terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Europa, 50 anos: os novos enigmas do Velho Mundo (Mundo)

fonte : www.clubemundo.com.br

O projeto de unificação européia não resulta apenas das estratégias empresariais a constituir um grande mercado único. Ele foi animado desde o início por uma vontade política e ideológica de reconquista, ou melhor, de “contra-reforma”, das terras então submetidas ao comunismo: não foi o tratado de criação da CEE assinado em Roma, quando seu significado geopolítico básico era o de selar a reconciliação franco-germânica? Roma, símbolo de uma fase unitária de uma parte da Europa, sob o Império Romano, e centro também do movimento democrata-cristão no qual se referenciavam os pais fundadores.



(Michel Foucher, Front set frontiers, Paris, Fayard, 1991, p. 514)







Com pompa e circunstância, a União Européia (UE) comemora seus 50 anos. Berlim, Londres, Paris e as principais cidades organizaram óperas, shows e concertos musicais para celebrar o aniversário do Tratado de Roma, que concluiu uma trajetória diplomática deflagrada junto com a eclosão da Guerra Fria (veja a matéria: Origens do projeto europeu) . Em Roma, berço da aliança, o título do debate central, convocado para o Palazzo Senatorio (sede da prefeitura), “50 anos de Europa: Europa ano zero?”, coloca a questão que divide os estrategistas: qual é o futuro da UE? “Apesar do fato de que a UE – a mais importante tentativa mundial de criar uma reconciliação entre Estados por meio da integração regional – acaba de completar 50 anos, ela ainda permanece um enigma para muitos, dentro e fora da Europa”, afirma o professor e cientista político Roy Ginsberg, especialista em UE.



O “enigma” foi acentuado pelo “não” francês à Constituição Européia. A recusa da França, resultado do plebiscito realizado em maio de 2005, provavelmente a maior derrota da história política do presidente Jacques Chirac, e certamente o mais duro golpe registrado pela aliança ao longo de cinco décadas de história, lançou indagações sobre a sua natureza e produziu uma profunda clivagem entre os estrategistas europeus.



Uma linha de interpretação parte da idéia de que o “não” francês, secundado depois pela recusa holandesa, significou a vitória do projeto nacional sobre o projeto europeu. Interesses econômicos e geopolíticos de grupos solidamente estruturados, tradições culturais, vinculações ideológicas estranhamente convergentes – da extrema direita xenófoba à extrema esquerda antiliberal – e um difuso porém poderoso sentimento de orgulho nacional teriam exposto a impossibilidade de uma completa integração, pelo menos no futuro previsível.



A realização do projeto europeu implicaria, portanto, um prolongada batalha cultural, política e ideológica, que passaria, necessariamente, pelo consolidação de valores supranacionais, para além da atividade propriamente econômica e financeira. Desse ponto de vista, o processo de institucionalização da UE teria por base a “zona do euro”, aqui encarada apenas como um ponto de partida.



Outra linha de interpretação, mais pragmática, encara o projeto europeu como um patamar econômico e financeiro, tanto no sentido de promover a integração das economias nacionais da “zona do euro”, quanto no sentido de assegurar melhores condições para os países europeus no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Nessa perspectiva, a institucionalização da UE passa a um plano secundário.



Para os defensores da linha “institucionalista”, os “pragmáticos” correm o risco de ceder a pressões desintegradoras da aliança, por parte daqueles que sempre viram com desconfiança a formação de um governo supranacional. Uma aliança soldada unicamente por interesses econômicos, nessa perspectiva, é frágil e poderia sucumbir, ao longo do tempo, a pressões da natureza daquelas que conduziram ao “não” francês.



Inversamente, para os “pragmáticos”, os “institucionalistas” partem de um projeto ideológico, utópico, que não tem sustentação na realidade prática da aliança. Tendem, por isso, a criar problemas insolúveis e a conduzir a UE a impasses prematuros e desnecessários. O “não” francês, nesse caso, seria apenas o reflexo do fracasso de uma ideologia e não da aliança propriamente dita.



Um dado algo anedótico ajuda a dimensionar as profundas divisões existentes no âmbito da aliança. Durante o debate sobre o que seria mais importante destacar como realização histórica da UE, os seus 27 membros não conseguiram chegar a uma conclusão, lembra o jornalista David Charter, da revista Times:



“Luxemburgo propôs citar em primeiro plano a adoção do euro, mas a idéia foi rejeitada, obviamente, pela Grã-Bretanha e Dinamarca, que não aceitaram a moeda comum; Itália e Polônia queriam enfatizar os valores cristãos da Europa, mas sofreram oposição da Franca, que defendeu a separação entre religião e política; os tchecos e os poloneses queriam uma declaração forte sobre segurança geopolítica, mas franceses e alemães temiam irritar os russos.”



Dado esse quadro geral, uma das poucas afirmações consensuais que se pode fazer sobre o futuro próximo da aliança é a de que ela deverá manter e aprofundar políticas de desenvolvimento do mercado interno e do fortalecimento da zona do euro. No plano das relações com o mundo exterior, deverá priorizar a redução da dependência do petróleo e do gás, e dará ênfase aos acordos comerciais bilaterais com países e blocos (como no caso do Mercosul).No capítulo da segurança interna, tenderá a aprofundar as políticas de combate ao terrorismo e ao crime organizado, mas terá ainda que enfrentar vários movimentos separatistas. E, claro, na medida do possível, terá como norte estratégico a aprovação da Constituição Européia.



É pouca coisa, para quem sonha com uma “Casa Comum Européia” – proposta que já foi defendida, entre outros, por ninguém menos que Mikhail Gorbatchev, no auge do processo de transformação da antiga União Soviética. Mas é muito, quando se considera que há escassos 50 anos a Europa ainda contava os prejuízos e os corpos deixados pela guerra. É uma situação típica do copo meio cheio ou meio vazio. Escolha a sua própria interpretação.

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