segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Os ventos da revolução arejam o Norte da África

. Por Mário Maestri, de Porto Alegre

Das ameaçadoras entranhas do deserto social, o temido simum da revolução luta para vencer os ventos neoliberais que avassalam o mundo.


Como o temido simum, vento seco, duro, forte, que varre o Saara do sul ao norte, a tempestade formou-se na Tunísia, golpeando, errática, o mundo islâmico − Argélia, Iêmen, Jordânia −, antes de se abater, duríssima, sobre o Egito. A enorme perplexidade sobre a explosão popular se deve, sobretudo, ao fato de ferir duramente a apologia do grande capital sobre uma população mundial muda e imóvel diante dos mandos e desmandos dos poderosos sobre seus destinos. É como se eclodisse, novamente, no mundo, a era das revoluções.
Nada indicaria a sublevação, ao menos na superfície das aparências, fixação eterna da grande mídia. Na Tunísia e no Egito, a economia ia de vento em popa, com importantes aportes de capital estrangeiro, que garantiam fortes taxas de crescimento do PIB: 5% em média, nos últimos 10 anos, em uma Tunísia embalada pelas privatizações e profunda liberalização. O valor das ações egípcias na bolsa do Cairo triplicou desde 2005.

Tunísia, Arábia Saudita e Egito são o tripé da vasta rede de ditaduras que o imperialismo USA levantou no mundo islâmico, após a queda de Reza Pahlevi, o shah da Pérsia, em 1979, para sustentar Israel e a rapinagem geral da riqueza petrolífera que exige a acumulação mundial do capitalismo. Ditaduras com as quais o governo USA conta para combater o Irã e impedir na região o ingresso da China e da Rússia, ambas à procura de mercados e matérias primas. O que explica o desespero do governo e da diplomacia estadunidenses, ao sentirem vacilar, com a multitudinária mobilização, as ditaduras da Tunísia e, sobretudo, do Egito, país de mais de 80 milhões de habitantes e forças armadas de 500 mil homens, a grande guarda pretoriana USA na região, após Israel.

Totalmente superado pelos fatos, o governo Obama enviou às pressas ao Cairo seu mais experiente diplomata para a região, para acelerar a renúncia de Hosni Mubarak, há 30 anos no poder, e tentar pôr fim à mobilização popular (como na Tunísia), antes que ela atinja o núcleo duro do regime. Apoiado pelos governos de Israel, Arábia Saudita, Argélia, por Mahmoud Abbas, da Autoridade Nacional Palestina, e pela alta oficialidade do poderoso exército egípcio, ele desconfessou seu governo. Propôs que o velho ditador seguisse na presidência até as eleições de setembro, como segurança contra a radicalização que poderia originar um Estado do estilo “iraniano” ou “bolchevique”!

Integralismo islâmico

Sobretudo a derrota do nacional-desenvolvimentismo árabe permitiu a construção de regimes clientes do imperialismo estadunidense e europeu, apoiados economicamente, em essência, na liquidação dos recursos energéticos nacionais e no turismo, e em burguesia e classes médias rapazes e despreocupadas com a sorte de população, então, em boa parte camponesa e analfabeta.

A dissolução da URSS, a depreciação do socialismo, o colaboracionismo da esquerda nessa região e a forte repressão que esta última conheceu ensejaram que o integralismo islâmico expressasse rusticamente as reivindicações populares, sob o forte influxo da revolução iraniana − Egito, Turquia, Marrocos, Líbano (Irmandade Muçulmana); Argélia (FIS); Líbano (Hezzbolah); Palestina (Hamas), Jordânia (FAI), Afeganistão (talibãs) etc.

Nas últimas décadas, a África do Norte transformou-se em uma região com grande população [em torno de 200 milhões de habitantes], nas regiões mediterrâneas, com alta expectativa de vida [70 anos, nas regiões], muito urbanizada [Cairo, 14 milhões de habitantes], dominantemente jovem e, hoje, relativamente instruída [10% de analfabetos entre a população masculina de 15 a 24 anos]. Comumente, as mulheres são maioria nas universidades.

Uma população jovem e adulta que, há décadas, vive exasperada pelo desemprego e sub-emprego, que não lhes permitem inserir-se em um mundo que a educação e a grande mídia lhes apresentam pleno de promessas, reais e falsas. Piorando tudo, a forte crise mundial do capitalismo desacelera fortemente a busca, na Europa, nem que seja de trabalho duro e mal pago, realizado sob forte discriminação, quando não de racismo aberto. Dos 10 milhões de tunisianos, um milhão encontra-se fora do país.

Um mundo sem futuro

Nos últimos anos, no Magrebe, o desespero social é tamanho que se tornou quase habitual a auto-imolação de jovens em protesto contra as condições de existência. O estopim da enorme revolta que varre boa parte do mundo árabe foi o auto-sacrifício, pelo fogo, em 17 de dezembro 2010, do jovem tunisiano Mohamed Bouazizi, informático desempregado, de 26 anos, após ser esbofeteado e humilhado pela polícia, que confiscou suas mercadorias de camelô pobre.

As transformações sociais em boa parte do mundo muçulmano ensejam fenômenos políticos raramente registrados pela grande mídia. Entre eles, destaca-se o descrédito crescente do islamismo político entre as novas gerações. Crescidas no desemprego e na informalidade, elas afastam-se de integralismo incapaz de oferecer mais do que medidas paliativas [escolas, hospitais, comedores etc.], pois integrado social e ideologicamente à sociedade excludente, da qual seus dirigentes participam, não raro com destaque.

Característica marcante do movimento na Tunísia e no Egito é seu caráter laico e a reivindicação de liberdade política que ponha fim ao desemprego e miséria popular. Entre os manifestantes destacavam-se mulheres jovens, adultas, idosas. No próprio Egito, a Irmandade Muçulmana somou-se às manifestações apenas após sua consolidação, e deposita suas fichas em El-Baradei, o ocidentalizado e pró-americano ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica.

Fenômeno também pouco discutido é a gênese, principalmente no Egito, de um novo sindicalismo classista, reunido em apenas fundada federação de sindicatos independentes. A sublevação anti-Mubarak é superação das grandes mobilizações contra o apoio, em 2000, do governo egípcio a Israel, e à invasão do Iraque, em 2003; das duras greves de trabalhadores no Delta do Nilo, após dezembro de 2006; das mini-intifadas, em Borollos e Muhalla, em 2008. Foi nas regiões operárias do Egito que a população assaltou delegacias, apoderando-se de armas, durante as últimas manifestações. Desde 2004, no Egito, as ações de protesto de trabalhadores foram mais de três mil!

A praça e as ruas são do povo

O movimento tunisiano apenas catalisou no Egito a profunda oposição popular, à qual se somaram jovens das classes médias, o que levou às ruas, no dia 1º de fevereiro, talvez quatro milhões de manifestantes − um milhão no Cairo; 500 mil em Alexandria; 300 mil em Suez; 250 mil em Mahalla. Ao igual que na Tunísia, também no Egito, é do movimento operário que pode surgir a centralização de um movimento sem direção clara, handicap negativo com o qual os regimes ditatoriais e o imperialismo contam para frustrar a onda revolucionária, por esgotamento, se possível, ou num banho de sangue, se necessário.

O caráter social, político e laico do movimento, paradoxalmente, é um enorme problema para o imperialismo. O integralismo islâmico foi usado tradicionalmente, pelo grande capital, com excepcionais resultados, na luta contra o nacionalismo, o socialismo e o comunismo árabes. Após a derrota da URSS, o combate ao integralismo é o fantasma utilizado para impor a hegemonia imperialista política, ideológica e militar − “Guerra ao Terrorismo” −, à população estadunidense e mundial.

Não existiria o constrangimento de Obama ao ser flagrado, pela opinião pública interna e mundial, sustentando com um bilhão de dólares anuais a Hosni Mubarak e à ditadura egípcia, se estivesse em marcha no Magrebe uma revolução pela imposição da sharia e não pelos direitos democráticos e sociais básicos.

Mais ainda, o ingresso de milhões de populares na arena política, na luta por reivindicações democráticas e sociais, já exerce e exercerá uma influência difícil de ser avaliada sobre a população mundial. Com destaque para a Europa, onde os trabalhadores gregos − parte do mundo mediterrâneo −, protagonizam batalhas históricas, ainda que isoladas, contra a nova ofensiva do capital contra os direitos do mundo do trabalho.

Os ventos da revolução

Na sexta-feira, 4 de fevereiro, na Albânia, prosseguiram as manifestações, que resultaram, há poucos dias, em combates de rua, com mortos e centenas de feridos, para exigir a renúncia do primeiro-ministro e a antecipação das eleições previstas para 2013. Na Sérvia, 20 mil populares acabam de baixar às ruas, exigindo do governo pró-imperialista a antecipação das eleições de 2012, devido ao desemprego e à inflação.

Tudo isso quando o FMI, os burocratas da União Europeia e os governos nacionais europeus preparam-se para aprofundar as políticas anti-sociais de austeridade e de redução de direitos e salários, na Bélgica, Espanha, Grécia, Irlanda, Islândia, Itália, Polônia, Portugal etc. Medidas destinadas a financiar a farra do capital bancário e financeiro que levou à crise de 2008-2009 .

Surgindo das ameaçadoras entranhas do deserto social, o temido simum da revolução que despeja os ares do norte da África esforça-se para sobrepor-se aos ventos neoliberais que avassalam o mundo, desde a vitória histórica da revolução neo-liberal, nos anos 1989-90.

12/2/2011  Fonte: ViaPolítica/O autor

Mário Maestri, 62, é professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da UPF.

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