissão da informação, criando o
mal-entendido e ou não-entendido;
- a polissemia de uma noção que, enunciada em um sentido, é entendida
de outra forma;
- há a ignorância dos ritos e costumes do outro, especialmente os
ritos de cortesia, o que pode levar a se ofender inconscientemente ou
desqualificar a si mesmo perante o outro (diversidade cultural);
- existe a incompreensão dos valores imperativos propagados no seio de
outra cultura - respeito aos idosos, crenças religiosas, obediência
incondicional das crianças, ou, ao contrário, em nossa sociedade, o
culto ao indivíduo e o respeito às liberdades;
- há a incompreensão dos imperativos éticos próprios a uma cultura, o
imperativo da vingança nas sociedades tribais, o imperativo da lei nas
sociedades evoluídas;
- existe a impossibilidade, enquanto visão de mundo, de compreender as
idéias e os argumentos de outra visão de mundo, assim como uma
ideologia/filosofia compreender outra ideologia/filosofia;
- existe, enfim, a impossibilidade de compreensão de uma estrutura
mental em relação a outra.

A ética da compreensão
É a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de
modo desinteressado. Demanda grande esforço, pois não pode esperar
nenhuma reciprocidade: aquele que é ameaçado de morte por um fanático
compreende porque o fanático quer mata-lo, sabendo que este jamais o
compreenderá. A ética da compreensão pede que compreenda a
incompreensão.

VII - A ética do gênero humano
"El camino se hace al andar" (Antonio Machado)
A educação deve conduzir à "antropo-ética", levando em conta o caráter
ternário da condição humana, que é ser ao mesmo tempo
indivíduo/sociedade/espécie. Nesse sentido, a ética indivíduo/espécie
necessita do controle mútuo da sociedade pelo indivíduo e do indivíduo
pela sociedade, ou seja, a democracia; a ética indivíduo/espécie
convoca, ao século XXI, a cidadania terrestre.
A ética não poderia ser ensinada por meio de lições de moral. Deve
formar-se nas mentes com base na consciência de que o humano é, ao
mesmo tempo, indivíduo, parte da sociedade, parte da espécie.
Carregamos em nós esta tripla realidade. Desse modo, todo
desenvolvimento verdadeiramente humano deve compreender o
desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações
comunitárias e da consciência de pertencer à espécie humana.
Partindo disso, esboçam-se duas grandes finalidades ético-políticas do
novo milênio: estabelecer uma relação de controle mútuo entre a
sociedade e os indivíduos pela democracia e conceber a Humanidade como
comunidade planetária. A educação deve contribuir não somente para a
tomada de consciência de nossa "Terra-Pátria", mas também permitir que
esta consciência se traduza em vontade de realizar a cidadania
terrena.
Não possuímos as chaves que abririam as portas de um futuro melhor.
Não conhecemos o caminho traçado. Podemos, porém, explicitar nossas
finalidades: a busca da hominização na humanização, pelo acesso à
cidadania terrena.
A ética da compreensão
É a arte de viver que nos demanda, em primeiro lugar, compreender de
modo desinteressado. Demanda grande esforço, pois não pode esperar
nenhuma reciprocidade: aquele que é ameaçado de morte por um fanático
compreende porque o fanático quer mata-lo, sabendo que este jamais o
compreenderá. A ética da compreensão pede que compreenda a
incompreensão.

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