segunda-feira, 31 de maio de 2010

América Latina - 3os - Textos Base

Estamos tentando recuperar nossa própria voz

Um dos mais respeitados escritores e intelectuais da América Latina, Eduardo Hughes Galeano recebeu a Caros Amigos numa tarde de segunda-feira, no Café Brasilero, em Montevidéu. Aos 69 anos fala, em fluente português, sobre sua literatura, o amor pelos cafés e, claro, sobre política. Uruguaio de nascimento (1940), latino-americano por devoção e cidadão do mundo por paixão, quando criança, sonhava em ser jogador de futebol. “Era uma maravilha jogando, mas só de noite, enquanto dormia”. Melhor assim. Os campos de futebol não perderam nada, porém a literatura ganhou um verdadeiro artesão das palavras. Suas obras combinam elementos da literatura, sensibilidade e observação jornalística, que estão sempre em função de suas paixões. Autor de mais de trinta livros, dezenas de crônicas e artigos, Galeano também é um exímio defensor do socialismo, dos direitos e da dignidade humana. Entre seus livros, pode se destacar As veias abertas da América Latina, a trilogia Memória doFogo, Livro dos Abraços e o último, Espelhos – uma história quase universal, lançado em 2008, em que o autor reescreve, a partir de um outro ponto de vista, episódios que a história oficial camuflou. Galeano “remexe no lixão da história mundial” para dar voz aos “náufragos e humilhados”.




Caros Amigos - Você nasceu em Montevidéu? Gostaria que falasse um pouco da sua infância?

 Eduardo Galeano - Sim, nasci em Montevidéu. Minha infância? Eu nem lembro, já faz tanto tempo... Mas acho que foi bastante livre. Eu morava em um bairro quase no limite da Montevidéu, onde havia grandes edifícios. Então tinha espaço verde. Sinto pena das coitadas das criancinhas que vejo agora, prisioneiras na varanda de casa. Meninos ricos são tratados como se fossem dinheiro, meninos pobres são tratados como se fossem lixo. Muitos, pobres e ricos, viram prisioneiros, atados aos computadores, à televisão ou a alguma outra máquina. Mas eu tive uma infância muito livre. Fiz a escola primária, secundária, depois comecei a trabalhar por minha conta. Então, com 15 anos, já era completamente livre.

Em que trabalhou?

Fiz de tudo o que você possa imaginar. Fui desenhista (adoro desenhar até hoje), taquígrafo, mensageiro, funcionário de banco, trabalhei em agência de publicidade, cobrador... Fiz milhares de coisas, mas, sobretudo, comecei a aprender o ofício de contar história. Eu era um cuenta cuentos (conta contos). E aprendi a fazer isso nos cafés, como esse onde a gente está agora falando, que leva o honroso nome de Brasilero.O mais tradicional dos cafés uruguaios se chama Brasilero! E esse é último sobrevivente, o último dos moicanos dos cafés nos quais eu fui formado. Minha universidade foram os cafés de Montevidéu, foi aqui que aprendi a arte de narrar, a arte de contar histórias.

Conversando com as pessoas?

Escutando. Conversando sim, mas aprendi muito mais escutando. Desde muito menino aprendi que, por alguma razão, nascemos com dois ouvidos e uma única boca. Mas esses cafés típicos de Montevidéu pertenciam a uma época que não existem mais. Pertenciam a um tempo no qual havia tempo para perder o tempo.

Como foi sair do Uruguai, na época da ditadura (1973-1984)?

Quando a ditadura se instalou, eu corri para a Argentina, em 1973. Lá fundei uma revista cultural chamada Crisis. Depois fui obrigado a voar de novo. Não podia voltar para o Uruguai, porque não queria ficar preso, e fui obrigado a sair da Argentina porque não queria ser morto. A morte é uma coisa muito chata. Então fiquei na Argentina até o final de 1976, quando se instala a Ditadura argentina. Aí fui para a Espanha, onde fiquei até o final de 1985. Depois disso voltei para o Uruguai. No começo, minha situação em Barcelona foi muito complicada. Eu não tinha documentos, pois a Ditadura uruguaia se recusava a fornecer. O que possuía era um documento de salvo conduto das Nações Unidas, que não servia para muita coisa. Eu tinha que ir todo mês à polícia renovar o meu visto de permanência e passava o dia inteiro preenchendo formulários de perguntas. Então, um dia, onde dizia profissão, coloquei escritor, entre aspas, de formulários. Mas ninguém percebeu. A polícia achou normal ser escritor de formulários!

Havia duas listas das ditaduras do Cone Sul. Uma, com os nomes das pessoas que estavam marcadas para morrer e outra para a extradição. Em qual você estava?

Nas duas.

Na época da ditadura, muitas pessoas, assim como você, ficaram sem documentos, não podiam sair do país e foram mortas a tiro ou envenenadas...

Eu tive sorte. Não me lembro de ter sido envenenado, nem mesmo pelos críticos literários. Claro que sofri muitas ameaças, mas não vou fazer aqui uma apologia do mártir, do herói da revolução. Mas claro que a vida não era fácil, sobretudo por que a situação dessa revista que fundei na Argentina era difícil, pois chegava muito além das fronteiras tradicionais das revistas culturais. Nós vendíamos entre 30 e 35 mil exemplares. Isso, para uma revista cultural, era uma prova de resistência. Nós pensávamos em fazer era um resgate das mil e uma formas de expressão da sociedade. Não apenas dos profissionais da cultura, mas também das cartas dos presos, da cultura contada pelos operários das fábricas, que raramente viam a luz o sol. Esse tipo de coisa que para nós também era cultura.

O livro As Veias abertas da América Latina foi escrito na década de 1970. Hoje, é possível escrever um novo Veias Abertas?

 Para mim esse livro foi um porto de partida, não de chegada. Foi o começo de algo, de muitos anos de vida literária e jornalística tentando redescobrir a realidade, tentando ver o não visto e contar o não contado. Depois de Veias escrevi muitos livros que foram continuações, de um certo modo, e uma tentativa de cavar, cada vez mais profundamente, a realidade. Isso com o objeto de ampliar um pouco as ideias, porque Veias é um livro limitado à economia política latino-americana. Os livros seguintes têm que ser lidos com a vida toda, nas suas múltiplas expressões, sem dar muita bola nem ao mapa, nem ao tempo. Se eu fico apaixonado por uma história, me ponho a contar histórias de qualquer lugar do mundo e de qualquer tempo. Conto a história da história, que podem ter acontecido há 2 mil anos e tento escrever de tal modo que aconteçam de novo, na hora em que são contadas. Aí está o verdadeiro ofício de contar, que aprendi nos cafés de Montevidéu, que inclusive permite a você escutar o som das patas dos cavalos, sentir o cheiro da chuva...

Pode-se dizer que hoje existe uma demanda por governos de esquerda na América Latina?

 Em sua opinião, esses governos têm contribuído para diminuir a pobreza e a desigualdade social nesses países? O que existe é um panorama muito complexo e diverso de realidades diferentes. Também vemos respostas sociais e políticas diversas. Isso é o que nossa região do mundo tem de melhor: sua diversidade. Esse encontro de cores, de dores tão diferentes, é a nossa riqueza maior. Os novos movimentos, como esses, que estão brotando por toda parte, que tentam oferecer uma resposta diferente às desigualdades sociais, contra os maus costumes da humilhação e o fatalismo tradicional, também são respostas diversas porque expressam realidades diferentes. Não se pode generalizar. O que existe sim é uma energia de mudança. Uma energia popular que gera diversas realidades, não só política, mas realidades de todo tipo, tentando encontrar respostas, depois de vários séculos de experiências não muito brilhantes em matéria de independência. Agora estamos comemorando, em quase todos os países, o bicentenário de uma independência que ainda é uma tarefa por fazer.

O que falta para a América Latina ser completamente independente?

Romper com o velho hábito da obediência. Em vez de obedecer à história, inventá-la. Ser capaz de imaginar o futuro e não simplesmente aceitá-lo. Para isso é preciso revoltar-se contra a horrenda herança imperial, romper com essa cultura de impotência que diz que você é incapaz de fazer, por isso tem que comprar feito, que diz que você é incapaz de mudar, que aquele que nasceu, como nasceu vai morrer. Porque dessa forma não temos nenhuma possibilidade de inventar a vida. A cultura da impotência te ensina a não vencer com sua própria cabeça, a não caminhar com suas próprias pernas e a não sentir com seu próprio coração. Eu penso que é imprescindível vencer isso para poder gerar uma nova realidade.

A América Latina copiou um modelo de desenvolvimento que não foi feito para ela. É possível inventar um modelo próprio de desenvolvimento?

 Não vou entrar em detalhes porque se fosse falar da quantidade de cópias erradas seria uma lista infinita. O desafio é pensar no que queremos ser: originais ou cópias? Uma voz ou eco? Agora estamos tentando recuperar nossa própria voz, em diferentes países, de diversas maneiras.

A implantação das bases dos Estados Unidos na Colômbia fere a dignidade do povo latinoamericano e compromete a independência e a liberdade da América do Sul?


Sim. É a continuação de uma tradição humilhante. Também há o perigo da intervenção direta dos Estados Unidos nos países latino-americanos. Meu mestre, Ambroce Bierce, um escritor norte-americano maravilhoso, quando se iniciou a expansão imperial dos Estados Unidos, no século 19, dizia que a guerra é um presente divino enviada por Deus para ensinar geografia. Porque assim eles (estadunidenses) Aprendiam geografia. E é verdade. Os EUA têm uma tradição de invadir países sem saber onde estão localizados e como são esses países. Tenho até a suspeita de que (George W.) Bush achasse que as Escrituras tinham sido inventadas no Texas e não no Iraque, país que ele exterminou. Então, esse perigo militar latente é muito concreto. Atualmente os EUA possuem 850 bases militares em quarenta países. A metade do gasto militar mundial corresponde aos gastos de guerras dos EUA. Esse é um país em que o orçamento militar se chama orçamento de defesa por motivos, para mim, misteriosos e inexplicáveis. Porque a última invasão sofrida pelos EUA foi em 1812 e já faz quase dois séculos. O ministério se chama de defesa, mas é de guerra, mas como que se chama de defesa? O que tem a ver com a defesa? A mesma coisa se aplica às bases na Colômbia, que também são “defensivas”. Todas as guerras dizem ser “defensivas”. Nenhuma guerra tem a honestidade de dizer “eu mato para roubar”. Nenhuma, na história da humanidade. Hitler invadiu a Polônia porque, segundo ele, a Polônia iria invadir a Alemanha. Os pretextos invocados para a instalação dessa base dos EUA na Colômbia não são só ofensivas contra a dignidade nacional dos nossos países, como também ofensivas contra a inteligência humana. Por que dizer que serão colocadas lá para combater o tráfico de drogas e o terrorismo? Tráfico de drogas, muito bem... 80% da heroína que se consome no mundo inteiro vem do Afeganistão. 80%! Afeganistão é um país ocupado pelos EUA. Segundo a legislação internacional, os países ocupantes têm a responsabilidade sobre o que acontece nos países ocupados. Se os EUA têm interesse de verdade de lutar contra o narcotráfico, têm que começar pela própria casa, não pela Colômbia e sim pelo Afeganistão, que faz parte da sua estrutura de poder, e que é o grande abastecedor de heroína, a pior das drogas. O outro pretexto invocado é o terrorismo. Mas não é sério. Não é sério, por favor. A grande fábrica do terrorismo é essa potência mundial que invade países, gera desespero, ódio, angústia. Sabe quem esteve sessenta anos na lista oficial dos terroristas dos EUA? Nelson Mandela, Prêmio Nobel, presidente da África do Sul. Cada vez que viajava aos EUA, ele precisa de um visto especial do presidente dos Estados Unidos, porque era considerado um terrorista perigoso durante sessenta anos. Até 2008. É desse terrorismo que estão falando? Imagina se eu fosse incorporado agora na lista dos terroristas dos EUA e tivesse que esperar sessenta anos para ser tirado. Acho que daqui há sessenta anos vou estar um poquitito mortito.
Fonte : www.carosamigos.terra.com.br/ -


América Latina está deixando de ser o quintal dos Estados Unidos
Entrevista : NOAM CHOMSKY-


Uma das principais mudanças na ordem mundial está sendo vivida agora na América Latina, diz Noam Chomsky, em entrevista. Para ele, a região está começando a superar seus problemas internos e sua subordinação ao Ocidente, principalmente em relação aos EUA. Chomsky acredita que a crise atual traz oportunidades de mudanças reais na ordem mundial. "Até onde essa mudança pode chegar, isso depende daquilo que estamos dispostos a empreender". Agencia de Prensa Alternativa Humanista “Sur” Data: 28/11/2008 A Agencia de Prensa Alternativa Humanista “Sur” (APAHs) entrevistou Noam Chomsky sobre o desenrolar da crise econômica atual. Reproduzimos, aqui, a entrevista, onde Chomsky defende a necessidade de desmontar algumas mitologias relacionadas à crise, destaca o novo papel que a América Latina vem desempenhando no mundo e aponta a abertura de uma janela de oportunidades para mudanças na atual ordem político-econômica global.



Então, você não considera que estamos nos encaminhando para uma mudança na ordem mundial?

Chomsky: Bom, há mudanças muito significativas na ordem mundial e esta crise talvez contribua para isso. Mas elas estão aí há algum tempo. Uma das principais mudanças na ordem mundial está sendo vivida agora na América Latina. Costuma-se dizer que a América Latina é o quintal dos EUA e que, há muito tempo, é uma região controlada pelos EUA. Mas isso está mudando. Em meados de setembro tivemos uma ilustração dramática disso.

No dia 15 de setembro, ocorreu uma reunião da Unasul, a União das Nações Sul-americanas, da qual participaram todos os governos sul-americanos, incluindo a Colômbia, atual favorito dos EUA na região. A reunião foi realizada em Santiago, Chile, outro favorito dos EUA. Dela, saiu uma declaração muito contundente de apoio a Evo Morales, da Bolívia, e de rechaço aos setores quase-secessionistas deste país, que contam com o apoio dos Estados Unidos.

Evo Morales respondeu, corretamente, que esta era a primeira vez em 500 anos que a América Latina havia tomado seu destino em suas próprias mãos.

Há uma luta muito significativa na Bolívia. As elites estão se mobilizando pela autonomia e mesmo pela secessão, gerando fortes níveis de violência com a evidente concordância dos EUA. Mas as repúblicas sul-americanas assumiram uma postura firme, em apoio ao governo democrático. A declaração foi lida pela presidente Bachelet, do Chile, uma favorita do Ocidente. Evo Morales respondeu agradecendo aos presidentes pelo apoio e assinalou, corretamente, que esta era a primeira vez em 500 anos que a América Latina havia tomado seu destino em suas próprias mãos, sem a interferência da Europa nem, sobretudo, dos EUA. Esse é um símbolo de mudança muito significativo que está em curso, às vezes chamado de “maré rosada”. Foi tão importante que não foi reportado pela imprensa dos EUA. Há uma frase aqui, outra ali, que registra que algo aconteceu, mas suprimiram totalmente o conteúdo e a importância do que ocorreu.

Isso é parte de um processo de longo prazo, no qual a América do Sul está começando a superar seus enormes problemas internos e também sua subordinação ao Ocidente, principalmente em relação aos Estados Unidos. A América do Sul também está diversificando suas relações com o mundo. O Brasil tem relações cada vez maiores com a África do Sul, a Índia e, particularmente, a China, país cada vez mais envolvido com investimentos e intercâmbios com países latino-americanos. São processos extremamente importantes, que agora estão começando a chegar também na América Central. Honduras, por exemplo, era a clássica república bananeira. Serviu de base para as guerras do terror perpetradas por Reagan na região e subordinou-se totalmente aos EUA. Mas Honduras somou-se recentemente a ALBA, a Alternativa Bolivariana para os Povos da América, proposta pela Venezuela. É um pequeno passo, mas não deixa de ser muito significativos.

Você acha que estas tendências na América do Sul, como Alba, Unasul e os grandes acontecimentos na Venezuela, Bolívia e outros países, podem ser afetados por uma crise econômica da dimensão desta que estamos enfrentando agora?

Chomsky: Bem, esses países serão afetados pela crise mas, no momento, não tanto como estão sendo a Europa e os Estados Unidos. Se olhamos o caso da Bolsa no Brasil, ela caiu muito rapidamente, mas os bancos brasileiros não estão quebrando. Do mesmo modo, na Ásia, as bolsas estão declinando agudamente, mas os governos não estão assumindo o controle dos bancos, como ocorre na Inglaterra, Estados Unidos e boa parte da Europa. Essas regiões, América do Sul e Ásia, de alguma maneira conseguiram se separar das calamidades dos mercados financeiros. O que desatou a crise atual foram os empréstimos subprime para ativos construídos sobre areia, e estes, claro, estão em mãos de estadunidenses e de bancos europeus. O fato de possuir ativos tóxicos baseados em hipotecas os envolveu muito rapidamente nestes acontecimentos. Além disso, os europeus têm suas próprias crises de habitação, particularmente a Inglaterra e a Espanha.

A Ásia e a América Latina ficaram muito menos expostas por terem mantido estratégias de crédito mais cautelosas, particularmente a partir do descalabro neoliberal de 1997-1998. Um grande banco japonês, Mitsubishi UFG, acaba de comprar uma parte substancial do Morgan Stanley, nos EUA. Então, não parece, até agora, que a Ásia e a América Latina serão afetadas tão gravemente como Estados Unidos e Europa.

Você acredita que há uma grande diferença entre Obama e McCain no que diz respeito a temas como o Tratado de Livre Comércio e o Plano Colômbia? Na Colômbia, pode-se sentir que o presidente e seus apoiadores estão assustados frente à eleição de Obama. Sei que você tem a sensação que Obama é como uma folha em branco, mas pensa que ela fará alguma diferença?

Chomsky: Com efeito, Obama tem se apresentado mais ou menos como uma folha em branco. Mas não há motivo para que o governo colombiano se assuste com sua eleição. O Plano Colômbia é uma política de Clinton e há muitas razões para supor que Obama será outro Clinton. Ele é bastante impreciso, a propósito. Mesmo quando explicita políticas, elas se parecem muito a políticas centristas, como Clinton, que modelou o Plano Colômbia e militarizou o conflito.

Tenho, às vezes, a sensação de que os períodos de Bush se deram em um contexto de mudança da ordem mundial, tratando de manter o poder com o uso da força, e que, em troca, Obama pode representar a cara boa para renegociar a ordem mundial. Qual sua opinião sobre isso?

Chomsky: É importante lembrar que o espectro político nos EUA é bastante estreito. É uma sociedade controlada pelas empresas, basicamente, é um Estado de partido único, com duas facções, democratas e republicanos. As facções têm algumas diferenças e estas, às vezes, são significativas. Mas o espectro é bastante estreito. A administração Bush, porém, se situava bastante além do final do espectro, com nacionalistas radicais extremos, crentes extremos no poder do Estado, na violência no exterior e em um alto gasto governamental. De fato, estavam tão fora do espectro que foram criticados duramente inclusive por parte do poder, desde os primeiros tempos.

Seja quem for que assuma o mandato, é provável que desloque o tabuleiro político para o centro do espectro. Obama talvez faça isso em maior medida. Diria que, no caso de Obama, haverá algo como um renascimento dos anos Clinton, adaptado certamente às novas circunstâncias.

Há oportunidades para uma mudança real. Até onde essa mudança pode chegar, isso depende daquilo que estamos dispostos a empreender.

Agora que estamos chegando ao fim da globalização neoliberal, existe a possibilidade de algo realmente novo, uma globalização boa?

Chomsky: Penso que as perspectivas hoje estão muito melhores do que estavam antes. O poder está extraordinariamente concentrado, mas há mudanças a medida que a economia internacional torna-se mais diversificada e complexa. O Sul está se tornando mais independente. Mas, se olhamos para os EUA, mesmo com todo o dano causado por Bush, segue sendo a maior economia homogênea, com o maior mercado interno, a força militar mais forte e tecnologicamente mais avançada, com gastos anuais comparáveis aos do resto do mundo combinados e com um arquipélago de bases militares espalhadas pelo mundo. Estas são fontes de continuidade, mesmo que a ordem neoliberal esteja sofrendo uma erosão dentro dos EUA, na Europa e internacionalmente, com um crescimento da oposição a ela. Então, há oportunidades para uma mudança real. Até onde essa mudança pode chegar, isso depende da gente e daquilo que estamos dispostos a empreender.

Fonte : www.cartamaior.com.br

Imperialismo cria o seu universal soldier
Por José Arbex Jr.

Em plena crise, o sistema capitalista mundial encontrou o seu universal soldier, o representante maior dos “valores democráticos ocidentais”, em nome dos quais torna-se palatável a “guerra sem fronteiras” contra o terror, a prática de invasões militares e de

matanças indiscriminadas, a intervenção em qualquer parte do planeta. Barack Obama, agraciado com o Nobel da Paz, é o “imperialismo de face humana”, mais ou menos como, nos anos 60, John Kennedy, responsável pela escalada da Guerra do Vietnã, era o ícone glamourizado da barbárie. Obama, aliás, já tem o seu próprio Vietnã: após o gigantesco fiasco no Iraque, a Casa Branca sabe que tampouco pode vencer a Guerra do Afeganistão, como não puderam, antes dela, os impérios britânico e soviético. Pior: a guerra já ultrapassou as fronteiras afegãs e envolve diretamente o Paquistão, país dotado de arsenal nuclear. Apesar disso, Obama estuda o possível envio de novos 60 mil soldados ianques para a região.

Um ano após a sua eleição à presidência dos Estados Unidos, Barack Obama mantém, fundamentalmente, a mesma política externa de George Bush, exceto pelo fato de que o atual presidente, ao contrário do troglodita que o antecedeu, aceita manter o diálogo com os governos “aliados” europeus. Obama tem consciência do valor ideológico e estratégico da Otan, uma aliança que perdeu a sua razão de ser com o fim do “bloco socialista” e da Guerra Fria, mas que se mantém como guardiã dos interesses imperialistas dos Estados Unidos e da Europa dita ocidental (particularmente, Grã-Bretanha, Alemanha e França). Como ícone da “sagrada família” imperialista ocidental,

Obama faz manobras provocadoras contra a Rússia (sede do império euroasiático eslavo) e cria áreas de atrito até mesmo com a superaliada China. As ameaças de punição contra o Irã e a Coréia do Norte fazem parte desse jogo, assim como a tentativa de instalar mísseis da Otan em antigos países do Leste europeu, na fronteira com a Rússia.



Mas o universal soldier Barack Obama sabe promover a escalada com a fala mansa e jeito soft. Numa reunião de cúpula do Oriente Médio, realizada em junho, no Cairo, Obama inicia o seu discurso em árabe, com a tradicional saudação As-Salam Aleikum, e compromete o seu governo com a criação de um Estado palestino viável. Mas, em pouco tempo, a euforia cede lugar à frustração. Obama nada faz para impor ao governo israelense a suspensão total da expansão dos assentamentos nos territórios palestinos ocupados, exceto pelos patéticos apelos de seu assessor George Mitchell, ainda ssim mitigados pelos elogios ao primeiro-ministro Benyamin Netaniahu, feitos pela secretária de Estado Hillary Clinton. Sequer o já famoso relatório sobre os crimes cometidos pelo exército israelense em Gaza, feito por Richard Goldstone, enviado especial da ONU para a Palestina, é suficiente para levar Obama a adotar medidas efetivas contra Israel. Ao contrário, os diplomatas estadunidenses fazem o possível para evitar a análise do Relatório Goldstone pelo Conselho de Segurança da ONU.

A escalada militarista da era Obama atinge diretamente a América Latina.

Na Cúpula das Américas, realizada em Trinidad e Tobago, entre 17 e 19 de abril, Obama adota uma postura simpática e amigável, mesmo quando submetido a um bombardeio de críticas. Recebe, com sorrisos, uma cópia do livro As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, das mãos do presidente venezuelano Hugo Chávez. Ouve e anota denúncias de tentativas de assassinato do presidente boliviano Evo Morales, assim como um longo relato, feito pelo ex e atual presidente da Nicarágua Daniel Ortega, sobre as atrocidades cometidas pela CIA, nos anos 80, contra o regime sandinista. Em seu discurso, assegura que já se foram os tempos em que Washington se considerava na posição de determinar os rumos do hemisfério ocidental, e condena explicitamente “qualquer esforço de subversão violenta de governos democraticamente eleitos”. Como no Cairo, seu discurso dá margem a esperanças de mudanças reais. José Arbex Jr. é jornalista

Ditadura do pensamento unipolar - Frei Betto (Caros Amigos, abril de 2010)


Há no mundo uma monopolização crescente do pensamento. Os recentes avanços tecnológicos favorecem a concentração da informação em poucas mãos.



Quando Francis Fukuyama lançou a inconsistente teoria do fim da história, o objetivo era semear a desesperança e consolidar a ideia de que não há futuro, e sim perenização do presente. O capitalismo é o melhor e definitivo sistema econômico; e a democracia, manipulada pelo poder financeiro, sua expressão política.



Derrubado o muro de Berlim, a globalização consiste em impor ao planeta a pax americana e sepultar, assim, as ideologias progressistas e libertárias, extinguindo, da cultura, a consciência histórica, sem a qual não há como construir alternativas.



Felizmente teorias não detêm o avanço histórico. A América Latina é, hoje, o melhor exemplo disso, com a sua primavera democrática e seus governos democrático-populares. Novos atores sociais e processos emancipatórios despontam. Redes planetárias de busca de “outro mundo possível” aparecem.



Esses sinais de esperança reforçam a necessidade de se aprofundar o pensamento crítico, alternativo, e promover a descrença nos dogmas consagradores da desigualdade e da exclusão social e da apropriação privada da riqueza.



Para o pensamento hegemônico, os novos inimigos são o “terrorismo” (leia-se: tudo que se opõe a ele), o narcotráfico, os países que formam o “eixo do mal”, e todos que criticam o sistema de dominação múltipla do capitalismo transnacional e neoliberal.



O polo hegemônico desse pensamento único são os EUA, respaldados pelo consenso da União Europeia e do Japão. E sobretudo as empresas transnacionais. Em nome da defesa da democracia (entenda-se: do modelo fundado na desigualdade e na exclusão), procura-se evitar a proliferação de armas atômicas ou de destruição em massa… exceto nos países que, na ótica de Washington, integram o “eixo do bem”.



Quem melhor expressou a nova doutrina político-militar foi Zbigniew Brzezinski, em 1998, quando denunciou que o imperativo dessa estratégia geopolítica consiste em manter os vassalos dependentes no que diz respeito à segurança, e evitar que os “bárbaros” se articule m, como agora ocorre na América Latina e no Caribe, com a proposta de fundação, no próximo ano, de um organismo semelhante à União Europeia, capaz de congregar os países do continente sem a presença e ingerência dos EUA e do Canadá.



Hoje, o que preocupa a CIA e o Pentágono não é a confrontação leste-oeste, e sim a norte-sul entre os países ricos e pobres. Há um processo sistemático de pasteurização da cultura, travestida de entretenimento centrado no consumismo, de hegemonização do pensamento, por meio da disseminação midiática de paradigmas comuns e do consumo padronizado, de modo a negar o pluriculturalismo, o direito à autonomia dos povos originários, a diversidade religiosa, os movimentos sociais emancipatórios, a cultura como processo crítico de leitura e transformação da realidade. Como diria Paulo Freire, cada vez mais a cabeça dos oprimidos pensa e enxerga pelo ponto de vista dos opressores.
A ascensão dos governos de esquerda na América Latina

Caros Amigos entrevista Valério Arcary


Por Daniel Lucas Oliveira em 24/11/2009






A América Latina vem passando por transformações significativas para os apaixonados pela justiça, igualdade e distribuição de renda justa. Vítima de um sistema implacável imposto pelos neoliberais, o continente enfrenta um processo de evolução e, principalmente, libertação. Os mais pobres estão sendo atingidos de forma positiva. A maioria das privatizações vem sendo erradicada. As empresas estatais nos países com governos de características de esquerda seguem aumentando. Com isso, os países passam a lucrar mais, a economia cresce, e a população mais carente vive um pouco melhor.


Mas a resistência e os ataques são constantes quando se trata da grande mídia. Com a ascensão dos governos de esquerda, do "povão" (Brasil com Lula, Venezuela com Chávez, Bolívia com o Evo Morales e no Equador com Rafael Correa), os ataques são insanos, covardes e oportunistas. O desespero da grande imprensa é ainda maior quando ela percebe que a população não aceita as suas mentiras e reelege o seu presidente, como aconteceu no Brasil em 2005.


Na Caros Amigos [edição 151, outubro de 2009], o cientista político Emir Sader escreveu um belo artigo cujo título era "Fracassomaníacos". A intenção do texto era desqualificar e avaliar todas as artimanhas fajutas do PSDB, FHC e grande imprensa que, segundo o autor, sempre tentavam, de todas as formas, desmoralizar o presidente Lula e afirmar para a população que um operário nordestino era incapaz de governar o país.


Críticas rasas


"FHC gritava, no último comício do candidato do seu partido, que havia renegado seu governo; com a camisa para fora da calça, o ex-presidente suado, desesperado, gritava: `Lula, você morreu´, refletindo seus desejos, em contraposição com a realidade, que viu Lula se reeleger, sobre o cadáver político e moral de FHC", afirmou Sader em seu artigo.


O cientista político ainda criticou outro personagem fracassado da alameda Barão de Limeira que, com o anúncio da reeleição de Lula, golpeava a mesa, enquanto dava voltas em torno dela, dizendo: "Onde foi que nós erramos, onde foi que nós erramos?" Segundo Sader, conviver com o sucesso popular, econômico, social e internacional do governo Lula é insuportável para os fracassomaníacos.


Esse projeto de distribuição de renda do governo tem sido alvo de críticas constantes. Muitas delas, sem sugestões para melhorar. Certa vez, um político foi a Alagoas discursar para a população. Intencionado a "bater" no presidente Lula, logo foi indagado por um cidadão que disse: "Por que está falando mal do nosso presidente? Atualmente, ganho R$ 84,00 do Bolsa Família e R$ 10,00 por dia do meu patrão, o explorador fazendeiro. Porém, vivo melhor. Antes ganhava R$ 5,00 por dia. Com o projeto do governo falo para o patrão: quer meu trabalho? Então paga R$ 10,00."


Isso demonstra que essa bobagem de dar vara para pescar e não dar o peixe são críticas rasas. São frases postas pela grande mídia. E o pior, muitos acabam reproduzindo-as, sem ao menos realizar uma análise precisa do fato.


Presença estratégica do Estado


Wanderley Guilherme dos Santos, professor aposentado da UFRJ, fundador do Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (Iuperj) da Universidade Campos Mendes, consagrado pela Universidade Autônoma do México, em 2005, e um dos cinco mais importantes cientistas políticos da América Latina, disse à revista CartaCapital, de 2 de setembro de 2009, edição 561, que a imprensa brasileira exerce, e tem todo o direito, de ter opinião e preferências políticas. No Brasil, no entanto, ela diz que apenas retrata a realidade. É falso. Há muito da realidade que não está na imprensa e há muito do que está na imprensa que não está na realidade.


"A imprensa brasileira não tolera a ideia de governos independentes, autônomos em relação às suas campanhas. Isso implica um caminho de duas mãos. Significa que ela terá que sobreviver sem a ajuda os governos. Então, é preciso que os governos precisem dela", conclui o cientista.


Com a ascensão desses governos de esquerdas houve o estabelecimento de relações comerciais com outras nações, ou seja, sul-sul (países desenvolvidos ou em desenvolvimento); estabilidade econômica (projetos de distribuição de renda - parecidos com o Bolsa Família); em alguns países, mais acesso à terra por meio de reforma agrária; além da maior presença do Estado em pontos estratégicos da sociedade, por exemplo, saúde e educação; e o principal, deixaram de privatizar suas principais ações.


Fábrica de terrorismo


Em entrevista publicada recentemente na Caros Amigos [edição 152, novembro de 2009], um dos mais respeitados escritores e intelectuais da América Latina, o uruguaio Eduardo Hughes Galeano (autor do livro As Veias Abertas da América Latina), disse que para o continente ser completamente independente, ele deve romper com o velho hábito de obediência. "Em vez de obedecer à história, inventá-la."


Para o escritor e jornalista, é preciso revoltar-se contra a horrenda herança imperial, romper com essa cultura de impotência que diz que você é incapaz de fazer, por isso tem de comprar pronto, que diz que você é incapaz de mudar, que aquele que nasceu, como nasceu vai morrer. O autor avalia: "A impotência deve estar longe daqueles que desejam mudanças radicais." Portanto, a desobediência à história é imprescindível para vencer esse domínio neoliberal e gerar uma nova realidade.


Também na entrevista, Galeano considera a implantação das bases norte-americanas na Colômbia uma afronta a dignidade do povo latino-americano e compromete a independência e a liberdade da América do Sul. Ele afirma: "Os Estados Unidos alegam que a intenção é combater o narcotráfico. Porém, os americanos têm que começar pela própria casa, o Afeganistão, que faz parte da sua estrutura de poder, e é o grande abastecedor de heroína, a pior droga." Outro pretexto dos EUA é o terrorismo. "A grande fábrica do terrorismo é essa potência mundial que invade países, gera desespero, ódio, angústia", finaliza o escritor.


O medo da revolta popular


A aceitação do "povão" por essas novas lideranças vai ganhar mais força quando for sacramentada a vitória do ex-guerrilheiro, preso por quatro vezes e com a cara e modos do povão, José "Pepe" Mujica, 74 anos. Vencedor do primeiro turno das eleições para presidente do país, também está na liderança do segundo turno e pode se tornar mais um guerrilheiro a se eleger presidente.


Os próximos capítulos estão por vir! Acredito nas mídias alternativas para combater esses criminosos veículos que mentem contra os governos progressistas. O importante é que o alvo principal – a população mais humilde –, os veículos de comunicação não estão atingindo. Isso tem levado muitos deles ao desespero e sabe por quê? A mídia não tem medo de bandido, ela receia a revolta popular porque se ela acontecer ninguém vai conseguir controlar.


América Latina rumo à libertação!


A América Latina e a Quarta Frota


13 de maio de 2008, em Opinião, Política, por Guilherme Poggio

Fonte: Blog do Luis Nassif

No espaço latino americano um fato a registrar é a reconstituição da 4ª Frota da Marinha dos EUA, com base na Florida e area de atuação predominante no Atlantico Sul. Essa força tenha sido desincorporada em 1950 e o seu relançamento deve-se a 4 fatores:

1.A formação de um eixo anti-americano na America do Sul a partir do projeto bolivariano de Hugo Chavez, incluindo hoje o Equador, a Bolivia, o Paraguai e de certo modo a Argentina.

2.A crescente importancia do continente (especialmente do Brasil) no fornecimento mundial de alimentos, minérios e combustivel.

3.A incapacidade diplomática, politica e militar do Brasil, maior pais do continente, em servir de contrapeso a regimes populistas que estão se fortalecendo na região.

4.A obsolescência, sucateamento e enfraquecimento da estrutura militar brasileira, hoje em quinto lugar na relação das forças amrmadas sul-americanas, em termos de equipamento,outrara uma parceira confiavel dos EUA, hoje incapaz de qualquer ação militar de contenção e arbitramento no continente.

Essa grande unidade da Marinha dos EUA foi reconstituida com 11 navios, liderados por um porta aviões nuclear e deve ser oficialmente comissionada em 1º de setembro próximo, com o comandante já definido, , contra-almirante Joseph Kernan.

Os EUA sempre viram o Brasil como o lider natural da America do Sul mas hoje se preocupam com a fraqueza do establishment militar brasileiro, que vem sendo desmontado desde 1990.

América Latina: 100 anos de opressão e utopia revolucionária

Luiz Fernando B. Belatto

2º Ano - História/USP e 4º Ano - Jornalismo/PUC-SP



Introdução

Nesta virada de século e de milênio, faz-se interessante discutir muitos pontos que marcaram a história da Humanidade como uma forma de refletir sobre caminhos a serem adotados no futuro. No caso da América Latina, essa discussão é ainda mais importantes. Afinal, o continente passa por uma série de mudanças complexas que, no entanto, ainda convivem com marcas de um passado opressor que faz questão de manter-se vivo. Por exemplo: ao mesmo tempo em que Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, num ato histórico, fecham uma coalizão em torno de seu bloco comercial, o Mercosul, contra a extrema ingerência da futura Alca (Aliança de Comércio da América), bancada pelos EUA, em suas economias, ainda dependem de mercados como o norte-americano para escoar sua produção, intermediada pelas multinacionais e a baixos preços, gerando lucro para a matriz e pobreza no mercado interno. Além disso, ao mesmo tempo em que esses países anunciam investimentos na integração econômica dentro do continente, em seus próprios territórios vêem aumentar a miséria da maior parte de sua população, a desintegração entre as regiões produtivas e uma série de protestos contra a desigualdade social. Quando as diferenças não são entre países, tornam-se evidentes no território interno: na Argentina, por exemplo, separada entre Buenos Aires e região, vista por muitos como o país, e a região interior, miserável e desgraçada. Nesse quadro de diferenças sociais, há de se somar também as crises políticas, onde a ditadura populista venezuelana e o instável governo peruano dão mostras de que a democracia na região ainda está longe de se tornar realidade.

As contradições são visíveis na sociedade latino-americana, e elas podem ser usadas como explicação para muitos dos problemas e desafios que o continente enfrenta neste novo tempo que se abre. O que ocorreu de errado? Quais os pontos que precisam ser melhorados no futuro? São perguntas que não se calam facilmente. E é neste aspecto que este pequeno ensaio se encaixa. Antes de fornecer respostas definitivas, ele pretende, à luz da discussão histórica e da narrativa, propor tópicos e interpretações que sirvam como um primeiro esboço para a discussão da realidade continental. Assim, está dividido em três partes: a primeira, mais geral, aborda rapidamente a essência da história da região, com destaque para a exploração comercial, a dominação política e a atualidade. A base dessa parte é o livro As veias abertas da América Latina, do escritor uruguaio Eduardo Galeano. A segunda, mais histórica, mostra os movimentos sociais que tentaram propor vias históricas opostas às mostradas na primeira parte. Para encerrar o trabalho, que será completado em ensaios posteriores, uma rápida apresentação de homens que, bem ou mal, fizeram a história da América Latina atuando no campo político. No final, é oferecida uma bibliografia de referência para o interessado no tema ter a oportunidade de pesquisar por sua conta.

Este texto, conforme já dito, não se pretende completo. Pelo contrário: há pontos que mereceriam maior aprofundamento – o que não se faz pelo pouco espaço disponível e pela proposta de apenas propor tópicos para iniciar a discussão. Espera-se, portanto, que os leitores de Klepsidra participem, enviando suas mensagens e comentários a respeito do texto para que a história da América Latina saia da obscuridade e seja de conhecimento público. Inicia-se aqui, pois, essa viagem histórica.



Uma rápida abordagem dos conceitos

Não são poucos os estudos existentes sobre a história da América Latina. No entanto, em sua maioria são especializados em determinados temas: política, cultura, economia, relatos de vida de povos etc, bem como escritos com a única preocupação de se "contar a história", sem analisá-la em seus detalhes e relacionando-a com outros fatos e conjunturas. Poucos são os historiadores que se propuseram a escrever sobre a trajetória de nosso continente sem o medo de propor análises para os problemas enfrentados pelo território: pobreza crônica da população, economia agrária, subdesenvolvimento, instabilidade social etc. Coube então a um jornalista uruguaio, sem as "roupagens acadêmicas", como se autodefine, escrever uma história de seu continente baseada na seleção e interpretação de fatos que considera como essenciais para o entendimento da realidade latino-americana.



Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, propôs um inventário dos 500 anos da história do continente retratando as suas principais bases: a economia agrícola e mineradora dominada pelo mercado internacional, com o objetivo de gerar lucros para a potência dominadora; a pobreza social como resultado de um sistema econômico externo e excludente, que privilegia uma minoria financeiramente capaz de integrar-se aos padrões de consumo; a opressão de governos centralizadores contra as minorias, produzindo genocídios e o caos social; a exploração do trabalho e as péssimas condições de sobrevivência para a grande maioria de sua população.

Eduardo Galeano é o autor de "As veias abertas da América Latina"



Num relato informal, cujo objetivo é "mostrar uma opinião", para entender a história e a atual situação da América Latina Galeano narra os fatos fora de uma seqüência cronológica, fazendo com que passado e presente conversem entre si na mesma obra, determinando o ponto de vista do autor: o continente foi e é peça importante no enriquecimento de poucas nações, e o preço que paga por isso é o seu subdesenvolvimento crônico, suas eternas crises sociais e seu status de colônia. "A riqueza das potências é a pobreza da América Latina", diz Galeano em certa passagem do livro.

O autor dividiu o livro em três partes. Na primeira, mostra como os espanhóis e portugueses chegaram àquelas terras virgens no século XV e se aproveitaram das riquezas que o continente possuía. Os primeiros, fixados desde o planalto mexicano até os Andes, tiveram sorte e encontraram ouro e prata nas primeiras andanças. Os lusitanos, ocupando a faixa litorânea do Oceano Atlântico, tiveram de construir um império colonial à base da cana-de-açúcar enquanto não encontravam os metais. Embora em áreas diferentes, a tônica da exploração foi a mesma: trabalho forçado, agressão física, enriquecimento, opressão colonial. Os espanhóis encontraram dois exércitos de mão-de-obra disponíveis: os índios astecas no México e os incas no Peru. Estas civilizações, para Galeano, retratam o caráter do domínio colonial: socialmente e militarmente evoluídas, foram destruídas nas minas e com o trabalho forçado nas mitas e encomiendas. Já os portugueses, depois de tentar a exploração dos índios nos engenhos de açúcar e não obter sucesso, transformaram-se no maior traficante de negros mundial. Vindos da África, os negros deixavam à força seus reinos para, em terras brasileiras, ser escravos e motor da produção açucareira.

Após narrar a glória desses centros produtivos de riqueza colonial (que, como faz questão de ressaltar, não ficava na Espanha e Portugal: destinava-se a pagar as dívidas que estes países tinham com a potência que lhes roubaria o domínio econômico da América: a Inglaterra), Galeano traz a exploração para o presente e fala da decadência dessas regiões. São claros exemplos da tese de que a região rica do passado é marcada pela pobreza no presente as minas de Potosí, na Bolívia (região dava todo o ouro e prata que os espanhóis necessitavam e onde se formou uma elite local que enriquecia à base da escravidão indígena. No século XVII, quando os metais escassearam, o sonho de riqueza acabou e a pobreza se enraizou. Hoje, Potosí é o distrito mais pobre da Bolívia, habitado somente por descendentes de índios, e de seu passado glorioso guarda apenas a lembrança); o Nordeste brasileiro, que viveu seu auge com a produção de açúcar nos século XVI e XVII, mas não escapou da decadência quando seu produto passou a sofrer concorrência das Antilhas Holandesas, no século XVIII; e a região de Ouro Preto, quando a efêmera exploração aurífera acabou na entrada do século XIX. Os três casos refletem a formação colonial da América Latina: o continente nasceu para fornecer as riquezas que a Europa necessitava. Na medida em que as terras já não atendiam a essa demanda, foram abandonadas, ficando como marca do passado as gerações seguintes da população historicamente explorada, pobre e sem perspectivas. Citando a teoria marxista da divisão do trabalho entre operário e patrão, Galeano afirma que "enquanto a Europa era o cavaleiro que levava as glórias, a América era o cavalo que fazia todo o serviço".

Dos metais, seguiu-se a exploração agrícola e pecuária a partir principalmente dos séculos XVIII e XIX, por meio da qual cada país, numa engrenagem perfeita com o sistema econômico internacional, se identificou e ainda se identifica com um determinado produto na escala comercial. A América Central se especializou no fornecimento de frutas tropicais; o Equador, bananas; Brasil e Colômbia, café; Cuba e Caribe, açúcar; Venezuela, cacau; Argentina e Uruguai, carne e lã; a Bolívia tornou-se país fornecedor de estanho e o Peru de peixe. Embora com produções diferentes, o sistema permanece com mecanismos idênticos em todos os casos: por se tratar de mercadorias primárias, com baixos preços, os países pouco lucram como a venda agrícola. Por isso, têm de produzir cada vez mais e com métodos baratos para fazer mais divisas e atender à necessidades dos países compradores para não perder mercados. Com isso, aumenta-se a exploração do trabalho e a formação dos latifúndios, impedindo o acesso das classes populares à terra. Este processo de dominação personificou-se principalmente na América Central. Neste território, a indústria nacional não existe ou é primária: os grandes conglomerados pertencem a países estrangeiros, atuando exatamente na industrialização de alimentos. Os países vendiam, no século XIX, sua produção agrícola aos ingleses, substituídos um século depois pelos EUA, potência que domina a área e dita os rumos da política local de acordo com seus interesses. A antiga empresa norte-americana United Fruit Company era o "verdadeiro" poder na América Central, comandando a área a despeito das vontades e anseios de sua população, e inclusive promovendo golpes militares e instalando governantes de confiança para garantir seus direitos (como na Guatemala, em 1954: numa intervenção militar, os EUA derrubaram Jacobo Arbenz, socialista eleito democraticamente). As lutas de guerrilha que caracterizam até hoje a região são decorrentes dessa dominação: grupos paramilitares lutam contra governos corruptos que defendem os interesses norte-americanos para chegar ao poder. Mais uma vez, a vítima é sempre a população, que se não morre explorada nos latifúndios, tem sua vida encurtada nas batalhas da guerra civil.

Sociedades nascidas para fora, isto é, para fornecer produtos e condições econômicas de desenvolvimento às potências mundiais, as nações latino-americanas nunca se esqueceram de sua trágica condição. E nem os movimentos de independências nacionais das duas primeiras décadas do século XIX libertaram os novos países da dominação colonial, pois a estrutura permaneceu idêntica: a economia agrário-exportadora dominada por elites locais ligadas aos mercados compradores – principalmente a Inglaterra. A fragmentação que o território latino-americano sofreu após o movimento libertador de Simón Bolívar representa a impossibilidade de formar uma unidade nacional: cada elite identificou-se com um pedaço do território e nela formou seu país, de acordo com seu papel no comércio internacional. Como diz Galeano, "cada novo país identificou-se com seu porto exportador, acima de qualquer idealismo". O imperialismo britânico substituiu o domínio ibérico no século XIX, fomentando seu próprio desenvolvimento às custas da produção dos novos países e exterminando toda e qualquer tentativa de desenvolvimento autônomo. A Guerra do Paraguai, de 1865 a 1870, é o exemplo mais claro desse argumento: capitaneados pelos interesses comerciais britânicos, Brasil e Argentina promoveram um conflito bélico contra a nação guarani, à época a mais industrializada e comercialmente independente do continente. O resultado foi o maior genocídio da história latino-americana (1,3 milhão de mortos numa população de 1,8 milhão) e o enfraquecimento do Paraguai, que até hoje não deixou de ser um protetorado sob a ingerência do imperialismo brasileiro e argentino.

No século XX, com a decadência inglesa, surge no cenário os EUA como nova potência gestora da América Latina. Não é à toa que, já em 1823, os norte-americanos promulgaram a famosa Doutrina Monroe: "A América para os americanos". O que significava dizer: os EUA estenderiam seus interesses sobre seu continente irmão e continuariam a exploração iniciada quatro séculos antes, por meio do controle econômico e político. O início da longa e duradoura intervenção norte-americana no continente data de 1898, quando os EUA derrotaram a Espanha na batalha de independência de Cuba, e se apossaram dos direitos políticos e econômicos sobre a ilha – os quais mantiveram até 1959, quando Fidel Castro e seus guerrilheiros derrubaram o governo de Fulgencio Batista e tomaram o poder. No entanto, mesmo longe de Cuba, é sabido que os interesses norte-americanos criaram ramificações em outros países do continente, com destaque para a já citada América Central e o México.

Mesmo os países com certo desenvolvimento industrial – Brasil, Argentina e México – não escapam dessa dominação econômica imposta pelas potências internacionais. Basta uma análise mais detalhada nos índices econômicos dessas nações para se comprovar o argumento. Grande parte das receitas comerciais dessas nações ainda vêm da exportação de matérias agrícolas, pecuárias (destacadamente o caso argentino) ou minerais. O campo, a agricultura e as indústrias primárias ainda são marcos dos tempos coloniais. Na verdade, as indústrias desses países têm força local, ou seja, encontram mercado apenas em países subdesenvolvidos que não produzem tais mercadorias. Perante as potências, não passam de apêndice das multinacionais com o objetivo de fornecer lucros à matriz, e não em desenvolver um forte mercado interno. A industrialização latino-americana não nasceu dos anseios de desenvolvimento sócio-produtivo, mas da impossibilidade de importar produtos manufaturados durante a recessão econômica mundial dos anos 30. Formou-se uma indústria baseada na "substituição de importações", reforçada durante os anos 50 e 60 com o advento das multinacionais e políticas internas de crescimento. No entanto, a industrialização latino-americana nunca deixou de estar ligada aos interesses estrangeiros, ao fornecer produtos que tais mercados necessitavam e importar tecnologias que, em vez de incrementar o desenvolvimento, só aumentavam a dependência. A demanda interna e o crescimento do mercado consumidor não foi atendida. Assim, entende-se que o movimento industrial do continente foi mais uma etapa do colonialismo perante as potências mundiais: fornece-se produtos baratos, baseados no baixo valor da mão-de-obra e na exploração do assalariado, para se encaixar no mercado internacional e obter técnicas que a indústria local é incapaz de produzir. Mudam os tempos e os métodos, mantém-se a exploração, o subdesenvolvimento e a inviabilidade de um crescimento autônomo e principalmente voltado às classes mais injustiçadas do sistema.

A iniciativa de um mercado de cooperação econômica que visa reduzir essa dominação, como o Mercosul, tem efetividade apenas em nível local, ou seja, perante os demais países do continente, que não dispõem das mesmas tecnologias e condições para produzir as mercadorias que o bloco comercializa. O Mercosul não tem forças para competir ou fazer afrontas à futura Alca, por exemplo, ou à União Européia: estes blocos, além de poderosos economicamente, produzem mercadorias mais baratas e de melhor qualidade que o bloco latino-americano, o que lhes abrem as portas para conquistar os mercados onde o Mercosul atua hoje. A tentativa norte-americana de enfraquecer o bloco reflete que as condições mudam, mas a essência é a mesma: a potência mundial dita as regras e exige o cumprimento das colônias. Embora diga que ainda é muito cedo para se pensar na Alca, o Mercosul vive sob o temor da formação desse novo bloco, que lhe faria concorrência direta ao englobar todos os mercados americanos restantes e limitar sua área de atuação. Tratar-se-ia de um pacto colonial moderno: as colônias seguem a orientação superior, mesmo com contestação, por saber que, se não o fizerem, as conseqüências e retaliações serão muito piores.

Mas não é apenas isso. O Mercosul é enfraquecido em função das diferenças sociais e econômicas entre seus membros que, reforçadas ao longo dos séculos, fazem com que o bloco tenha atritos internos. É inegável que o Brasil é o grande motor econômico do acordo, ao possuir economia e produção diversificados e que gozam de certa estabilidade financeira. Quem lhe poderia fazer concorrência, a Argentina, vive uma crise econômica de grave intensidade que estagnou seu sistema produtivo; o Uruguai oscila seu apoio aos dois países, pois necessita muito dos produtos que eles produzem, já que sua economia é basicamente pecuária; na mesma situação se encontra o Paraguai, país mais pobre e dependente do bloco. Nenhuma decisão pode ser tomada sem a participação das quatro nações, e os desníveis de desenvolvimento de cada uma delas, bem como tradicionais rixas políticas, atrapalham a tomada de políticas conjuntas. Tome-se como exemplo o recente acordo automotivo entre Brasil e Argentina para a construção conjunta de carros. Os argentinos vetaram as primeiras versões do acordo, acusando o Brasil de querer manipular o Mercosul para favorecer a sua produção de peças para carros em detrimento dos outros membros. O que estava implícito na reclamação argentina era a crise da economia local e o inflacionamento da produção: as peças locais saiam mais caras que as brasileiras, o que encareceria o produto final. No final, um acordo definitivo foi assinado, dividindo a produção das peças e os custos de montagem dos carros. Para compensar a crise argentina, quem perdeu foi o Brasil, que arcará com os preços mais caros do parceiro e, conseqüentemente, encarecerá a mercadoria. Esta, na concorrência com outros mercados, sairá em desvantagem.

A América Latina nasceu para poucos desfrutarem da riqueza da terra e do trabalho de muitos. O sangue das "veias abertas" do continente é um manjar que alimenta o crescimento das potências e das elites locais, mas também faz-se veneno que mata a população de sua terra. No entanto, como veremos no próximo tópico, esse continente, mesmo protagonizando uma história trágica e permeada da exploração, elites de interesses limitados e governos repressores, nunca deixou de ter esperanças de mudar. Afinal, a América Latina também protagonizou acontecimentos que tentaram desviar o rumo da história e soam até hoje como esperanças de transformação. São casos como a Revolução Cubana, ocorrida há 40 anos, e a atual guerrilha zapatista no México que ainda permitem o sonho em uma terra melhor. Como disse Marx, a respeito do processo histórico, são os homens que fazem a história, na sua luta diária pela sobrevivência e pelo bem-estar. Assim, somente a luta do povo latino-americano, após séculos de exploração e pobreza, poderá libertar o continente das amarras que o oprimem, desenvolvê-lo em suas potencialidades e, principalmente, dar-lhe uma cara latino-americana, ou seja, voltada às necessidades de seu povo. E, para incitar essa reflexão, apresenta-se agora alguns dos movimentos que tentaram mudar a ordem das coisas no continente.



Os processos revolucionários

Guerras, mortes, ditaduras militares, exploração social, economia dependente. Estas palavras e expressões são muito bem usadas para se expressar o andamento da história latino-americana neste século. Existem pensadores que, de forma cética, consideram que a trajetória do continente nos últimos 100 anos foi marcada exclusivamente pela submissão das massas a regimes políticos autoritários e a um sistema produtivo baseado na exportação. Não haveria, na opinião desses intelectuais, nenhum fato que indicasse uma tentativa de transformação das estruturas sociais ou mudança do rumo histórico seguido. Essa opinião, muito difundida entre aqueles que vêem a América como o "quintal" dos Estado Unidos e descrevem sua população como alienada e explorada, sem capacidade de lutar por uma vida melhor, é falsa. As correntes historiográficas mais modernas, guiadas por uma linha interpretativa menos generalizadora e mais investigativa dos detalhes dos fatos históricos, consideram que, em determinados momentos, a massa popular em alguns países se rebelou e procurou modificar a estrutura social em que se encaixava. Mesmo quando não ocorreu o autêntico levante popular, alguns líderes buscaram seguir o ideal de transformação para construir uma nova nação, e a partir daí uma nova história.

Os historiadores definiram, na história contemporânea da América Latina, quatro eventos que podem ser analisados como tentativas de quebra do domínio imperialista das grandes potências mundiais, buscando uma política mais nacionalista. Alguns de forma limitada, outros de maneira mais direta, todos possuíram algumas características em comum: criticaram o domínio internacional em seus territórios e procuraram introduzir mudanças sociais para beneficiar a população. Até hoje são referências na luta de movimentos sociais no continente como uma esperança de que a história latino-americana, por meio da mobilização, pode tomar outros rumos. Elas são descritas aqui em seus pontos principais, e não em uma análise mais detalhada, pela falta de espaço.







O revolucionário ZapataRevolução Mexicana – O acontecimento mexicano é descrito como a primeira grande mobilização social da América Latina no século XX. O processo começou como uma autêntica revolução, isto é, com o objetivo de promover uma transformação estrutural na sociedade, para depois normalizar-se e garantir algumas mudanças que não representam um processo completo de modificação. Tanto é verdade que até hoje existem movimentos sociais que buscam retomar o ideal da Revolução Mexicana para completá-la e transformar a estrutura social e produtiva da sociedade do país. A guerrilha no Estado de Chiapas, ao mesmo tempo que protesta contra o imperialismo norte-americano e contra a pobreza da região, luta por uma reforma agrária justa e pela memória de Emiliano Zapata, líder da revolução do começo do século que ecoa no México até hoje.



A revolução teve início em 1910. Liderados por Zapata, os camponeses do estado de Morelos levantaram-se contra os latifundiários da região e toda a exploração que estes representavam. Logo o exército do país foi chamado para conter a revolta, que não demorou a espalhar-se para todo o território mexicano. Em combates sangrentos, com diversas mortes em ambos os lados, o exército de camponeses comandado por Zapata e seu aliado Pancho Villa foi conquistando as principais terras, minando o poder agrícola mexicano e a própria força política do ditador Porfirio Díaz. No final de 1910, Díaz foi derrubado para a subida de Francisco Madero ao poder. Este, apesar de ter a confiança de Zapata, representava os interesses da nascente burguesia mexicana: pouco lhe importava tocar na estrutura agrária do país e criar impasses com os latifundiários. A reforma agrária que estava na promessa revolucionária não se realizou, e Zapata voltou ao combate. Reuniu os camponeses, tomou para si mesmo o governo do México em 1914 e iniciou um gradual processo de divisão agrária e reorganização da produção agrícola em pequenas propriedades. Inclusive convocou uma Assembléia Constituinte em 1917, na qual foi aprovada a Lei da Reforma Agrária. No entanto, a burocracia do governo atrapalhava a execução da lei, e a repartição de terras não era executada da forma mais adequada. A ascensão de governos burgueses, que buscavam a industrialização do Estado, e a morte de Zapata numa emboscada em 1919, e a de Pancho Villa quatro anos depois, congelaram o processo e a revolta camponesa.

A reforma agrária foi retomada no período 1934-1940, no governo de Lázaro Cárdenas. Presidente com traços populistas, Cárdenas aplicou de forma séria a lei de 1917, distribuindo 18 milhões de hectares a 772 mil camponeses, num ato predominantemente de oposição aos latifundiários. Bondade do governante? Uma análise mais profunda das transformações que a sociedade passava pode explicar os motivos de tal distribuição. No mandato de Cárdenas, a indústria já despontava como a base da economia mexicana, com o conseqüente declínio do latifúndio agrário-exportador. Além disso, a distribuição acalmava os ímpetos revolucionários dos camponeses e lhes dava um pedaço de terra para desenvolver uma pequena agricultura substancial, sem incomodar o grande latifúndio. Afinal, o presidente não mexeu em toda a estrutura de concentração de terras: em 1940, o censo registrou pouco mais de 300 propriedades de mais de 40 mil hectares – os latifúndios ainda ocupavam uma extensão de mais de 30 milhões de hectares. As terras expropriadas foram, em sua maioria, as improdutivas ou pertencentes a grandes empresas.

A Revolução Mexicana, assim, promoveu uma alteração substancial na sociedade mexicana, ao estimular a reforma agrária e a distribuição de terras para os camponeses. Embora a estrutura social não tenha sofrido modificações radicais, com o poder econômico se concentrando nas mãos da nova burguesia industrial, e muitos dos novos proprietários, sem incentivo ou capacidade para desenvolver a agricultura em sua terra, não tenha largado seu estado de pobreza, tratou-se de um processo com importância ao ser o primeiro grande movimento de massas da América Latina contemporânea, provocando reflexos no continente até hoje, evocada por movimentos nacionalistas que buscam justiça social e reforma agrária.

Revolução Boliviana – Processo inspirado na Revolução Mexicana e que alcançou grande amplitude, com as classes populares inclusive tomando o poder e os meios de produção econômica. No entanto, a incapacidade para manter esse controle, a falta de força política e as pressões de setores mais fortes, incluindo o imperialismo norte-americano, acabaram por minar as bases da revolução e seu potencial renovador que pretendia transformar a exploradora e miserável estrutura social boliviana numa sociedade mais justa e igualitária.

O levante ocorreu no dia 9 de abril de 1952. Incitados pelo MNR (Movimento Nacional Revolucionário), partido de centro-esquerda formado por pequenos burgueses que fora alijado do poder um ano antes por um golpe militar, os mineiros do país iniciaram uma greve por melhores condições de vida e salários. Ao mesmo tempo, explodia a revolta nas grandes fazendas, com os índios e camponeses tomando as terras, e na capital La Paz, onde a população mais pobre se organizou, com a ajuda do MNR, em milícias armadas que invadiram quartéis e, numa incrível guerrilha urbana, venceram o Exército mandado às ruas para combatê-las. O povo boliviano, oprimido ao longo de séculos, tomara o poder em todo o país, e o MNR parecia ser seu representante legítimo para ocupá-lo. Aqui, entretanto, começam as falhas do processo revolucionário do país. O partido, mais preocupado em retomar o governo perdido um ano antes e formado por elementos de classe média, não soube atender às reivindicações básicas da população. Pelo contrário: aos poucos minou as conquistas dos trabalhadores e abriu espaço para a intensificação da penetração do capitalismo norte-americano na economia do país.

Dois marcos da Revolução Boliviana, e que a fazem carregar esse título, são as provas mais evidentes de como o MNR apenas se apoiou na revolta popular para tomar o poder, e não para promover mudanças estruturais na sociedade. O primeiro deles foi a lei de Reforma Agrária, promulgada em agosto de 1953 e destinada a organizar a desordem instalada com a tomada de fazendas pelos camponeses, um ano antes, durante o processo revolucionário. A Lei evitou criar polêmicas com os latifundiários, determinando que os camponeses deveriam devolver parte das terras ocupadas aos proprietários ainda vivos. Ficava com uma pequena faixa de terreno, geralmente improdutiva, antieconômica e pela qual ainda tinha de pagar indenização pela posse. Assim, o campesinato, que em 1952 ocupara a maior parte das terras do país, fizera uma divisão razoavelmente igualitária e eliminara estruturas feudais de exploração de mão-de-obra, como o servilismo, sofria um processo de regressão. Sem incentivo fiscal e grande espaço nos mercados consumidores, o pequeno proprietário, em sua maioria, vinha a perder sua terra para o latifundiário, voltando a ser seu empregado e morando em suas dependências por caridade e em troca de trabalho pesado na lavoura. O sistema de exploração campestre voltara a ser o mesmo: grande propriedade, monocultura, trabalho servil. A diferença é que fora introduzido no campo formas capitalistas de exploração comercial: a produção em larga escala para venda em menor tempo e mais barata. Mas a grande conquista camponesa – as terras -, foram perdidas em sua maior parte graças à lei de Reforma Agrária, feita às pressas pelo governo do MNR e que revelava a incapacidade do partido de se desvencilhar dos grupos economicamente mais fortes do país para promover uma mudança radical na sociedade.

O segundo marco da revolução engana por sua demagogia. Em outubro de 1952, o governo nacionalizou as minas de estanho, supostamente rompendo com um domínio secular da principal fonte de divisas do país por parte da família Patiño, dona das minas e refinarias. O ato poderia simbolizar um desejo de autonomia nacionalista na exploração do minério, se não escondesse certas conjunturas que serviram para reduzir ainda mais o papel e a importância da revolução. Quando nacionalizadas, as minas de estanho já tinham rendimento limitado, tão exploradas que foram pelos Patiño. Assim, a Bolívia não teria muito minério para exportar e fazer divisas no mercado internacional. Além disso, o estanho bruto tem valor reduzido no mercado, tendo de ser tratado em fundições – e o país não possuía nenhuma à época. O país se acostumara a receber pouco pelo estanho retirado das minas pelas empresas dos Patiño e levado para ser fundido no exterior. Com a nacionalização, o processo não se inverteu. A Bolívia continuou a receber pouco pelas toneladas de minério, por exportá-lo bruto, e via em seguida as grandes potências pagar caro pelo produto refinado. A nacionalização das minas não trouxe autonomia econômica à Bolívia, nem melhorou a vida dos mineiros, mas trouxe um problema: teve de herdar minas decadentes e de baixa produtividade, livrando os antigos proprietários de maiores prejuízos. Como se não bastasse, estes receberam indenizações pela expropriação, num total de 22 milhões de dólares. Vendendo muito e recebendo pouco, o governo do MNR ainda tentou reativar a exploração do estanho, fundando uma empresa estatal – a COMIBOL – para descobrir novas jazidas. A iniciativa, no entanto, só trouxe mais prejuízos e quase nenhum estanho. A solução foi recorrer a empréstimos junto aos EUA, em troca do fornecimento, a baixos preços, de minérios e outros produtos, como o petróleo e o gás natural.

O processo de nacionalização das minas se transformou rapidamente numa continuação do retrocesso observado na reforma agrária: as conquistas dos mineiros são gradualmente perdidas pelo líderes políticos que, pertencentes à classe média e ao poder econômico, não podem negar suas origens. Os presidentes do MNR que governaram a Bolívia de 1952 a 1964 tentaram mudar a sociedade boliviana e sua estrutura por meio de decretos, e nunca de forma efetiva. A população não recebeu os benefícios da revolução: pelo contrário, foi dominada ainda mais pela miséria e teve sua força política reprimida quando as milícias urbanas armadas foram suspensas para a reconstituição do Exército, no final dos anos 50.

No entanto, a revolução boliviana, apesar de frustrada em seus planos, serviu como exemplo para movimentos sociais posteriores de como a mobilização popular pode provocar abalos na ordem estabelecida, em busca de melhorias em sua vida. Foi denominada assim por ser um caso em que o povo foi às ruas e batalhou por sua conta, por seus objetivos, acima de ideologias partidárias. Talvez a ausência de um autêntico líder que canalizasse suas aspirações reformistas, evitando o MNR e seu oportunismo pequeno-burguês, tenha sido o principal motivo da derrota das massas no processo revolucionário. Mesmo sem alterar as estruturas sociais e produtivas do país, a revolução deixou heranças, como a modernização das relações no campo (apesar da exploração prosseguir), a politização da sociedade boliviana e a fundação da COB (Central Obrera Boliviana), sindicato urbano de trabalhadores que teve papel fundamental no combate às ditaduras nos anos 70 e 80.







Fidel Castro, líder da Revolução CubanaRevolução Cubana – O processo liderado por Fidel Castro é descrito até hoje como a mais radical mudança política no cenário latino-americano. Afinal, Cuba tornou-se, a partir de 1959, o primeiro país socialista do mundo ocidental e o único em que tal regime sobreviveu, quebrando a hegemonia norte-americana no continente e o "anti-comunismo" que esse domínio pregava e combatia – o golpe militar de 1954 contra o presidente Jacobo Arbenz, de tendências socialistas, na Guatemala, expressa bem isso. Hoje, mesmo com a queda do mundo soviético, o país insiste em se denominar socialista e resiste a uma total abertura econômica, guiada pelos organismos internacionais como FMI e Bird.



A Cuba moderna, segundo o sociólogo Emir Sader, incomoda os outros países por ser fruto de uma revolução que, negando os EUA, deu certo e mudou a estrutura social, apesar dos problemas econômicos e políticos que enfrenta na atualidade.

Sader considera que uma revolução implica numa total transformação do sistema sócio-produtivo da nação, instalando um novo sistema e dando à sociedade novas condições de sobrevivência. Para ele, a guerrilha de Fidel Castro, ao tomar o poder, tinha em mente a necessidade de modificar a estrutura cubana para conseguir o apoio da população e autonomia internacional. É fundamental entender como era tal estrutura antes de Fidel assumir o comando político de Cuba. Incentivada pela colonização espanhola, a ilha se tornou grande produtora de açúcar, cuja venda na Europa enriquecia os senhores locais e atiçava seus desejos de independência para se libertar dos impostos coloniais. O processo de libertação do domínio espanhol se consumou em 1898, mas o novo país, localizado a poucos quilômetros dos Estados Unidos, não escapou da ingerência econômica e política desta nação. Desde o início do século, os norte-americanos se instalaram em Cuba, controlando o comércio de açúcar e todos os demais setores da economia agrária. Os latifúndios dominavam a maior parte do território, reinando a exploração dos camponeses e a opressão política nos centros urbanos. Os EUA faziam e desfaziam presidentes à sua vontade, até que o sargento Fulgencio Batista, a partir dos anos 40, dominou a cena política cubana e acalmou, à base da repressão, as diversas manifestações que eclodiam no país contra a recessiva política econômica e os privilégios norte-americanos. Um dos levantes que conteve foi em 1953, no assalto ao quartel Moncada liderado por um jovem advogado chamado Fidel Castro. Extraditado de Cuba com outros colaboradores, Fidel foi viver no México para, três anos depois, retornar e promover, a partir das sierras e com o apoio camponês, a guerrilha contra a ditadura de Batista. Mesmo com parcos recursos e poucas armas, o exército guerrilheiro cresceu e derrotou a maior parte das forças de Batista, assumindo gradualmente o controle dos principais distritos do país. Quando chegou à capital, Havana, em 1º de janeiro de 1959, Batista já fugira para a República Dominicana, e Fidel foi proclamado presidente e primeiro-ministro.

Após assumir o poder, os revolucionários tiveram, de cara, de enfrentar o governo norte-americano, que ordenou a saída de todas as empresas nacionais do território cubano e decretou o embargo econômico contra o país após a fracassada invasão da Baía dos Porcos, em 1961. A medida norte-americana foi seguida pela maior parte dos países do continente, que romperam as relações comerciais com Cuba e inclusive votaram por sua exclusão da Organização dos Estados Americanos (OEA). De uma hora para outra, Cuba teria de buscar novos parceiros para sobreviver e, principalmente, cumprir seus objetivos de transformação social. Para tanto, optou, em contrapartida ao capitalismo, pelo socialismo e por acordos com os países do bloco liderado pela União Soviética. Vendendo açúcar e níquel a essas nações, Cuba recebia em troca maquinaria pesada e petróleo para desenvolver indústrias de bens de consumo e gerar, com a diversificação das exportações, divisas que permitiam a manutenção de serviços públicos gratuitos à população. A saúde e a educação, entre outros, deixaram de ser privilégio daqueles que poderiam pagar, pois se tornaram serviços estatizados. Além disso, o governo passou a mandar anualmente os universitários ao campo, para ensinar os camponeses a ler e escrever. O resultado desse processo contínuo é visível até hoje. Cuba é o país com maior índice de alfabetização no continente, com 85%. O tratamento de saúde é mantido pelo Estado, e os equipamentos são elogiados ao redor do mundo pela qualidade e tecnologia.

A própria estrutura produtiva – o campo – foi transformada. O primeiro ato do governo revolucionário foi promulgar uma Lei de Reforma Agrária, que determinava a nacionalização de terras improdutivas pertencentes a empresas norte-americanas e latifundiários. Além disso, o governo tomou para si terras que foram abandonadas pelos donos, que fugiram com a vitória guerrilheira. Aos camponeses foram oferecidas duas alternativas: a organização em cooperativas ou a posse individual da terra. O Estado importou maquinaria agrícola, treinou técnicos para ensinar os novos proprietários como gerir a terra e usar os novos mecanismos de produção, incentivou a produção com apoio financeiro e subsídios. As safras de açúcar cresceram e novas culturas foram desenvolvidas, como o tabaco e frutas cítricas. O índice de desempregados e empregados sazonais (durante as safras) diminuiu, com a posse efetiva da terra. Nas cidades, o crescimento industrial e novos serviços, como o turismo, também ofereceu oportunidades à população.

Com o fim da União Soviética, em 1991, e consequentemente de seu principal mercado de açúcar, Cuba enfrentou uma séria crise interna, com diminuição da produção industrial e redução do abastecimento de energia. Mesmo assim, o país sobrevive, ao reatar suas relações com os países latino-americanos e europeus e visualizar, ainda que distante, um princípio de abertura por parte dos EUA. A crise cubana levantou sérias dúvidas quanto à validade do regime de Fidel e as conquistas do país durante seu governo.



É claro que, no sentido mais liberal, o governo de Fidel não é democrático, ao negar o direito às eleições e perpetuar-se no poder. No entanto, sob seu comando Cuba conseguiu a tão procurada "revolução": de um país agrário-exportador e constituído de uma população predominantemente rural e explorada, tornou-se uma nação com economia diversificada e que oferece a seus habitantes condições de vida mais dignas do que muitos países latino-americanos. O exemplo cubano soou no continente durante os anos 70 como um modelo de libertação do imperialismo norte-americano, e até hoje atrai muitos movimentos sociais e guerrilheiros à sua causa. Por mais contestado que seja, o exemplo de Cuba mostra que a transformação radical da sociedade é possível se houver interesse e mobilização popular.

Fidel Castro nos dias atuais



Revolução Peruana – O caso peruano foi atípico em todos os sentidos, e gera diferentes interpretações até hoje na historiografia do país. Em outubro de 1968, uma junta militar liderada pelo general Juan Velasco Alvarado derrubou o presidente Belaúnde Terry e instalou-se no poder. Seu lema, expresso no "Estatuto do Governo Revolucionário", se resumia a três pontos: tornar a estrutura do Estado mais dinâmica para modernizar o país; dar níveis de vida superiores à população desassistida; e desenvolver no povo e na economia uma mentalidade nacionalista e independente perante as potências estrangeiras. Quem lê tais tópicos pode estranhar como um grupo de militares, tradicionalmente conservadores, limitados à força bélica e de pouca instrução, poderia se preocupar com assuntos tão complexos. A explicação é simples. Desde os anos 40, influenciados pela força demonstrada pelo exército norte-americano na Segunda Guerra, os militares peruanos começaram a interferir na política nacional, chegando ao poder em 1945 com um golpe liderado pelo general Manuel Odría. Este promoveu um gradual processo de abertura até 1952, quando foram realizadas eleições livres. No entanto, os militares continuaram a representar uma "eminência parda" na presidência, interferindo nas decisões presidenciais e no andamento do processo político.

Em 1960, o Exército fundou o "Centro de Altos Estudos Militares" (CAEM), destinado a formar militares com consciência crítica sobre os problemas sociais do país. O CAEM representava a extrema politização das forças armadas peruanas e seu desejo mais do que explícito de chegar ao poder na primeira oportunidade. Dois anos depois, essa chance apareceu. Víctor Haya de la Torre, candidato da Apra (partido popular, de caráter populista), venceu as eleições presidenciais, mas não chegou a tomar posse, pois os militares o derrubaram, acusando-o de liderar um levante comunista. Esse governo militar caracterizou-se por iniciar uma "reforma social controlada": tentou uma reforma agrária em terras improdutivas, sem ferir os interesses dos latifundiários, ao mesmo tempo que reprimia e prendia líderes sindicais que clamavam por mais espaço político. Em 1963, pressionados pela opinião pública e pelos EUA, os militares promoveram novas eleições, com a vitória de Belaúnde Terry. Este, apesar de defender em campanha um discurso demagógico, prometendo inclusive a nacionalização do petróleo. Não cumpriu o prometido, como concedeu novos direitos de exploração dos campos petrolíferos peruanos a empresas norte-americanas a baixos preços e impostos. Foi esse ato, aliado ao aumento da pobreza da maior parte da população e da crescente violência rural pela reforma agrária, que estimularam o golpe de Velasco Alvarado, também formado no CAEM.

O primeiro ato de Velasco já foi cercado de polêmica. Na primeira semana de governo, ele nacionalizou a empresa norte-americana "International Petroleum Company", que detinha as principais concessões de exploração do óleo no país. Em seguida, numa clara provocação aos EUA, anunciou que não pagaria indenização à empresa enquanto ela não pagasse uma dívida de 690 milhões de dólares de impostos não pagos. O ato cercava-se de um discurso nacionalista e de independência perante os negócios internacionais, mas foi desmistificado pelo próprio presidente. Para tranqüilizar os investidores estrangeiros, Velasco foi à televisão dizer que somente nacionalizaria outras firmas internacionais se estas não cumprissem as leis do país e não pagassem os impostos devidamente. Com isso, garantia-se as inversões estrangeiras no Peru e a manutenção dos mercados para onde exportava sua produção. A estrutura econômica estava assegurada. A nacionalização da International Company representou mais um ato demagógico, destinado a mostrar à população a força do novo regime e sua preocupação com princípios nacionalistas, do que uma efetiva demonstração de independência perante as potências e vontade de construir uma nova sociedade. Essa demagogia é comprovada pela importância do óleo na economia do país: na época, o petróleo representava apenas 10% das exportações peruanas. A indústria pesqueira e agrícola, dominada por consórcios norte-americanos, ficou intocada. Apesar de bramar contra o capital estrangeiro e nacionalizar setores menos importantes, o regime não diminuiu a dependência peruana perante as potências.

Mas o governo do Peru entrou para a história da América Latina por ser a primeira ditadura militar no continente a promover uma considerável reforma agrária. No final de 1968, Velasco Alvarado decretou a divisão das terras dos latifúndios improdutivos em cooperativas administradas pelos camponeses. Ficou famosa, na expropriação da primeira fazenda, a frase pronunciada por Alvarado: "Camponês, o patrão não comerá mais de tua pobreza". Tal expressão fora dita, duzentos anos antes, por Tupac Amaru, índio que se rebelara contra a exploração espanhola e acabou morto ao ser derrotado. A iniciativa foi boa, mas, seguindo o exemplo das nacionalizações das empresas, mais demagógica do que efetiva. Apesar de grande quantidade de terras ser dividida, numa reforma agrária radical, o governo não forneceu meios técnicos ou qualquer tipo de ajuda para que os camponeses, que há pouco tempo eram servos de poderosos senhores de terras, se tornassem administradores. A produtividade das cooperativas não rendeu o esperado, e com o enfraquecimento do regime, nos anos 70, muitos ex-proprietários entraram na justiça para reaver as terras, alegando desapropriação indevida. Aos poucos a estrutura latifundiária normalizou, ou seja, os camponeses, ameaçados pela falência das cooperativas e pressionados pela justiça, voltaram a ser servos nas grandes propriedades. Alguns, no entanto, conseguiram manter um pedaço de terra, promovendo um regime de pequena propriedade.

Pressionada pelos interesses econômicos internacionais e mergulhada em suas próprias contradições – atacar o capital estrangeiro enquanto não detinha sua penetração na economia, promover uma reforma agrária sem dar a devida estrutura aos camponeses e pregar um discurso nacionalista ao mesmo tempo em que calava a imprensa e suspendia eleições e partidos políticos -, a ditadura peruana perdeu força ao longo dos anos 70. Velasco Alvarado foi derrubado por setores militares mais conservadores em 1975, assumindo o poder o também general Francisco Bermúdez. Este preparou o terreno para a normalização democrática do país, promovendo eleições em 1980.

O regime peruano entrou na história como uma "revolução" por ser o primeiro governo militar que, livrando-se da aura conservadora, tomou consciência dos problemas sociais de seu país e promoveu algumas reformas estruturais de peso na sociedade.



Mesmo não modificando a estrutura básica, a ditadura peruana mostrou que os militares também poderiam ser entendidos na realidade social e ter idéias para modificá-la. O regime de Velasco Alvarado reforçou o papel militar na política peruana, e o grande medo de Alberto Fujimori, quando ainda era o presidente, de ser derrubado do poder pelo Exército reflete a politização das Forças Armadas peruanas: se a corrupção e desmoralização do poder público houvesse se tornado mais crônicas, os militares poderiam intervir como uma forma de "limpar" a política nacional e promover as melhorias buscadas pelo povo. Ou seja, seguir a lição iniciada por Juan Velasco Alvarado. Mas a renúncia e fuga de Fujimori, seguidas pela aparente normalização democrática, tranqüilizaram as Forças Armadas, pelo menos até o momento.

O ex-presidente Alberto Fujimori







O outro lado ainda vive

Mesmo que os tempos de tormenta dos regimes militares sejam um passado distante, os países da América do Sul não podem dizer que são paraísos democráticos. Por mais que exista um processo eleitoral regular e o voto seja um direito universal, as atitudes de certos governantes, bem como sua trajetória política, colocam em xeque a fachada democrática destas terras e fazem pensar se não seriam "ditaduras encobertas".

Três casos exemplificam os argumentos acima. No Peru, Alberto Fujimori se perpetuou no poder durante 10 anos à base de emendas constitucionais que garantiram sua reeleição em eleições marcadas pela fraude. Além disso, não hesitou em usar o Exército – o mesmo que na atualidade lhe fez oposição – para fechar o Congresso em 1992 e decretar-se o único responsável pelo governo do país. Na Bolívia, até o próximo ano o poder está nas mãos do general Hugo Bánzer, eleito em 1997. Para quem não lembra, ele governou o país de 1971 a 1978, numa das ditaduras militares mais denunciadas como abusivas e arbitrárias pela Organização dos Direitos Humanos. Para voltar ao governo, Bánzer teve de promover uma nova imagem pessoal: o militar de respeito que combate o tráfico de drogas. Apoiado pelas forças armadas e obcecado pelo poder, Bánzer tem forças suficientes para dar continuidade à trágica história boliviana: quando um presidente não aprova seu sucessor, dá um golpe de Estado e mantém no poder. Conhecendo a personalidade do velho general, essa hipótese não é improvável.

O terceiro caso também envolve um militar: Hugo Chávez, na Venezuela, governa com poderes absolutos. Depois de se eleger presidente com mais de 80% dos votos, Chávez formou maioria no Congresso e pôde aprovar projetos que centralizam todo o poder em suas mãos. Recentemente conseguiu a aprovação de uma lei permitindo que ele governe por decreto, sem submeter seus planos ao parlamento. Por mais que seu poder emane do povo que o elegeu, Chávez o centralizou de tal forma que constituiu uma pequena ditadura absolutista, sem espaços para contestação.



Os grandes líderes

Também é possível narrar e entender a história do continente por meio de alguns dos líderes que marcaram sua história ao longo deste século. Eles entraram, pela frente ou pelos fundos, para a história do continente. Inscreveram seus nomes na trajetória de seus países até hoje e influenciaram diretamente a vida das populações com as quais conviveram. Seria impossível, dessa forma, não falar de alguns dos mais importantes líderes que a América Latina conheceu. Os homens aqui citados são apenas exemplos, pois muitos outros poderiam figurar ao lado deles ou substitui-los nestas apresentações. Privilegiou-se o critério técnico: a importância do escolhido em seu país e, por sua vez, a proposta em abordar aspectos específicos de algumas dessas mais importantes nações. Pois tratar de seus personagens é uma maneira de se fazer isso e constituir uma idéia mais completa sobre o continente como um todo. Foram definidas três categorias, com dois exemplos em cada.



Os Libertadores

Simón Bolívar (1783 – 1830)

Apesar de fazer parte do século XIX, é impossível falar de América Latina sem se falar de Simón Bolívar. Conhecido como El Gran Libertador, Bolívar foi o primeiro líder a defender e buscar uma unidade latino-americana. Filho de comerciantes que residiam na atual Venezuela, Bolívar teve uma vida cercada de luxos e conforto. Ainda jovem, foi enviado à Europa para estudar, tomou contato com os ideais libertários da Revolução Francesa e, em 1807, voltou à Venezuela, disposto a organizar batalhões militares para promover a independência da colônia. Após combates de dois anos, favorecidos pela fraqueza do exército espanhol, cuja maioria fora enviada para lutar contra a invasão napoleônica na Espanha, Bolívar libertou a Venezuela em 1809. Seu sonho, agora, era expandir a liberdade para todo o continente. Para tanto, formou novos exércitos e aliou-se a militares que já promoviam movimentos de libertação em outras comarcas, como o uruguaio José Artigas e o argentino José de San Martín. Recrutando populares como soldados e dividindo as áreas de atuação, os três generais gradualmente proclamaram a independência dos territórios, até a expulsão definitiva dos espanhóis.

No entanto, os esforços de Bolívar terminaram nessas lutas de libertação. Consciente de que somente uma América unida poderia fazer frente às grandes potências européias e aos EUA, o general tentou unificar todos os territórios libertados. Mas os interesses das elites criollas de cada comarca falaram mais alto, e a fragmentação da América se tornou inevitável. Cada oligarquia não quis perder a área onde desenvolvia sua riqueza para um processo de unificação, pois isso representaria a perda de seu poder político e econômico. O exemplo mais claro da morte do ideal de Bolívar ocorreu na antiga Grã-Colômbia, libertada e governada pelo general venezuelano. Os oligarcas da região não aceitaram a decisão de Bolívar de manter a região unificada num único país, promovendo uma guerra para tirá-lo do poder em 1827. Após a vitória, exilaram o militar e dividiram o território em três novos países: Venezuela, Colômbia e Equador.

Bolívar morreu em 1830, acometido pela tuberculose. Reconhecera que cada elite latino-americana se identificou com sua luta apenas para se libertar da tutela política espanhola, mas não para formar um novo país. Desiludido, profetizou o que a história do continente, marcada por ditadores, mortes e submissão econômica, comprovou: "A América cairá infalivelmente nas mãos de um bando desenfreado de tiranos mesquinhos de todas as raças e cores, que não merecem consideração".







SandinoAugusto César Sandino (1893-1934)

Ex-cortador de cana e mecânico, foi trabalhando nas minas de ouro e prata que Sandino conheceu a realidade da população mais pobre da Nicarágua, bem como percebeu que a economia e a política de seus país eram dominadas pelos EUA, por meio de empresas e governos tampões. A dura vida nas minas e a repressão do exército contra as revoltas dos mineiros foram gerando a consciência revolucionária e opositora aos norte-americanos no jovem Sandino, até que, em 1926, ele iniciou um movimento guerrilheiro na região mineradora, ao norte do país. Depois de uma série de derrotas, os guerrilheiros conseguiram se recuperar e vencer as forças militares enviadas pelo governo, avançando em direção ao centro. Ao mesmo tempo, os camponeses dos latifúndios de café da região sul, e os trabalhadores da capital, Manágua, se levantaram em apoio a Sandino. Os lemas revolucionários eram expulsar os norte-americanos da Nicarágua e melhorar as condições de vida da população.

Diante da intensa movimentação e da ameaça de perder seu domínio, os EUA intensificaram a repressão contra a Nicarágua, exigindo que o governo eliminasse os focos guerrilheiros ao mesmo tempo que enviava tropas para combatê-los. De tão dura e violenta, a ação norte-americana provocou protestos na própria opinião pública do país, levando os EUA a promover uma retirada estratégica do país. No entanto, deixaram como herança a Guarda Nacional, um corpo militar que garantia o poder yankee em território nicaragüense comandada à época por Anastacio Somoza.



Este, apoiado pelos norte-americanos e com ganas de chegar ao poder, iniciou novo levante contra as tropas de Sandino e seus aliados. Foi numa dessas pequenas batalhas que Somoza seqüestrou o líder guerrilheiro, em 1934, e o assassinou. Em seguida, intensificou a repressão contra as populações que apoiavam Sandino e, dois anos depois, assumiu o poder por meio de um golpe de estado.

No entanto, Somoza e sua família, que ficaram no poder durante 43 anos, não foram capazes de matar a herança revolucionária sandinista. Nos anos 60, surgiu a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSNL) que, canalizando a revolta popular e das classes médias contra a opressora ditadura, derrubou o regime em 1979 e assumiu o governo com o intuito de promover as reformas estruturais defendidas por Sandino em sua luta. Sua tentativa, em onze anos de mandato, foi infeliz, pois antes de desenvolver a economia e transformar a sociedade, os líderes sandinistas tiveram de lutar pela manutenção de seu regime contra as tropas financiadas pelos EUA, denominadas "contra-revolucionários". Desgastado pela guerrilha, em 1990 o candidato sandinista, Daniel Noriega, perdeu as eleições presidenciais para Violeta Chamorro, apoiada pelos vizinhos norte-americanos.



Os Populistas

OBS: Esta categoria é provavelmente a mais polêmica, pois muitos outros políticos, como Getúlio Vargas, no Brasil, e Paz Estenssoro, na Bolívia, poderia entrar nela. Mas privilegiou-se o critério de mostrar preferencialmente a história dos países que nos cercam no continente, para desenvolver uma visão mais global. Num próximo ensaio, o tema do Populismo será abordado de maneira mais abrangente, envolvendo todas as suas variantes. No momento, fiquemos com duas de suas mais importantes variantes.





PerónJuan Domingo Perón (1895-1974)

Nascido em Villa de Lobos, no interior da Argentina, Perón teve uma infância pobre. Quando jovem, mudou-se para Buenos Aires para estudar medicina, mas logo foi atraído pela carreira militar e ingressou na Academia Militar Nacional. Promovido constantemente na hierarquia, na década de 30 tornou-se general e começou a se envolver com a política do país. Participou, em 1943, de um golpe de estado que derrubou o regime militar liderado pelo general Ramón Castillo. Perón foi nomeado para o Ministério da Guerra e para o Departamento Nacional do Trabalho, no qual iniciou sua ascensão política. Com o objetivo de ganhar o apoio dos trabalhadores, Perón, durante seu mandato, colocou em prática uma série de leis que visavam melhorar o estado de vida do proletariado urbano, como a instituição do 13º salário, previdência social e benefícios em caso de demissão. Ao mesmo tempo, eliminava e despolitizava os sindicatos independentes, agrupando os trabalhadores em torno do Departamento Nacional.



Com esses atos, Perón canalizava o apoio dos operários para sua pessoa e criava uma enorme base popular em torno de sua personalidade cativante. Não demorou muito, e suas medidas o desgastaram perante os industriais e a classe média, que não aceitavam o espaço e direitos dados à classe trabalhadora. Em 8 de outubro de 1945, Perón foi demitido de seus cargos pelos militares e preso. No entanto, nove dias depois, uma multidão dirigiu-se à frente da Casa Rosada, sede do governo, e pediu sua libertação, num movimento de massas jamais visto no país. Solto, Perón apareceu na sacada e discursou para o povo eufórico. Encerrava-se nesse ato simbólico o regime militar, ao mesmo tempo que o general lançava sua candidatura à presidência.

Eleito em 1946 pelo Partido Laboralista (mais tarde convertido para Peronista, e depois Justicialista, que existe até hoje), Perón levou adiante seus planos de industrialização da economia e concessões aos trabalhadores. Nacionalizou empresas estrangeiras, com altos custos para os cofres do governo, e exerceu forte censura contra a imprensa. Com altos índices de popularidade, Perón e sua esposa, Evita, representavam uma Argentina moderna e independente, que crescia e não enfrentava crises. No entanto, estas começaram a surgir após a reeleição de Perón, em 1952. As nacionalizações de empresas, manutenção dos sindicatos e concessões aos trabalhadores consumiram as reservas financeiras nacionais, gerando redução na produtividade e aumento da inflação. Além disso, o presidente passou a enfrentar a oposição de setores que iam contra sua política, como os industriais, militares conservadores e a Igreja. A economia da Argentina estagnou, e pequenos levantes contra Perón tornaram-se comuns em Buenos Aires. Pressionado pela Marinha e Aeronáutica, ele renunciou em 1955 e exilou-se no Paraguai e Espanha. No entanto, permaneceu como referência política para os anos seguintes, quando o país enfrentou um recrudescimento político, em função de regimes militares opressores.

Com a crise dos governos militares no início dos anos 70 em função de vários fatores, como grave crise econômica, instabilidade social e revolta popular, as diversas forças políticas argentinas uniram-se em torno do nome de Perón para volta ao poder e tranqüilizar a situação, inclusive aquelas que se opuseram a ele nos anos 50. Esse fato demonstra o poder do Peronismo de congregar tendências políticas diferentes em torno de seu discurso trabalhista, defendendo justiça para os operários e independência perante o capital estrangeiro. O velho general voltou em 1973, e logo em seguida foi eleito presidente. No entanto, com a saúde debilitada, Perón morreu um ano depois, sem melhorar a situação de seu país, que veria, a partir de 1976 até 1983, o período mais negro de sua história, com a instalação de uma nova ditadura militar no poder que não teve pudores em matar e desaparecer com todos aqueles que lhe faziam oposição.

Perón foi um líder tipicamente populista, encarnando a ambigüidade dessa filosofia política em seus atos. Defendia em seus discursos uma postura nacionalista, defendendo a soberania nacional, nacionalizando firmas estrangeiras e pregando o sacrifício do povo pelo país. No entanto, ao mesmo tempo oferecia concessões ao capital internacional para promover a industrialização e não mexia na questão da terra, para não promover atritos com os poderosos latifundiários e estancieros exportadores de carne. Concentrava seu poder no apoio dos trabalhadores às suas medidas laborais, mas eliminava sindicatos autônomos e restringia o direito às leis trabalhistas apenas aqueles que se filiassem ao Departamento de Trabalho do governo. Com isso, Perón atrelou os sindicatos e a política trabalhista ao Estado, limitando a ação independente dos trabalhadores e suas reivindicações. Mesmo com essas contradições e a vontade das elites argentinas, o mito de Perón não morreu perante a população. Afinal, ele foi o primeiro líder do país a transformar as massas trabalhadoras em objeto de discurso e melhoria social, dando-lhes direitos e uma existência mais digna.

Até hoje o Peronismo, sob a forma do Partido Justicialista, está vivo. Sua ideologia é a defesa dos direitos do trabalhadores e a industrialização da economia. No entanto, após ficar quase dez anos no poder com Carlos Menem, foi derrotado nas últimas eleições para a presidência da República para Fernando de La Rúa, candidato da União Cívica Radical.







CárdenasLázaro Cárdenas (1895-1970)

Cárdenas chegou ao poder em 1934, com o objetivo de recuperar o México do desastre econômico e social instalado com a crise mundial de 1929. Sua política voltava-se, a exemplo de Perón, para os trabalhadores. A diferença é que, enquanto o argentino destinou suas atenções para a massa de trabalhadores urbanos, Cárdenas centrou sua atuação no campo, onde estava a maior parte da massa trabalhadora do país. Em seu primeiro ato, determinou o cumprimento da lei da Reforma Agrária promulgada em 1917. Nacionalizando terras pertencentes a empresas estrangeiras e expropriando fazendas improdutivas, o governo distribuiu, em seis anos, um total de 18 milhões de hectares a 770 mil camponeses. Embora muitos dos novos proprietários, sem a devida orientação e apoio para manter a terra e incentivar a produção, a tenha perdido para outros latifúndios, a reforma foi uma das maiores já feitas na América Latina e cumpriu seu objetivo político: atrair o apoio camponês para o governo e canalizá-lo em sindicatos controlados e geridos pelo Estado e, em seguida, pelo partido dominante.



Assim, Cárdenas lançou as bases para o aparecimento do PRI, em 1946, como uma agremiação política que detinha o controle e apoio dos sindicatos rurais (e mais tarde dos urbanos), vencendo com facilidade as eleições. Conforme dizem alguns autores, o PRI tornou-se um "partido corporatizado".

Mas Cárdenas não parou por aí. Disposto a transformar os trabalhadores em uma massa ativa, que colaborasse com o Estado em seu processo de modernização, o presidente modernizou as leis operárias e determinou seu cumprimento, apesar das críticas da burguesia industrial. Além disso, definindo os operários como parte fundamental da sociedade mexicana, decretou constitucional o direito às greves. Para completar seu processo de modernização do México, Cárdenas, em 1938, dois anos antes do final de seu mandato, nacionalizou os poços de petróleo, então pertencentes a empresas norte-americanas, sob pagamento de indenizações. Em seguida, fundou a Pemex, empresa estatal destinada à exploração e comercialização do óleo. Este foi o principal investimento estatal na indústria do país. Nos outros setores, como bens de consumo e maquinaria leve, o capital estrangeiro dominou.

O governo de Cárdenas procurou inserir o México numa nova ordem social e econômica, ao mesmo tempo que buscou a normalização dos anseios da população (especialmente a rural) para promover o desenvolvimento e a consolidação do poder nas mãos da burguesia. Tanto é verdade que, apesar das críticas sofridas por conceder muitos direitos aos trabalhadores, foi durante seu governo que a indústria mexicana conheceu seu primeiro grande impulso rumo ao crescimento. Embora, como um bom líder populista, criticasse o capital estrangeiro e a exploração que ele acarretava, Cárdenas incentivou sua participação em setores importantes da economia. Além disso, como Perón, atrelou os trabalhadores ao Estado, centralizando o poder e as classes sociais nesta instituição maior. Mas sua grande realização foi no campo. Concedendo terras aos camponeses, numa ampla reforma agrária, Cárdenas atendeu os anseios de propriedade que ecoavam desde a Revolução Mexicana, em 1910-20, ao mesmo tempo que não mexeu nos latifúndios que formavam a base da agricultura do país. Em levantamento feito no final de seu governo, em 1940, 300 propriedades controlavam 30 milhões de hectares de terras, o que mostra que a reforma não foi completa, e parte do campesinato mexicano seguiu em seu estado de pobreza. Mesmo sem alterar as estruturas básicas da sociedade, concentrando o poder no PRI e definindo a dominação burguesa, Cárdenas passou à história como o primeiro líder do país a pensar e estimular a participação dos trabalhadores na economia nacional.



Os Ditadores







StroessnerAlfredo Stroessner (1912-)

Um dos militares mais destacados do Paraguai nos anos 40 e início dos 50, quando se tornou chefe supremo das Forças Armadas, Alfredo Stroessner sempre teve veneração pelo poder e pela exaltação de sua pessoa. Para obtê-lo, não mediu esforços e, em 1954, comandou um golpe militar que, apoiado pelo latifundiários, classe dominante do país, veio a colocá-lo no governo e instalar a primeira ditadura militar de uma série que dominaria o continente nos anos 60 e 70. Além de reforçar o caráter agrícola da economia paraguaia, favorecendo a classe que o levou ao poder, Stroessner transformou o país no paraíso mundial do contrabando, centralizado em Ciudad del Este, na fronteira com o Brasil.



Aliás, o ditador paraguaio sempre teve nos governos militares brasileiros uma fonte de apoio a seu governo: a maior prova dessas boas reações é a construção conjunta da usina de Itaipu, inaugurada em 1974 e que abastece os dois países. No plano interno, o ditador, sempre com o reforço do Exército e do Partido Colorado, que controla até hoje a cena política paraguaia, procurou calar as oposições esquerdistas, seja por meio do exílio, das prisões e da morte. Os sindicatos se tornaram ilegais e as manifestações de rua, proibidas sob ameaça de prisão.

No entanto, o regime de Stroessner começou a se enfraquecer no final dos anos 70, junto com todas as ditaduras latino-americanas, quando os EUA, que até então eram o principal sustentáculo desses governos, passaram a criticar suas políticas repressivas e os abusos contra os direitos humanos. Aos poucos, as oposições se reacenderam no Paraguai, associadas a protestos populares contra a pobreza, o desemprego e por eleições livres. O governo teve de ceder, e em 1984 a anistia foi concedida aos exilados políticos. Diante da instabilidade da situação, a ala mais moderada dos militares retirou seu apoio a Stroessner, e houve um racha no Partido Colorado nas facções "moderada", que defendia a continuidade do ditador no comando, e "tradicionalista", defensora de uma pequena abertura para garantir o poder pela via eleitoral. Personalista, Stroessner não aceitou deixar o governo, e para mostrar que ainda tinha força colocou na reserva o general Andrés Rodríguez, o segundo homem forte no país. Esse ato, ocorrido em janeiro de 1989, pôs um ponto final à ditadura. A facção tradicionalista, aliada de Rodríguez, obteve o apoio das tropas de cavalaria do Exército e invadiu o Palácio Presidencial no mês seguinte, obrigando Stroessner a renunciar e se exilar no grande aliado de sempre: o Brasil. Hoje, morando em Brasília, Stroessner vive, apesar dos problemas de saúde, tranqüilamente e na impunidade. Há oito anos foi condenado à prisão pela justiça paraguaia por participação em assassinatos, mas, como é tradicional na América Latina, nada ocorreu a ele.







VidelaJorge Rafael Videla (1925-)

Militar de formação tradicional e anti-comunista, Videla foi um destacado aluno do Escola Nacional das Forças Armadas. Sua lealdade aos comandantes e coragem na repressão às manifestações de estudantes durante a ditadura militar nos anos 60 lhe renderam a nomeação para as chefias do Exército argentino, em 1973, e das Forças Armadas, em 1975. Um ano depois, diante da grave crise econômica do país e da instabilidade política ainda provocada pela morte de Perón, Videla liderou um golpe militar que derrubou a presidente Isabelita Perón. No poder, o general tratou de eliminar a todo custo o terrorismo e as oposições a seu regime, por meio do exílio e principalmente dos desaparecimentos e mortes.



Seu governo, de 1976 a 1981, é visto pela Organização de Defesa dos Direitos Humanos como o que mais incentivou a perseguição contra pessoas, fossem contra o regime ou não. Um relatório de 1980 da Comissão Inter-Americana dos Direitos Humanos afirma que, nos quatro primeiros anos do mandato de Videla, mais de 6.000 argentinos haviam desaparecido somente no país. Mais tarde descobriu-se que o general mantinha uma rede de conexões de espionagem com a Junta Militar boliviana, pela qual ambos os governos denunciavam as atividades de líderes oposicionistas que atuavam nos dois países. Foram essas perseguições e assassinatos em massa que criaram o movimento das mães da Plaza de Mayo, que se reúnem todas as quintas-feiras para protestar, até hoje, pelo sumiço de seus filhos.

Mas Videla não mostrou eficiência apenas no combate a supostos oposicionistas e nas táticas para semear o medo na população. No campo econômico, ele intensificou a crise já existente, desorganizando a produção industrial com a falta de investimentos estatais e a perda de capitais internacionais, que não obtinham garantia de retorno em um clima político tão instável. Para combater a inflação, arrochou os salários, gerando insatisfação nos trabalhadores urbanos, cujas manifestações foram reprimidas pelo Exército. A total ausência de liberdade de expressão e segurança foram sendo divulgados ao redor do mundo e atraindo o protesto de vários países, ao mesmo tempo em que a crise interna tonava incontrolável a revolta popular. A saída dos militares foi sacar Videla do poder e colocar um presidente tampão, Leopoldo Galtieri, que, além de invadir as ilhas Malvinas em 1982, convocou eleições livres um ano depois.

Videla, a princípio, pagou por seus crimes. O presidente eleito, Raul Alfonsín, o levou a julgamento, no qual foi condenado à prisão. No entanto, militares descontentes com a medida pressionaram o governo, exigindo a anistia para o general. Foi-lhe concedida a prisão domiciliar, em 1985. Os protestos militares continuaram, e a ameaça de um novo golpe caso Videla não fosse libertado também. Quatro anos mais tarde, o novo presidente Carlos Menen, concedeu anistia total ao ex-ditador, evitando problemas com a cúpula militar para realizar um governo tranqüilo. No entanto, a morte não larga a vida de Videla. Em 1998, um juiz federal ordenou novamente sua prisão por participação no seqüestro e desaparecimento de crianças durante seu governo.

Mortes, medo e desaparecimentos como eixo de governo. Se relembrasse seu passado, Videla poderia mostrar ao mundo que ele já previra a utilização desse tripé caso fosse o governante da Argentina. Afinal, em 1975, na XI Conferência dos Exércitos Americanos, em Montevidéu, ele disse profeticamente: "Se for preciso, na Argentina deverão morrer todas as pessoas necessárias para logra a segurança do país".



Uma conclusão





Como se vê, a história da América Latina é diversa. Mas segue uma linha clara: a da opressão iniciada quando Colombo e suas naus pisaram nas terras do Caribe – opressão que dizimou as populações indígenas e instituiu o caráter econômico e exportador das sociedades latino-americanas, o qual elas ainda não perderam. Até hoje, as desigualdades sociais que se multiplicam nesses países, aliadas a movimentos de guerrilha civil, crises econômicas cíclicas e dependência dos mercados internacionais, caracterizam a formação social destas terras e são o grande desafio a ser enfrentado no século XXI: a proposta de romper com o desenvolvimento regulado ou a submissão extrema para se construir um crescimento autônomo e integrado entre todas as nações continentais – o mesmo sonho de Simón Bolívar, quando, há quase dois séculos atrás, iniciou os movimentos de libertação que resultaram nos atuais países que compõem a América Latina.

Che Guevara





Zapatistas mexicanosA utopia revolucionária não morreu nas revoluções citadas ao longo deste texto: ela prossegue na luta dos zapatistas no México, apesar da violenta opressão do governo mexicano, e no retorno dos sandinistas ao poder na Nicarágua, conquistando as principais prefeituras do país nas recentes eleições. A história mostra que não há caminhos inalteráveis. Pelo contrário, a resistência contra as dificuldades e o desejo dos homens em mudar sua trajetória faz com que, pouco a pouco, o quadro social mude. O inferno econômico argentino, o aumento da pobreza no Brasil e a complicada conjuntura política peruana, entre outros fatos, apenas comprovam que o continente tem que refletir sobre o que está errado nesta trajetória.





Sub-comandante

Marcos, líder

zapatistaDiscutir alguns desses tópicos foi o propósito deste texto: afinal, como dizia o historiador francês Lucién Goldmann, é olhando o passado que podemos melhorar o presente e o futuro. No caso, o opressor passado latino-americano, marcado pelo imperialismo europeu e norte-americano e pela desigualdade social, pode servir como base para uma transformação generalizada no continente. A revolução virá da revolta das classes historicamente oprimidas. A América não se libertará de sua agonia por meio de heróis personalistas e demagógicos, mas sim com a mobilização das maiorias, incentivada pela discussão da realidade continental, poderá provocar tais mudanças há muito tentadas. O objetivo desta revista é fomentar tal discussão e refletir sobre esta terra que, como disse Eduardo Galeano, não nasceu amaldiçoada, e sim convertida à maldição. cabe a nós, latino-americanos, inverter o quadro.



Bibliografia recomendada

GALEANO, Eduardo – As veias abertas da América Latina. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1971

WASSERMAN, Claudia (coordenação) – História da América Latina: Cinco Séculos. Porto Alegre, Editora da Universidade, 2000

BOMFIM, Manuel – América Latina: males de origem. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1993

CHIAVENATO, Júlio José – Bolívia com a pólvora na boca. São Paulo, Editora Brasiliense, 1980

FILHO, Omar de Barros – Bolívia: vocação e destino. São Paulo, Editora Versus, 1980

SADER, Emir – A Revolução Cubana. São Paulo, Editora Brasil Urgente, 1992

SADER, Emir – Cuba, Chile, Nicarágua: socialismo na América Latina. São Paulo, Atual Editora, 1992

PRADO, Maria Lígia – O Populismo na América Latina. São Paulo, Editora Brasiliense, 1981 – Coleção Tudo é História

ROSSI, Clóvis – Militarismo na América Latina. São Paulo, Editora Brasiliense, 1980 – Coleção Tudo é História

BRIGNOLI, Héctor Pérez – América Central: da colônia à crise atual. São Paulo, Editora Brasiliense, 1980 – Coleção Tudo é História

DeCHANCIE, John – Perón. São Paulo, Editora Nova Cultural, 1987 – Coleção Os Grandes Líderes.

AMÉRICA LATINA SOB NOVA ORDEM IMPERIAL


Walmir Barbosa

*

No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, sob o impacto dos colapsos,

respectivamente, do Leste da Europa e da ex-União Soviética, e a conseqüente

incorporação das referidas formações sociopolíticas ao sistema capitalista internacional,

chegava ao fim a ordem mundial do período da Guerra Fria. Surgia então um contexto

histórico ainda mais favorável, quando comparado aos anos 1970 e 1980, para o sistema do

capital repor/aprofundar o domínio sobre o mundo do trabalho e para atenuar a crise de

acumulação do capital por meio do estabelecimento de uma taxa de acumulação que

ultrapassasse a pura e simples reiteração econômico-produtiva, isto é, que superasse a mera

reposição de estruturas, processos e dinâmicas econômicas, que não gerava acumulação de

capital real.

A superação da crise de acumulação significou a imposição de formas ainda mais

brutais de exploração econômica, de dominação política e de opressão ideológica aos

trabalhadores e aos povos das regiões periféricas e semiperiféricas do capitalismo.

1 Os

Estados Unidos, estrategicamente situados em termos políticos, econômicos, ideológicos e

militares, assumiram, sob uma lógica de contradição/conflito e de complementariedade com

a Europa Unificada e o Japão, a liderança desse processo, em escala global.

*

É Mestre em História das Sociedades Agrárias pela Universidade Federal de Goiás e professor da

Universidade Católica de Goiás e do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás.

1

Para uma maior compreensão da crise de acumulação do capital, na perspectiva do autor, consultar o texto O

Capitalismo e o Quadro Político Internacional após o 11 de Setembro de 2001 (Barbosa, 2004).

2

As relações estabelecidas entre os Estados Unidos e a América Latina devem ser

consideradas com base nestes aspectos gerais identificados.

Declínio Relativo Da Hegemonia Norte-Americana

As relações estabelecidas entre os Estados Unidos e a América Latina estão

marcadas por um processo de aprofundamento da ordem imperial norte-americana em

termos globais. Esta ordem encontra-se claramente expressa em termos político-ideológicos

e econômicos.

Em termos político-ideológicos, a ordem imperial norte-americana propagandeia o

fim das revoluções e a eternização do liberalismo econômico e político moderno e reafirma

os Estados Unidos como o fiador militar da ordem mundial. Ela é sustentada internamente

por medidas como restrição de liberdades civis, plano de segurança nacional rígido,

autorização para violação de correspondências, encarceramento de cidadãos estrangeiros

sem acusação prévia e/ou provas de conspirar contra os Estados Unidos e autorização para

tribunais militares julgarem prisioneiros dos Estados Unidos (Fernandes, 2002, p. 15-20).

E, ainda, aprofunda práticas de restrição de direitos civis que sempre se fizeram presentes

historicamente nos Estados Unidos em relação a grupos sociais minoritários e/ou que

ameaçavam os fundamentos sociais e políticos do pacto hegemônico interno.

Em termos econômicos, a ordem imperial conquista e consolida novos mercados

para exportação de produtos e capitais norte-americanos e viabiliza espaços econômicos

nacionais e continentais mais abertos à movimentação das corporações econômicas

(industriais, comerciais e bancárias) norte-americanas. Ela é respaldada internamente por

medidas de proteção da sua economia e das suas empresas, direta e indiretamente, de forma

3

aberta e oculta, por meio da implementação de barreiras tarifárias ou não e de cotas de

importação extremamente restritivas; da aprovação de um pacote de subsídios à agricultura

de US$ 180 bilhões; de encomendas bélicas que ultrapassam os US$ 400 bilhões; de planos

econômicos especiais para o socorro de determinados setores econômicos, a exemplo do

transporte aéreo e do turismo; e da acentuação do processo de liberação financeira

(Fernandes, 2002, p. 15-20). Também nestes pontos encontra-se presente o aprofundamento

de práticas econômicas historicamente protecionistas.

As iniciativas políticas e econômicas que aprofundaram a ordem imperial norteamericana

foram assumidas a partir do final do segundo mandato do governo Clinton. Elas

refletiam, primeiramente, um declínio relativo do poder político e econômico dos Estados

Unidos ao longo dos anos 1990 em áreas-chave do mundo.

Na região do Oriente Médio/Golfo Pérsico, os Estados Unidos fracassaram na

tentativa de isolar política e diplomaticamente os regimes políticos do Irã e do Iraque, de

impor-lhes bloqueios econômicos que os conduzissem a uma submissão incondicional à

ordem econômica internacional e de determinar a condução ao poder central, nestes países,

de governos submissos a Washington. O levante Palestino, por sua vez, desmoralizou os

Estados Unidos (e Israel) dentro e fora do mundo árabe.

Na América Latina, a resistência aos Estados Unidos assumiu formas diversas, a

exemplo da ampliação da guerrilha na Colômbia e do levante popular na Argentina de

2001. Por outro lado, assistiu-se regimes políticos e governos títeres dos Estados Unidos na

América Latina mergulharem em crises, isto é, apresentarem acentuado grau de

esgotamento como instrumentos de controle e subordinação do mundo do trabalho dos seus

respectivos países, a exemplo do governo Mesa na Bolívia, que deu sinais de esgotamento

desde 2004.

4

Na Europa, os Estados Unidos passaram a enfrentar uma intensa oposição do

movimento antiglobalização neoliberal. Passaram a enfrentar, ainda, a oposição diplomática

– pouco sólida, quase sempre retórica e à procura de um espaço para uma reacomodação de

interesses com os Estados Unidos – estabelecida entre a França, a Alemanha e a Rússia.

O declínio relativo do poder político e econômico dos Estados Unidos ao longo dos

anos 1990 em áreas-chave do mundo, em decorrência do crescimento da resistência à sua

política externa, foi atenuado pela ampliação desse poder nos Bálcãs, conquistado a partir

da intervenção realizada por meio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN)

em 1999 – influência compartilhada contraditoriamente com a Europa Unificada –, e na

Ásia Central, com a presença direta dos Estados Unidos, que se beneficiou do espaço

político, diplomático e militar deixado na região pelo colapso da antiga União Soviética.

Este poder, materializado por meio da exploração política das contradições entre povos e

Estados das referidas regiões, da construção de bases militares permanentes e da atuação

privilegiada de corporações econômicas norte-americanas, visava, respectivamente,

compartilhar, como pólo dominante política e econômicamente, influência com a Europa

Unificada e reduzir a presença política e militar da Rússia na região, ainda hoje uma

potência militar relativa, quando comparada aos Estados Unidos.

Em segundo lugar, a expansão dos interesses econômicos dos Estados Unidos, via

corporações econômicas ao longo dos anos 1990, enfraqueceu regimes políticos títeres,

submetidos a orientações neoliberais e globalitárias. São exemplos os governos De La Rua,

na Argentina, Mesa, na Bolívia, Álvaro Uribe, na Colômbia. As crises dos regimes

políticos títeres e o conseqüente declínio do controle imperial ‘indireto’ sobre países

empobrecidos e devastados, passaram a exigir bombas e marines para assegurar a

continuidade do saque operado por corporações econômicas norte-americanas –

5

complementado pelas corporações econômicas européias e japonesas – nestes países, bem

como sustentar os referidos regimes enfraquecidos.

A política externa dos Estados Unidos, tendo em vista reverter o declínio relativo da

sua hegemonia e reafirmar a sua ordem imperial, procura combinar pressão econômica com

ação militar regionalizada. A América Latina testemunha essa política atualmente por meio

da implementação do Tratado de Livre Comércio das Américas (ALCA) e da progressiva

presença militar dos Estados Unidos na região sob o discurso de combate ao narcotráfico e

ao terrorismo.

Hegemonia Norte-Americana e América Latina

Entre os anos 1930 e 1970, o imperialismo norte-americano não se consolidou na

América Latina. Diversos governos latino-americanos, como os de Vargas, no Brasil, e

Perón, na Argentina, expressaram manifestações nacionalistas e populistas, constituindo-se

em formas de resistência aos Estados Unidos. Foram capazes de intensificar processos

como a industrialização sobre bases nacionais, a criação de uma infra-estrutura

razoavelmente articulada e a ampliação da participação política, sob certos limites e

controlada, de amplos segmentos sociais (Petras, 2000, p. 25-27).

Os regimes nacionalistas e populistas representaram avanços em relação ao pacto de

elites oligárquico–imperialistas do período precedente. Ainda que sob mobilização limitada

e controlada do mundo do trabalho, de um lado, e intervencionismo econômico estatal, de

outro, assumiram um projeto de crescimento voltado para dentro por meio de políticas de

substituição de importações.

6

A militarização da América Latina nos anos 1960, cujo batismo de fogo foi o Golpe

Militar de 1964 no Brasil, representou um refluxo na resistência ao imperialismo presente

nas políticas de Estado, sustentadas por blocos de poder sob alianças e articulações políticas

caracterizadas, social e politicamente, pela verticalidade. Os novos blocos de poder sobre

os quais os Estados latino-americanos passaram a se apoiar, sob marcada hegemonia das

corporações econômicas norte-americanas e pilotadas por uma nova tecnocracia formada

nas universidades norte-americanas, reorientaram as economias em favor de um liberalismo

econômico atípico: planejamento e controle programado do mercado pelo Estado,

preservação das empresas estatais, interdependência econômico-produtiva com as

corporações econômicas internacionais e endividamento interno e externo.

Após a militarização da América Latina varrer o populismo e o nacionalismo, no

plano político, e encerrar o desenvolvimento sob bases nacionais, no plano econômico, teve

início a recomposição das democracias liberais de massas. Concomitantemente a este

processo emerge o discurso neoliberal.

O discurso neoliberal garantia uma ‘realidade’ e projetava outras. Afirmava que o

novo modelo asseguraria crescimento, todavia necessitaria de um período de ajuste no qual

salários fossem rebaixados, empregos públicos reduzidos, poupança interna para

investimentos elevada (um eufemismo que escamoteava o seu verdadeiro significado, qual

seja, novo momento do processo de concentração do capital, da propriedade e de renda) e

garantia de livre fluxos de capitais de curto e de longo prazos. Afirmava-se, ainda, que a

conversão tecnológica e administrativa (reestruturação produtiva) das empresas, a

racionalização da esfera pública (redução da máquina administrativa e privatização das

empresas estatais) e a liberalização econômica (desregulação do mercado) aumentariam a

competitividade das empresas latino-americanas, incrementariam o consumo privado com

7

base em menores custos de produção e de importação e elevariam a renda de forma a

reduzir a pobreza.

A nova ordem política e econômica apregoada pelo neoliberalismo não poderia

mais, sequer, acomodar regimes políticos e governos nacionalistas e populistas. Teria

chegado o momento da gestão pública organizada, moderna e racionalizada, ordenada por

meio de dispositivos como controle do déficit públicos, equilíbrio previdenciário e lei de

responsabilidade fiscal.

Sob a nova ordem política e econômica neoliberal (e globalitária), encontrava-se em

curso, nos anos 1980 e 1990, um novo momento de ‘recolonização’ da América Latina.

Neste período, o imperialismo consolidava-se, de fato, na América Latina.

A Extratégia Norte-Americana no Tempo Presente

Atualmente, a imposição da ordem imperial norte-americana sobre a América

Latina encontra-se apoiada sobre dois eixos estratégicos. Primeiramente, a remilitarização

da América Latina, processo em curso por meio de uma ampliação da presença militar

norte-americana, a exemplo do Plano Colômbia e da Iniciativa Andina; da pressão norteamericana

em favor da aprovação de legislações nacionais que criminizem a pobreza e os

movimentos sociais na América Latina, como demonstram o surgimento de leis duras

contra insurgentes, grevistas, mobilizações de excluídos e invasores de terras; e da

articulação entre aparatos repressivos dos Estados Unidos e dos Estados latino-americanos,

na forma de intercâmbios militares, operações militares e policiais conjuntas, financiamento

de instalações policiais e militares e estabelecimento de instalações norte-americanas (CIA,

US Army etc) na América Latina.

8

A remilitarização da América Latina é parte de uma estratégia mais global de

expansionismo militar norte-americano. Segundo Pompeu (2003, p. 4-5),

O Departamento de Defesa americano, equivalente a ministério, que conta com 5700 bases maiores e

menores e outras instalações militares no próprio território nacional e suas dependências, mantém no

exterior 725 bases e instalações, espalhadas por 38 países, das quais 35 bases enormes, no valor, cada

uma, de mais de 800 milhões de dólares – cada uma das outras vale pelo menos 10 milhões de

dólares.

A América Latina abriga uma parte destas instalações – na América Central e no

Caribe: Antígua, Bahamas, Cuba-Guantánamo e Honduras; na América do Sul: Colômbia

(4 instalações), Peru (4 instalações), Venezuela (2 instalações) – e dos 500.000 soldados

que os Estados Unidos mantém em 132 países. Abriga, ainda, uma parte dos 60.000

soldados americanos que realizam manobras diariamente (Pompeu, 2003, p. 4 e 5).

O outro eixo estratégico consiste na criação da Área de Livre Comércio das

Américas (ALCA). Ela representa o fim da soberania dos Estados latino-americanos –

daqueles que ainda a possuem em alguma medida –, visto que não teriam mais política e

nem destino próprios. Estes Estados estariam submetidos à lógica das grandes corporações

econômicas que operam numa racionalidade internacionalizada e não levam em conta

prioridades e uma racionalidade orientada por um projeto nacional (Garzon, 2003, p. 20).

A ALCA visa, fundamentalmente, assegurar acesso irrestrito das corporações

econômicas norte-americanas aos mercados nacionais, às matérias primas e à força de

trabalho na América Latina; restringir a presença européia e japonesa no continente;

liberalizar a economia regional, mas com proteção aos setores econômicos menos

competitivos dos Estados Unidos e contribuir para a redução do déficit comercial norteamericano.

9

Os eixos estratégicos da ação dos Estados Unidos na América Latina fazem-se

acompanhar de objetivos próximos, como sustentar regimes políticos e governos títeres em

decadência; desestabilizar regimes políticos e governos independentes; pressionar a centroesquerda

para que decline de programas políticos de caráter nacional, democrático e

popular e se submetam ao Consenso de Washington, deslocando-se para a direita; e destruir

ou isolar regimes políticos, governos e movimentos populares em ascensão que desafiem a

ordem imperial norte-americana e as elites nacionais títeres.

Na Colômbia e na Venezuela, a política externa dos Estados Unidos possui dois

grandes objetivos. Primeiramente, impedir a formação de regimes políticos que se oponham

a Washington e que se constituam em referências alternativas para outros países latinoamericanos,

em especial no Caribe e na América Central. E, finalmente, assegurar o livre

acesso às reservas de petróleo presentes nos subsolos da Venezuela e da Colômbia,

avaliadas como as maiores do continente americano.

Na Colômbia, a política externa dos Estados Unidos tem como objetivo estratégico

destruir uma luta armada que teve início nos anos 1960. Luta que se desenvolve sobre uma

plataforma política nacional-democrática e que se caracteriza por um conteúdo

antiimperialista e antilatifundiário, isto é, contrário aos anéis políticos e econômicos que

prendem um bloco de forças políticas e sociais da Colômbia – compostos por tecnocratas

civis e militares, latifundiários vinculados às atividades agro-exportadoras, setores da

burguesia comercial exportadora, representantes das corporações econômicas

transnacionais vinculadas aos setores petrolífero, frutífero e mineral e classes médias

superiores – ao imperialismo norte-americano.

Esta luta armada apresenta grande base social e poder de irradiação pelas

características de ação do imperialismo norte-americano da região, como evidencia El

10

Salvador, Nicarágua e Cuba. Tem, ainda, como objetivo próximo, fomentar uma guerra

civil de grande escala, sob o discurso de combate ao narcotráfico. Visa, por meio de uma

‘guerra total’, fortalecer o terrorismo paramilitar de extrema-direita e destruir as plantações

de coca, com o objetivo de acentuar o êxodo rural dos camponeses, de forma a desarticular

as bases socioeconômicas que dão sustentação político-militar às Forças Armadas

Revolucionárias Colombianas (FARCs), tendo em vista derrotá-las. Estas iniciativas são

acompanhadas da pressão norte-americana sobre os países que formam fronteiras com a

Colômbia, no sentido de fechá-las e facilitar o aniquilamento das FARCs, da ‘assessoria’

militar dos EUA ao Exército Colombiano, responsável por lhe proporcionar recursos

econômicos, recomposição dos centros de comando, equipamentos bélicos avançados e

tecnologia para o ‘mapeamento’ dos insurgentes. Uma intervenção militar direta dos EUA e

uma possível dinâmica de vietnamização da região poderá ocorrer em vista do fracasso do

Plano Colômbia.

Na Venezuela, os Estados Unidos implementam/coordenam um movimento cívicomilitar

golpista contra o governo nacionalista e populista de Hugo Cháves. Para tanto, eles

aglutinam setores das camadas sociais médias e superiores, agrupam militares golpistas,

mobilizam entidades patronais e entidades pelegas dos trabalhadores e conduzem um cerco

midiático dentro e fora da Venezuela. O objetivo é substituir o governo Hugo Cháves por

um governo títere dos Estados Unidos.

Na Venezuela, foi adotada, ainda, uma tática de criação de um quadro de anarquia

política, social e militar que ‘legitimasse’ uma ação golpista e/ou, no limite, uma

intervenção direta dos Estados Unidos. Por meio de recursos financeiros oriundos de

Washington, da elite econômica e política venezuelana e de mafiosos e conspiradores de

origem cubano-americana, foi mobilizado um grupo de quinhentos mercenários

11

paramilitares, de origem colombiana em sua maioria, integrantes das Autodefesas Unidas

da Colômbia (AUC) – força paramilitar organizada há décadas por latifundiários e

empresários para combater as esquerdas revolucionárias – tendo em vista a realização de

um assalto ao Comando da Guarda Nacional, com o objetivo de recolher armamento

militar. A outra fase da ação consistiria na distribuição para um grupo paramilitar formado

por três mil homens venezuelanos que assaltariam o palácio presidencial. A ação, frustrada

pela descoberta da polícia venezuelana e pelo encarceramento de parte dos quinhentos

paramilitares colombianos, evidencia a ‘recuperação’ de prática golpista e/ou contrarevolucionária

largamente utilizada pelos Estados Unidos contra regimes políticos,

governos e movimentos sociais latino-americanos que buscam caminhos políticos à

margem da hegemonia norte-americana, a exemplo dos ‘Contras’, na Nicarágua (Costa,

2004, p. 38 e 39).

Na Argentina, os Estados Unidos buscam pressionar o governo Nestor Kirchner a se

submeter ao capital financeiro internacional e a adotar políticas repressivas e criminatórias

dos movimentos sociais. Encontram como limite o movimento popular de massa, articulado

sobre o não pagamento da dívida externa, a defesa da nacionalização dos bancos e demais

setores econômicos estratégicos e a defesa da redistribuição de renda.

No Brasil e no México, a política dos EUA busca conservar governos submetidos ao

Consenso de Washington por meio de instrumentos político-diplomáticos e econômicos.

No Brasil, a influência dos Estados Unidos é grande e indireta, operada por meio de

articulações políticas e midiáticas e por meio das pressões realizadas pelo endividamento

interno e externo. Todavia, encontra resistência diplomática por parte do governo Lula e do

Itamaraty, sob os estreitos limites institucionais, e social, por parte de movimentos sociais,

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a exemplo do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), organizado sobre um

programa político antilatifundiário e antiimperialista em termos políticos e ideológicos.

No México, o controle dos EUA é maior e direto, conduzido por meio da Área de

Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), que em certa medida constituiu uma

espécie de antecipação histórica do que poderá ser a futura ALCA. A economia mexicana

deixou de possuir contabilidade nacional; as exportações e importações passaram a ocorrer,

majoritariamente, no âmbito das próprias empresas norte-americanas; os seus setores

industriais tradicionais foram sucateados, a exemplo do siderúrgico e de autopeças; os

centros dinâmicos da economia do país passaram a ser as empresas ‘maquiladoras’

estabelecidas na fronteira do México, que não passam de mecanismos acessórios da

economia norte-americana e foram aprofundadas as desigualdades de poder e de renda no

plano das relações de trabalho no âmbito dos próprios conglomerados econômicos (Garzon,

2003, p. 20).

A relação assimétrica entre Estados Unidos e América Latina expressa a

implementação de um sistema imperialista neomercantilista na região, isto tanto pelo lado

da assimetria econômico-política quanto pela presença militar territorializada ameaçadora

aos recalcitrantes.

Do Neoliberalismo ao Neomercantilismo

A economia norte-americana convive com desequilíbrios econômicos estruturais

importantes. O déficit em conta corrente – que inclui as contas comercial e de capitais –

ficou em torno de US$ 550 bilhões em 2003, o que representa 5% do PIB norte-americano.

O déficit no orçamento do governo em 2004 – agravado pelo corte de impostos realizado

13

pelo governo Bush que recaíam sobre grandes fortunas e faturamento das corporações

econômicas – ficou em torno de US$ 470 bilhões. O endividamento das famílias médias

norte-americanas atingiu níveis inéditos, como demonstra a declaração de falência pessoal

de 1,5 milhão de indivíduos em 2004 (Pardini, 2004, p. 38-41).

O endividamento e o financiamento do déficit público norte-americano têm ocorrido

por meio de deslocamentos de capitais de diversas partes do mundo para os Estados

Unidos. Entre estes deslocamentos destacam-se aqueles oriundos do extremo asiático.

O Japão, que possui uma economia gigantesca, atualmente estagnada, adota como

estratégia de defesa do iene em relação ao dólar o deslocamento do ‘excesso’ de moeda

local (iene) para fora do país. Este deslocamento ocorre por meio da compra de títulos do

tesouro americano, bem como pela aquisição de ativos de empresas norte-americanas

(Pardini, 2004, p. 38-41).

Países como a China, a Malásia e a Coréia do Sul, que possuem economias

menores, mas que têm se apresentado altamente dinâmicas, têm adotado como estratégia de

desenvolvimento econômico, basicamente, a manutenção das classes operária e camponesa

sob regime de superexploração econômica, a preservação de moedas desvalorizadas e

atreladas ao dólar, o controle sobre os fluxos de capitais, a acumulação de reservas externas

e a condução de políticas de exportação agressivas, prioritariamente voltadas para os

Estados Unidos. As divisas acumuladas não podem ser plenamente incorporadas nos

sistemas produtivos internos desses países, porque ainda são pequenos em termos de

demanda e de instalações de bens tecnológicos de produção, e tampouco flutuar

especulativamente nos seus sistemas bancário-financeiros, o que geraria dinâmicas

inflacionárias e reprodução do capital sem a mediação produtiva (reprodução especulativa).

Por outro lado, interessam a estes países preservar o dinamismo do gigantesco mercado

14

norte-americano, que para a sua continuidade expansiva requer um processo de contínuo

refinanciamento, e recebem boa acolhida pelo governo e pela autoridade financeira norteamericana

(Banco Central norte-americano). Assim, estes países têm se constituído em cofinanciadores

externos da dívida e dos déficits norte-americanos (Pardini, 2004, p. 38-41).

Os países de capitalismo semiperiférico do extremo asiático e o Japão converteramse

em periferia financeira integrada subalternamente ao centro econômico internacional

representado pelos Estados Unidos. Tendo em vista atenuar os riscos que a política de

endividamento e de desequilíbrio orçamentário dos Estados Unidos e a grande massa de

capitais internacionais voltados para o seu financiamento acarretam, para eles mesmos e

para o mundo, os Estados Unidos têm sido compelidos a impor mais decididamente sobre

as suas ‘outras periferias’. Entre estas, destaca-se a América Latina.

A política econômica dos Estados Unidos para a América Latina consiste em impor

aos países latino-americanos orientações político-econômicas neomercantilistas. Isso

significa suprimir a autonomia monetária dos Estados nacionais latino-americanos,

submeter as suas políticas econômicas ao controle das instituições econômicas multilaterais

como FMI, OMC, Banco Mundial, sob hegemonia norte-americana, desmontar o que ainda

resta de setores produtivos industriais articulados sobre bases nacionais em diversos países,

repor a ‘vocação agropecuária’ e extrativista exportadora e/ou industrial complementar a

esta vocação e ampliar os espaços das indústrias ‘maquiladoras’ dos Estados Unidos. A

política econômica dos Estados Unidos para a América Latina consiste, ainda, em

estabelecer uma barreira econômica à Europa por meio da ALCA, assegurada por medidas

como o estabelecimento de tarifas de importações e de contratos entre consignatários.

As conseqüências desta política para os países latino-americanos serão a degradação

de setores das classes médias locais, de pequenos agricultores e de pequenos empresários

15

urbanos; a debilitação do emprego local nas fábricas e nos serviços públicos; a ampliação

do desemprego estrutural, da exclusão e marginalidade social e da criminalidade urbana; o

aprofundamento dos desequilíbrios macroeconômicos na forma do crescimento das dívidas

interna e externa, da desvalorização monetária, da crise fiscal e da crise previdenciária; e a

acentuação dos danos ambientais desencadeados pela pressão econômica por redução de

custos dos conglomerados econômicos e do agro-negócio, mas também pela ação de

segmentos excluídos urbanos e rurais.

As orientações político-econômicas neomercantilistas dos Estados Unidos para a

América Latina encontram-se exemplarmente expostas no setor agropecuário, sendo as

atividades que o compõe especialmente importantes para a América Latina, cujas

economias, ainda hoje, são marcadamente rurais. A aprovação da Lei Farm Bill, que prevê

subsídios ao setor agrícola dos Estados Unidos da ordem de US$ 180 bilhões, distribuídos

ao longo de dez anos, centraliza estas orientações político-econômicas. Essa lei

proporcionará uma significativa redução dos preços agrícolas dentro dos Estados Unidos e

uma maior presença da produção agropecuária norte-americana no mercado mundial

(Barbosa, 2002, p. 30).

Tal processo tenderá a provocar a redução dos espaços para as exportações latinoamericanas

no mercado mundial e a queda de preços dos bens agropecuários neste mesmo

mercado. Os efeitos dessa política de subsídio para o setor agropecuário dos Estados

Unidos na América Latina serão amplas. Em termos econômicos, paralelamente a uma

significativa desarticulação da pequena e média produção rural, ocorrerá um acentuado

desequilíbrio macroeconômico nos países latino-americanos, com redução ou déficits na

balança comercial e, em especial, carência de divisas para o equilíbrio da balança de

16

pagamentos, o que imporá o aprofundamento do endividamento e da dependência

financeira externa destes países.

No plano social, os subsídios agropecuários norte-americanos serão responsáveis,

imediatamente, pela redução da oferta de emprego no campo e por uma nova onda de

deslocamento de população rural rumo às cidades em diversos países latino-americanos.

Em conseqüência, ocorrerão exclusão e marginalização social destas cidades, com efeitos

imediatos sobre a tendência de crescimento da criminalidade e da violência social.

Politicamente, ocorrerá uma maior vulnerabilidade dos países latino-americanos a

pressões político-financeiras dos Estados Unidos, o que deverá reduzir, ainda mais, os

espaços de independência e soberania nacionais. A instabilidade social interna dos regimes

políticos e governos títeres tenderá, ainda, a obrigá-los a recorrer abertamente aos esquemas

policiais e militares tutelados pelos Estados Unidos, tendo em vista a sua preservação.

Conseqüências da Agenda Econômica Neoliberal

A América Latina, entre os anos 1980 e 1990, transferiu quantidades vultosas de

recursos por meio de pagamentos de juros sobre a dívida externa. Todavia, o montante não

parou de crescer. Em 1982, a dívida externa da América Latina era de US$ 237 bilhões.

Entre os anos de 1993 e 1999, a dívida externa subiu para US$ 452 bilhões, e no mesmo

período foram pagos US$ 170 bilhões. No ano de 1998, a dívida chegou a US$ 698 bilhões,

correspondendo a aproximadamente 45% do PIB da América Latina. Nos anos 1990, os

pagamentos de juros e serviços da dívida externa foram responsáveis pela transferência de

aproximadamente US$ 600 bilhões (Petras, 2000, p. 31-33).

17

Os investimentos estrangeiros diretos na América Latina, amplamente liderados por

investidores norte-americanos, têm recuado em favor de investimentos em carteira – títulos

e letras emitidos por governos. Esta realidade testemunha, de um lado, os desequilíbrios

macroeconômicos dos Estados latino-americanos, de outro, a crescente dependência que os

Estados assumem em relação aos capitais estrangeiros para o fechamento das contas dos

balanços de pagamentos.

Todavia, nos anos 1990, os investimentos estrangeiros diretos, que no mundo

cresceram 223%, na América Latina chegaram próximo dos 600%. A participação dos

investimentos estrangeiros diretos no conjunto da formação do capital bruto fixo na

América Latina, que era de 4,2%, entre 1984 e 1989; de 6,5%, entre 1990 e 1993; de 8,6%,

entre 1993 e 1994, superou a casa dos 11% após estes anos (Petras, 2000, p. 35-39).

A participação dos investimentos estrangeiros diretos testemunharam o processo de

desnacionalização das economias latino-americanas. Processo este que não se restringiu à

aquisição de empresas estatais, mas que também se estendeu sobre empresas privadas.

A presença dos investimentos estrangeiros diretos foi qualitativa, visto que estes se

apresentaram concentrados sob a forma de propriedade das corporações econômicas de alta

tecnologia. Estas, por sua vez, remeteram seus dividendos para suas matrizes.

As remessas de rendimentos dos investimentos estrangeiros diretos, que eram de

US$ 1,2 bilhões, em 1994, subiram para US$ 33 bilhões, em 1997 (Petras, 2000, p. 39). No

Brasil, para que fossem fechadas as contas externas, em 2003, foram necessários cerca US$

50 bilhões. Esta realidade nos remete para o irmão siamês dos investimentos extrangeiros

diretos, qual seja, os compradores de títulos públicos (investimentos estrangeiros indiretos)

que vêm do exterior e que permitem aos governos latino-americanos o ‘equilíbrio’ da

18

balança de pagamento. Este processo, por sua vez, reinsere o também irmão siamês da

dívida externa, qual seja, a dívida interna.

O processo culmina, inexoravelmente, em aspectos como o crescimento das dívidas

interna e externa, a pressão sobre as taxas de juros adotadas em cada país e a dependência

de acordos com o FMI para a suposta proteção do país contra ondas especulativas surgidas

nos centros financeiros internacionais, em termos econômicos. Por sua vez, culmina em

aspectos como a redução da soberania nacional por meio da submissão das políticas

(institucionais, sociais, econômicas e culturais) dos Estados latino-americanos aos centros

financeiros internacionais, em termos políticos.

Os pagamentos de

Royaltes e taxas de licença também assumiram grande

importância nos desequilíbrios macroeconômicos. Eles foram de US$ 0,9 bilhão, entre

1985 e 1990; de US$ 1,1 bilhão, entre 1990 e 1993; de US$ 1,6 bilhão, entre 1994 e 1995;

de US$ 1,6 bilhão, em 1996, e de US$ 1,7 bilhão, em 1997. Enfim, transferências líquidas

sem agregar qualquer tipo de valor, cujos desdobramentos intensificam crises nas balanças

de pagamento dos países latino-americanos (Petras, 2000, p. 40).

O discurso neoliberal das ‘vantagens comparativas’ também representou uma

armadilha para os países latino-americanos. As quedas de preços de produtos como café,

petróleo e cobre ocorreram por meio de processos como a manipulação de preços de

importadores e o surgimento de novos competidores internacionais. De outro lado, parte

das transações comerciais ocorreram ‘intra-empresas’. Entre as transações comerciais que

ocorreram fora das corporações econômicas norte-americanas, os Estados Unidos

assumiram o controle sobre mais ou menos 58% delas (Petras, 2000, p. 40-43).

19

Dois Caminhos da Esquerda Latino-Americana

Os anos 1990 na América Latina foram profundamente marcados por coalizões

neoliberais. Carlos Menem, na Argentina, Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, e Carlos

Andrés Pérez, na Venezuela, lideraram alguns dos governos latino-americanos

subordinados incondicionalmente ao Consenso de Washington, em grande parte do período

capitaneado pelo governo Clinton.

Neste início do século XXI, ocorreram mudanças políticas profundas na América

Latina. Primeiramente, mudanças na composição política entre os governos na América

Latina por meio de processos eleitorais, como as vitórias de Nestor Kirchner, na Argentina,

de Lula, no Brasil, de Hugo Cháves, na Venezuela, e, mais recentemente, de Tabaré

Vázquez, no Uruguai. Outra mudança importante tem sido a disposição de diversos

governos latino americanos – com destaques para atuação do governo Lula e do Itamaraty –

na sustentação de democracias liberais latino-americanas e no estreitamento dos laços

políticos e econômicos entre os países da região, por meio de iniciativas como a disposição

de construir uma nova base material capaz de transformar a vontade política de integração

regional numa realidade econômica concreta, começando pela montagem de uma infraestrutura

(de transporte, combustível e comunicação) que integre a América Latina. Por

fim, a procura pela internacionalização dos problemas do continente, sem desafiar

abertamente os Estados Unidos, a exemplo da criação do G-20, nas negociações da OMC,

bem como na criação de várias outras alianças e blocos transversais, envolvendo países da

África e da Eurásia (Fiori, 2005, p. 24-26).

Para Fiori (2005, p. 26), tais processos proporcionaram

20

[...] um passo importante na consolidação da atual política externa brasileira e, mais do que isso, na

consolidação de um eixo de esquerda no comando da política externa latino-americana. Uma

oportunidade sem precedente para que o continente se levante sobre as próprias pernas e se proponha

coletivamente como um ator e com um tema da nova agenda internacional das Grandes Potências

.

Estas expectativas parecem confirmadas pela condução do processo de

reestruturação da dívida Argentina conduzida, unilateralmente, pelo governo Néstor

Kirchner, com franco apoio popular, expressos em pesquisas de opinião pública e em

movimentações sociais, internamente, e oposição dos investidores internacionais, com

tentativa de boicote e embargo de bens comerciais argentinos no mercado internacional,

externamente. Essa reestruturação consistiu na troca dos títulos, conduzida entre 14 de

janeiro e 25 de fevereiro de 2005, com desconto de 75% sobre o valor nominal deles

(Costa, 2005, p. 18-21).

A dívida, após a sua reestruturação, caiu de US$ 191 bilhões para US$ 125 bilhões.

Os juros ficaram entre 2% e 5% – ao passo que no Brasil tem se mantido entre 10% e 12%

– e não comprometerão mais do que 25% do orçamento da União – no Brasil, não

raramente tem comprometido 40%. As condições de pagamento, por sua vez, foram

alongadas (Costa, 2005, p. 18-21).

O processo de reestruturação da dívida Argentina compõe um conjunto de

iniciativas político-econômicas de caráter heterodoxo. Foram adotadas políticas de reajuste

do salário mínimo, desde 2003, tendo em vista recompor a perda de 43,9% ocorrida a partir

da desvalorização do peso, e de controle dos reajustes das tarifas de serviços públicos, sob

intensa pressão de investidores internacionais, das corporações econômicas que atuam no

setor e do FMI (Costa, 2003, p. 32 e 32). Tem sido desenvolvida, ainda, uma política de

crescimento interno que tem se conservado em torno da casa dos 8%, desde 2003 – ao

passo que no Brasil dificilmente tem chegado a 3% –, e de negociações com o FMI em

21

torno de superávit primário não superior a 3% – no Brasil, caminha para 5% (Costa, 2005,

p. 18-21).

A política econômica Argentina, em seu conjunto caracterizada por orientações

heterodoxas e em contradição com os receituários econômicos do FMI, foi responsável pela

redução das taxas de desemprego e pela melhora das balanças comercial e de pagamento,

bem como preservou a estabilidade da inflação. Todavia, ainda que os efeitos positivos

dessas iniciativas políticas não estejam esgotados, não poderão apresentar um desempenho

muito melhor. Ir além pressupõe que os Estados latino-americanos reconstruam as suas

respectivas soberanias e se coloquem como um ator coletivamente, de maneira a construir

uma trajetória que passe ao largo da ordem imperial norte-americana.

Em que pese as mudanças e os processos de negociações com investidores

financeiros e corporações econômicas internacionais, responsáveis por contradições com o

Consenso de Washington, os governos de esquerda da América Latina têm se conservado

nos estreitos limites de uma oposição por dentro da ordem imperial norte-americana.

A imposição da ordem imperial norte-americana na América Latina tem

desencadeado mudanças políticas profundas na esquerda latino-americana. As organizações

sociopolíticas, partidárias ou não, de esquerda, organizadas prioritariamente tendo em vista

uma intervenção institucional, têm convivido com o deslocamento para a ‘direita’, em

termos políticos, na América Latina. Esse deslocamento tem se efetivado por meio de

alianças e/ou frentes políticas integradas por liberais moderados, conservadores e entidades

de representação empresarial. As plataformas políticas dessas alianças, por sua vez, têm

consagrado o reconhecimento dos contratos com o capital corporativo e financeiro

internacional, bem como reafirmado (e efetivamente pago) os compromissos com os custos

financeiros do endividamento interno e externo e dos desequilíbrios macroestruturais.

22

Uma nova esquerda surge (e/ou se faz presente) nos movimentos de piqueteiros,

indígenas e camponeses. Por meio da recusa ou da secundarização da intervenção

institucional, essa nova esquerda tem procurado, e efetivamente alcançado em diversos

países, uma articulação sólida com movimentos sociais que se formam espontaneamente,

impulsionados pelas contradições e os conflitos gerados pela nova ordem imperial. São

exemplos destes encontros de acumulações políticas ‘verticais’ (organizações sociopolíticas,

partidárias ou não) e de acumulações políticas ‘horizontais’ (movimentos de base

formados expontaneamente) os movimentos sociais pelo não pagamento da dívida externa,

na Argentina, e o movimento de camponeses e índios pela conquista da soberania nacional

e pela afirmação política, social e cultural das maiorias étnicas marginalizadas, na Bolívia.

Ocorre, atualmente, um processo de radicalização dos movimentos sociais na

América Latina. Essa radicalização evidencia uma tendência para um enfrentamento

estratégico entre as orientações político-econômicas neomercantilistas dos Estados Unidos

– sustentadas em países latino-americanos por regimes e governos títeres e por segmentos

empresariais rurais e urbanos integrados de forma subordinada às corporações econômicas

e aos circuitos financeiros internacionais – e as grandes massas populares oriundas do

mundo do trabalho, com significativos avanços organizativos e crescente radicalidade em

diversos países.

As grandes massas rurais camponesas (indígenas ou não) tenderão a ser decisivas

nos países que ainda se caracterizam pela ruralidade, a exemplo da Bolívia e do Equador.

Os movimentos sociais de massas socialmente diferenciados, mas marcadamente urbanos,

tenderão a assumir a liderança política nos países em que ocorreu a conglomeração de suas

populações nos grandes centros metropolitanos, a exemplo da Argentina. Em países como o

Brasil e o México, nos quais a metropolização da população coabita com um mundo agrário

23

expressivo, participado por camponeses (indígenas ou não) e por pequenos proprietários

fortemente integrados ao mercado, tenderão a expressar movimentos de massas ainda mais

diferenciados socialmente, com sólida aliança política entre manifestações políticoorganizativas

rurais e urbanas.

À mediada que os fundamentos políticos e econômicos do Império Americano,

oriundo da articulação entre as suas corporações econômicas e o Estado, se debilitam, o

papel do Estado Imperial tende a aumentar. O enfrentamento estratégico entre as

orientações político-econômicas neomercantilistas dos Estados Unidos e as grandes massas

populares oriundas do mundo do trabalho, que ora se delineia, torna o Império Americano

mais dependente da intervenção militar, do terrorismo de Estado e do aparato de

espionagem, tendo em vista o esmagamento dos adversários e a intimidação dos

recalcitrantes.

O Delinear de Cenários Futuros Mais Conflituosos

Atualmente, as economias latino-americanas encontram-se sob uma intensa

estagnação e crise, fruto da pilhagem econômica historicamente sofrida, mas agravada a

partir dos anos 1980. Entre as suas formas destacam-se a extração e o repatriamento de

recursos líquidos em favor dos Estados Unidos – e, secundariamente, da Europa Ocidental

e do Japão – por meio de processos como os endividamentos interno e externo e o avanço

das corporações econômicas norte-americanas – entre as 500 maiores corporações

econômicas que atuam na América Latina, 244 são norte-americanas; e entre as 100

maiores, 61 são norte-americanas (Petras, 2000, p. 21-25). Este quadro econômico, ao qual

24

se agrega a pulverização dos direitos trabalhistas na região, concorre para o agravamento da

pobreza e da desigualdade social na América Latina.

As contradições e os conflitos sociais tenderão a assumir cada vez mais relevância

na América Latina. A sua canalização para um enfrentamento estratégico entre as

orientações político-econômicas neomercantilistas dos Estados Unidos e as grandes massas

populares oriundas do mundo do trabalho constitui-se, tão-somente, em uma tendência

quando verificadas à luz de lutas conduzidas por grandes massas populares, a exemplo do

levante argentino de novembro de 2002. Todavia, o crescimento vertiginoso da violência

sob a forma da criminalidade, que também caminha passo a passo com os movimentos

sociais, pode desencadear uma inflexão desta tendência, como se pode verificar em amplos

bolsões de excluídos e marginalizados sociais de Bogotá, do Rio de Janeiro e de Buenos

Aires.

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Caros amigos. São Paulo, n. 17,

jun. 2003.

A Bolívia que só a Veja não vê


Reproduzo reportagem de Caroline Cotta de Mello Freitas e Vincius Mansur, publicada no jornal Brasil de Fato:



Publicada na edição 2164 da revista Veja, de 12 de maio deste ano, a matéria “A farsa da nação indígena”, referindo-se à Bolívia, traz uma série de equívocos e de fatos descontextualizados que, juntos, dão forma a um texto totalmente preconceituoso com o país e com o processo político por ele vivido atualmente.



Apesar do repórter Duda Teixeira assinar o texto de La Paz, é difícil crer que um jornalista esteve nesta cidade e, ainda assim, intitulou sua peça jornalística tal qual foi publicada. Só não percebe os traços indígenas da maioria da população quem passou por aqui e não olhou a cara das pessoas. Quem caminhou pelas ruas de ouvidos tapados ignorando os “aymara e quechua-hablantes”. Quem não se permitiu aos olores, não provou da comida, não buscou saber da música, não buscou na literatura, enfim, quem censurou todos os sentidos e quase todas suas formas de reprodução. De tal maneira que desatar tantos devaneios travestidos de jornalismo nos consumiria o espaço de toda uma edição da revista. Mas vamos a alguns pontos.



Alguns dirão que La Paz não é a Bolívia e, de fato, a Bolívia é muito mais diversa, para se ter uma idéia são 36 povos indígenas no país, além de afrobolivianos, grupos descendentes de imigrantes e muitos mestiços. O autor do artigo pode alegar que a dita farsa não é obra do povo boliviano, senão dos líderes do “processo de cambio”. Porém, a própria matéria cita que a nova Constituição – resultado de uma Assembléia Constituinte, posteriormente aprovada em referendo popular durante a primeira gestão de Evo Morales – considera a Bolívia um Estado Plurinacional. Afinal, onde está a farsa?



De maneira oportunista, o texto segue manipulando informações sem critério para criticar as medidas de orientação indigenista do governo, porém utiliza os argumentos de outros indigenistas quando estes sustentam críticas ao poder executivo, transformando a matéria em um malabarismo argumentativo que, ao final, caricaturiza toda expressão indígena e reduz a diversidade e as possibilidades políticas que se apresentam dentro do processo de mudanças.



A Veja afirma que o projeto político do MAS (partido de Morales) é uma farsa porque “os índios representam apenas 17% da população”, porque o nacionalismo indígena foi “criado em universidades americanos e européias” e “transferido para o altiplano por 1,6 mil ONGs”. Afirma que “o caos foi instalado” e que “a Bolívia tornou-se um país sem lei” com a institucionalização da Justiça Comunitária, ou seja, com o reconhecimento legal pelo Estado das formas de justiça aplicadas há séculos nas comunidades originárias. Medida responsável por “propagar linchamentos entre a população” que agora ocorrem “em média, um por semana”, conclui Teixeira - ou seu editor - sem qualquer menção a origem dessas informações.



Assim como não menciona que o último censo oficial, realizado em 2001, apontou que 66% da população se identificava como indígena. Não menciona Tupac Katari, Bartolina Sisa, Julian Apaza, Pablo Zarate"Willka” e todos aqueles que, desde há muito, construíram lutas e idéias em prol de uma nação onde os indígenas fossem livres e respeitados, antes mesmo de qualquer contato com universidades e ONGs ocidentais. Não mencionam o Artigo 190 da Constituição, que estabelece, entre outras coisas, que “a jurisdição indígena originária camponesa respeita o direito a vida, o direito a defesa e os demais direitos e garantias estabelecidos na presente Constituição”.



O jogo mesquinho de construção do real não diz que linchamentos são um fenômeno urbano, não rural, que está relacionado ao amplo descrédito em relação às instituições da ordem, como a Polícia e a Justiça. O episódio de agressão sofrido por Victor Hugo Cárdenas é atribuído à Justiça Comunitária. No entanto, a “pelea” de certos grupos e movimentos indígenas com Cárdenas é bem anterior ao governo Morales. Cárdenas, um antigo ideólogo do indigenismo Katarista, é considerado traidor por alguns grupos e movimentos indígenas, pois aceitou ser vice-presidente, a partir de 1993, do então presidente Gonzalo Sanchez de Losada, um dos maiores responsáveis pelo avanço de políticas neoliberais, que entre outras coisas entregaram a preços “módicos” os recursos naturais bolivianos às empresas transnacionais.



A manipulação grosseira segue com o caso Patzi. Na versão da revista, o ex-candidato do MAS ao governo de La Paz nas eleições regionais de abril deste ano, o aymara Félix Patzi, foi “flagrado dirigindo bêbado, foi condenado pela Justiça comunitária a fazer mil tijolos. Além disso, teve a candidatura inabilitada. Se Patzi tivesse concorrido ao pleito e vencido, isso tampouco garantiria a sua posse”.



Patzi de fato foi flagrado bêbedo, justamente no momento em que o governo enfrentava os trabalhadores e empresários do setor de transporte, que chegaram a realizar bloqueios de estradas em oposição ao projeto de lei que previa, entre outras coisas, a suspensão da licença para conduzir daqueles motoristas profissionais flagrados bêbados trabalhando. Nesse contexto, o MAS decidiu substituir Patzi pelo também aymara César Cocarico. A Justiça Comunitária entra na história através das bases de Patzi, que em seu povoado aymara, Patacamaya, em busca do perdão que o reabilitaria a ser candidato, estabeleceram que ele deveria construir os tijolos para se redimir. Porém, mesmo cumprindo a pena, o MAS não mudou de posição.



E assim o texto vai distorcendo fatos, chamando a Justiça Comunitária de “brutal arma contra a oposição e ex-aliados de Morales”. Mas, não menciona que boa parte dos adversários do presidente, em geral os governantes de outrora, fugiram do país com medo da Justiça Comum, uma vez aprovada a Lei Anticorrupção Marcelo Quiroga Santa Cruz, que, entre outras coisas, considera que os crimes de corrupção cometidos por servidores públicos no exercício de suas funções são imprescritíveis.



A Veja mente quando afirma que Morales já perdeu o apoio do Conselho Nacional de Ayullus e Markas do Qullasuyu (Conamaq) e da Assembléia do Povo Guarani (APG). É verdade que ambas as organizações têm tomado posturas críticas diante de políticas estatais, ou da falta delas, e seguem apostando na mobilização como forma de conquistar direitos, ao invés do apoio apático e incondicional. Porém, uma revista que escreve que os protestos diminuíram nos primeiros anos de governo Morales “já que o presidente controlava os baderneiros” é incapaz de entender que Conamaq e APG seguem fazendo parte da aliança que governa a Bolívia.



A Bolívia, desde as revoltas chefiadas por Tupac Katari, no século XVIII, se caracteriza por grandes mobilizações populares. Os famosos “bloqueios” e “marchas” são estratégias de manifestação do povo boliviano há séculos. Feliz país que se caracteriza pelo dissenso, nada mais democrático. Perigo é o silêncio conivente, a indignação que não toma as ruas, seja por impedimento (como nas ditaduras) ou por indiferença. Manifestações públicas, como as marchas bolivianas e críticas abertas ao governo não são só necessárias, são fundamentais para que se fortaleça um Estado democrático. O dissenso não é uma prova de “farsa”, é uma prova de “saúde” democrática.



Mas, infelizmente a Veja segue disseminando de maneira sistemática sua visão preconceituosa em relação aos povos indígenas e também aos quilombolas, vide a matéria publicada na edição anterior, de número 2163, datada de 5 de maio de 2010, intitulada “A farra da antropologia oportunista”. Nela, a revista atribui a declaração "não basta dizer que é índio para se transformar em um deles. Só é índio quem nasce, cresce e vive num ambiente de cultura indígena original" ao antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Porém, é vergonhosamente desmentida por Viveiros de Castro que, em uma carta para a revista, afirma: “Nenhum antropólogo que se respeite a pronunciaria”.



A Veja, por possuir essa perspectiva distorcida sobre “o que é ser índio”, afirma, portanto, que Morales não é indígena por não falar aymara fluentemente ou por ser solteiro. Questionamentos como esses tem mais relevância para Veja que a autonomia indígena estabelecida pela nova Constituição, a incorporação da bandeira indígena wiphala como um dos símbolos oficiais do país, a obrigação dos funcionários públicos em aprender uma língua originária falada na região onde trabalham, a criação de três universidades indígenas (uma aymara, uma quechua e uma guarani), a libertação do trabalho escravo de indígenas guaranis em fazendas em Santa Cruz, a erradicação do analfabetismo na Bolívia ou até mesmo o fato do país ter apresentado o maior crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina (3,2%) em 2009, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), fatos omitidos na matéria.



Evidentemente, o processo político encabeçado por Morales encontra enormes desafios, dissidências e disputas internas, que reproduzem, por vezes, as velhas práticas em busca do poder – conhecidas em todos os países do mundo - mas também muitos boatos, muitas versões. Elementos existentes em todos os processos políticos vivos e pujantes.



A acusação de que Morales divide o país com suas declarações, como disse Jaime Apaza à Veja, são no mínimo curiosas. Afinal, falar em inclusão de grupos tradicionalmente excluídos não significa dividir o país. Um presidente que defende os direitos de grupos invisibilizados há séculos, não profere palavras de “ódio”. Claro, para certas parcelas da população boliviana, sim, as idéias defendidas por Morales são ameaçadoras porque ameaçam privilégios seculares e a manutenção de uma sociedade racista e excludente, em que a origem étnica tradicionalmente “define” quais lugares alguém pode ocupar na sociedade.



Para aqueles que carregam traços indígenas em um país como a Bolívia, onde a circulação de pessoas de origem indígena em certas áreas das cidades era restrita até 1952, o atual processo político e social tem um valor difícil de ser mensurado. E, certamente, impossível de ser taxado como farsa.

• A América Latina entre a ruptura e uma nova utopia capitalista

José Arbex Jr., da revista Caros Amigos

Luciana Candido

Valério Arcary


“Não há uma diferença substancial, de natureza, entre os governos Chávez e Lula: ambos se mantêm nos limites do regime burguês. Em situações distintas, ambos pretendem uma “utopia contemporânea” destinada ao fracasso: a impossível regulação social do capitalismo”, afirma Valério Arcary, para quem a América Latina vive uma vaga revolucionária que, para ser vitoriosa, exige a ruptura com o imperalismo. Membro da direção nacional do PSTU, doutor em história social pela USP e autor dos livros As Esquinas Perigosas da História (Xamã, São Paulo, 2004) e O Encontro da Revolução com a História (Xamã e Sundermann, São Paulo, 2006), Arcary concedeu a seguinte entrevista a Caros Amigos:





O que está acontecendo na América Latina? Estamos vivendo um novo período revolucionário?

A América Latina chegou a um novo momento de impasse histórico. Há uma crise de proporções catastróficas, graças à recolonização, que se acentuou nos anos 90. Nos últimos quinze anos sofremos processos de desnacionalização e desindustrializaçã o, de aumento das desigualdades sociais. Esse processo, mais acentuado num país, menos em outros, fez com que todas as chagas históricas do nosso continente adquirissem proporções colossais. Hoje, a maioria de sua população vive na miséria biológica, mal consome todos os dias as 2.000 calorias indispensáveis para a pessoa manter o mínimo de saúde física e mental. Apesar de as taxas oficiais de escolaridade se elevarem, mais de metade da população não atribui sentido à linguagem escrita. A concentração da propriedade, urbana ou rural, agrária ou industrial, móvel ou imóvel, adquire proporções muito mais elevadas do que no passado. Todos esses elementos se acumularam de tal maneira que se esgotou uma experiência histórica. A partir da virada do milênio abriu-se uma situação revolucionária no conjunto do continente, com situações nacionais diferentes.



Não soa irônico que justamente um militar de carreira, ao chegar ao poder, na Venezuela, tenha assumido a defesa de um projeto socialista para a América Latina, o “socialismo do século 21”?

É o padrão da América Latina, não é um fenômeno novo. Chávez está associado a uma corrente militar nacionalista, cujo horizonte histórico se encontra nos limites do capitalismo, mas que se radicaliza contra a exploração imperialista, contra as frações burguesas oligarquizadas. Prestes surgiu no Brasil, nos anos 20, liderando o tenentismo, como um movimento que expressava a radicalização das novas classes médias urbanas contra a burguesia agrária da República Velha. No México, o general Lázaro Cárdenas suspendeu o pagamento da dívida externa, depois da crise de 1929, e só voltou a pagar ao final da Segunda Guerra. Nos anos 70, houve a experiência do general Velasco Alvarado, o chamado socialismo militar, no Peru, e a do general Juan Torres, na Bolívia. Então, não há uma surpresa histórica. Mas, podemos falar da crise da esquerda venezuelana: se o nacionalismo militar radicalizado adquire um peso tão grande, isso diz muito do que aconteceu com a esquerda, e não só na Venezuela. Nos últimos quinze anos, houve um furacão, um tsunami político, que tornou a esquerda latino-americana irreconhecível. Para quem, da nossa geração, viu o que foi o sandinismo na Nicarágua no final dos 70, a Frente Farabundo Marti em El Salvador, para quem se lembra o que era toda a esquerda inspirada no exemplo da Revolução Cubana – como os montoneros e os tupamaros – e até os grandes partidos comunistas que tinham peso de massa, como no Uruguai, hoje o quadro é desolador. Ex-montoneros colaboram com Kirchner, na Argentina, Daniel Ortega colabora com as frações mais poderosas da burguesia nicaragüense, e por aí afora.



O que significa, para você, o “socialismo do século 21”?

É um projeto que mantém as relações de propriedade capitalista e uma economia de mercado com um papel regulador forte do Estado, cujo objetivo é garantir não só o funcionamento dos serviços públicos, mas um certo controle de preços sobre as mercadorias mais essenciais. É, fundamentalmente, uma utopia do mundo contemporâneo, um projeto de regulação social do capitalismo. Todas as tentativas históricas que foram feitas nesse caminho, até hoje, fracassaram. O capitalismo não é regulável, a ruptura é inevitável. O capital aceita negociações e faz concessões apenas se houver perigo de revolução. Historicamente, podemos ver três experiências em que o capital esteve disposto a fazer concessões: no final do século 19, depois do terror que foi para a sociedade burguesa européia a Comuna de Paris; à luz da experiência trágica dos anos 30 do século 20; e após a tragédia produzida pela Segunda Guerra, que abriu o caminho para novas revoluções, porque existia outubro de 1917 como exemplo. O capitalismo europeu, no quadro do Plano Marshall, fez concessões às classes trabalhadoras e negociou reformas. Em certa medida, o pacto social do pós-guerra criou uma regulação limitada, estabeleceram- se limites para a exploração da força de trabalho, reconheceram- se direitos da classe trabalhadora. Esse grande acordo explica por que o período da Guerra Fria foi, em grande medida, de certa estabilidade no centro do sistema. Mas, nas sociedades periféricas, esse pacto nunca existiu. As concessões são sempre transitórias e efêmeras. Podemos dizer, por exemplo, que nos anos 50 foram feitas concessões ao trabalho no Brasil, com a garantia da estabilidade de emprego, com a consolidação das leis do trabalho (CLT), mas isso decorria, em grande medida, de um fato fundamental: quando acabou a guerra, no Brasil, à parte Vargas, o líder popular com maior prestígio era Luís Carlos Prestes, eleito ao Senado com 10 milhões de votos, líder de um partido comunista com influência de massas. Depois disso, a Constituição de 1988 consagra, formalmente, a extensão de direitos que correspondem à intensidade da luta de classes nos anos 80. Uma das concessões mais extraordinárias foi a extensão do direito de aposentadoria para os trabalhadores rurais, provavelmente a política pública de distribuição de renda mais significativa da história do Brasil dos últimos cinqüenta anos.



Na Bolívia aconteceu uma coisa que parece ser nova, o protagonismo dos povos originários, que também se manifestam com força no México e no Equador. O que significa isso?

Significa o despertar de grandes massas indígenas camponesas que viviam como subcidadãos dentro de suas próprias nações. O campesinato latino-americano foi a vanguarda, lembremos, da primeira grande revolução do século 20, no México. Hoje, o seu novo protagonismo decorre das seqüelas do ajuste neoliberal. Os planos de estabilização da moeda, sobretudo, destruíram as condições mais elementares de vida das comunidades camponesas. E, por outro lado, a crise econômica crônica criou na América Latina um fenômeno novo que é o movimento da migração em massa para os países centrais: 25 milhões de latino-americanos foram para o Japão, Europa Ocidental e, majoritariamente, para os Estados Unidos. Uma parte da juventude vai embora, foge de seu país, isso deixa seqüelas imensas: pauperismo, desemprego crônico, miséria biológica. As comunidades camponesas atravessaram o século 20 na pobreza, mas não podemos falar em fome. Já nos anos 90, vemos fenômenos de desnutrição, queda da acessibilidade à escola, regressão em muitos indicadores sociais chaves, queda nos padrões médios de vida, e fome. No Brasil, algo em torno de 100.000 bolivianos trabalham em condições de semi-escravidão, e ainda assim o movimento de imigração não se interrompe. Por quê? Por causa da mercantilização da terra, de todos os produtos fundamentais, porque não há condições mínimas para eles poderem responder às suas necessidades. Então, há um protagonismo com dinâmica revolucionária.



Por outro lado, aconteceu uma coisa muito interessante nos últimos dez anos: o movimento de massas derruba não mais ditadores, mas sim presidentes eleitos, como no Equador, na Bolívia, na Argentina. O que isso indica?

É um fato histórico novo. Nunca antes dessa experiência tínhamos revoluções democráticas contra o regime democrático liberal. As situações revolucionárias abriam-se, essencialmente, em situações terminais, contra regimes de exceção, ditatoriais. Agora, desabou o tabu marxista de que insurreições não triunfavam contra regimes legitimamente sufragados. Ao longo dos últimos vinte, 25 anos, tivemos na América Latina regimes democráticos que herdaram, das antigas ditaduras, economias semicoloniais, com uma inserção mais frágil no mercado mundial e Estados com peso debilitado no sistema internacional. A estagnação produziu o agravamento de todas as doenças sociais: delinqüência, marginalização em grande escala, o avanço do crime organizado, a lumpenização das sociedades, a migração em massa, a decadência da educação pública, das artes, da cultura. Mas as sociedades não podem mergulhar no abismo indefinidamente. Essa nova vaga de revoluções democráticas é uma reação. Graças à nova vaga, Tabaré, Lula, Ortega, Kirchner não podem mais fazer o que Menem, Fernando Henrique e Fujimori fizeram na Argentina, no Brasil ou no Peru. Mas o problema de fundo permanece: os imigrantes não voltaram, o desemprego, mesmo quando diminuiu, manteve-se num patamar muito mais elevado do que era o quadro anterior. Haverá uma segunda onda, provavelmente ainda mais radicalizada, de mobilizações da América Latina. O problema de fundo é que o proletariado brasileiro não voltou a cumprir o papel que teve em 1978 ou 1984. Em algum momento, entre 1993 e 1995, ocorreu no Brasil uma inversão global de forças em relação ao período que se abriu entre 1978 e 1989.



Estatísticas recentes da ONU dizem que o Brasil entrou para o clube dos países mais desenvolvidos. Isso não é contraditório com o quadro de decadência que você descreve?

A dinâmica da sociedade brasileira não é ascendente. Como explicar que entre 3 e 5 milhões de brasileiros (ninguém sabe exatamente quantos são) fugiram do Brasil nos últimos dez anos, para viver em condições subumanas, em subúrbios dos Estados Unidos, de Portugal, de Londres, do Japão? Esses milhões de pessoas estão entre os mais capazes da juventude, e não por acaso remetem 10 bilhões de reais para o Brasil. As massas tentam reagir contra a decadência. Primeiro, procuram combinações do voto com soluções negociadas: são os governos de centro-esquerda, uns com uma retórica mais radical, como em La Paz e em Caracas, outros com uma retórica muita mais moderada, como em Brasília, Buenos Aires e Montevidéu, mas com um projeto que, essencialmente, é o mesmo, de regulação do capitalismo periférico. Não vejo tanta diferença de projeto entre Kirchner, Lula e Evo Morales com suas políticas compensatórias. A rigor, para ser justo, o alcance dessas políticas na Argentina foi mais gigantesco. No Brasil foram beneficiadas 11 milhões de famílias, o que corresponde a algo como 15 por cento da população economicamente ativa (PEA). Na Argentina foram 25 por cento da PEA. O projeto que está sendo implantado na Venezuela não é muito diferente. No fundamental estamos discutindo o seguinte: o projeto de regular o capitalismo e atender à satisfação das massas com políticas sociais compensatórias tem fôlego ou é uma utopia?



Supondo-se que haja mesmo uma onda revolucionária no Brasil, aqui não existem, hoje, organizações de esquerda capazes de liderar movimentos de massas na via da ruptura com o capitalismo. Nesse caso, o que vamos presenciar? Vagas revolucionárias e subseqüentes derrotas?

Há uma acefalia, uma fragilidade da representação popular, pela assimetria – para usar um termo que os sociólogos gostam –, da representação entre as classes. A burguesia dos nossos países sabe que, para dominar, precisa controlar a representação das outras classes, então ela se representa a si própria e coopta, atrai as organizações que surgem das lutas populares. Mas nem sempre com completo sucesso, porque uma parte das lideranças não pode ser comprada nem corrompida. O material humano que surge e se desenvolve no combate dos trabalhadores latino-americanos, dos povos originários, dos camponeses, da juventude é extraordinário. Surgem nas lutas às dezenas, aos milhares. Há uma enorme energia, são países com um peso da juventude enorme. Então, desse ponto de vista, há elementos para ser otimista. Mas há uma outra dimensão do problema que é trágica, porque os líderes jovens que surgem no calor do combate não têm experiência. Esse é o grande desafio dos marxistas latino-americanos, o de estar presentes na primeira linha, ao lado dos novos lutadores, para que o fio de continuidade da história não se perca.



O PT e a CUT continuam sendo organizações de massa. Numa eventual retomada das grandes lutas, que papel eles vão jogar?

A CUT hoje é ainda uma grande central, mas dificilmente agrega mais do que trezentos sindicatos que se dispõem a pagar regularmente suas cotas sindicais. Há uma crise financeira tremenda. Se formos comparar quantos sindicatos cotizam da Conlutas e quantos cotizam da CUT, vamos ter uma proporção melhor de qual o peso efetivo de cada uma das centrais. A CUT já se esvaziou em grande medida, ela é hoje um braço do Ministério do Trabalho, então a sua força efetiva como aparelho é muito pequena. A capacidade da CUT de fazer uma mobilização nacional é menor que a da Conlutas.



Mas a CUT não está interessada em promover mobilizações...

Mas ela tem que fazer, digamos, uma mobilização de faz-de-conta, porque acordada com o governo. No fundo, uma mobilização para apoiar aquilo que já tinha sido negociado com o governo. Já no caso do PT, curiosamente, o seu peso eleitoral está muito mais concentrado nos setores mais atrasados do que no momento em que o PT cumpriu um papel progressivo, nos anos 80. Acho que hoje o PT tem um compromisso de fundo com a estabilidade do regime. Há algo de fundo que mudou, algo muito simples, mas muito profundo. O PT nos anos 80, até a instalação do Colégio Eleitoral, era oposição ao governo e ao regime. O PT era a oposição ao governo Figueiredo e era oposição ao regime, que era a ditadura. A partir da eleição do Colégio Eleitoral, lentamente o PT foi se deslocando, para ser oposição a Sarney, mas defensor do regime. Pela primeira vez, o PT cumpriu um papel objetivo na defesa do regime, quando ele apoiou a posse de Itamar Franco. Durante os oito anos de Fernando Henrique, o PT foi a oposição ao governo, mas foi um partido do regime. Isso significa que o PT deve lealdade às instituições, reconhece legitimidade no Supremo Tribunal Federal, a legitimidade do Estado-Maior das Forças Armadas, dos tratados internacionais que o Brasil herdou, muitos da época da ditadura. O PT está integrado ao regime. Um partido da ordem não apóia mobilizações sociais para desestabilizar a ordem.



Mas essas políticas encontram apoio entre as massas...

Em nenhuma sociedade as classes medem forças frontalmente antes de terem esgotado todas as possibilidades de resolver o conflito através de negociações. Não vejo por que o Brasil e a América do Sul seriam diferentes. Ao longo do século 20, você verá que a busca da saída revolucionária só se impôs depois que a expectativa da mudança através de reforma tinha sido ensaiada uma, duas, três, quatro vezes, demonstrado para milhões de pessoas que não é possível mudar a sociedade sem luta.

José Arbex Jr. é jornalista e editor especial de Caros Amigos

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