sexta-feira, 25 de março de 2011

Saiba quais são os possíveis cenários na Líbia

Fonte : Folha de SãoPaulo 24/03/2011 - 20h23


DA BBC BRASIL



Uma semana após o Conselho de Segurança da ONU ter autorizado o uso da força militar na Líbia, ainda não parece haver uma solução à vista para a crise no país.


O regime de Muammar Gaddafi continua entrincheirado no oeste, e os rebeldes continuam comandando o leste --da segunda cidade líbia, Benghazi, à fronteira com o Egito, o que faz surgir o espectro de um impasse ou de uma divisão de facto do país. Saiba quais são os cenários futuros possíveis na Líbia.


A resolução da ONU


A Resolução 1973 do Conselho de Segurança, aprovada no dia 17 de março, exige um cessar-fogo e autoriza a criação de uma zona de exclusão aérea sobre o país, além de impor o congelamento de "todos os fundos, outros bens financeiros e recursos econômicos" das autoridades líbias, ou controlados pelo governo.


Apesar de a resolução autorizar Estados-membros a "adotar todas as medidas necessárias para proteger civis sob risco de ataque", o documento exclui de forma explícita "qualquer forma de ocupação por força estrangeira de qualquer parte da Líbia".


Desde que a resolução foi aprovada, países ocidentais - liderados por EUA, França e Reino Unido - realizaram uma série de bombardeios que teriam conseguido degradar ou neutralizar defesas aéreas líbias, minimizando portanto o risco para aviões que patrulham a zona de exclusão aérea.


E, o que é mais importante, ataques aéreos ao redor de Benghazi, no dia 19 de março, eliminaram a ameaça imediata que pairava sobre a cidade. Benghazi está sob controle rebelde e forças leais a Gaddafi ameaçaram invadir a cidade e realizar buscas "beco por beco, casa por casa, cômodo por cômodo", sem "mostrar misericórdia".


Falhas militares


No entanto, não se concretizaram ainda as especulações iniciais de que a saída da força aérea de Khadafi da equação militar abriria caminho para o avanço dos rebeldes sobre áreas ainda controladas pelo governo.


Em primeiro lugar, os rebeldes, que usam Benghazi como seu quartel-general, não conseguiram aproveitar a cobertura dada pela zona de exclusão aérea para se movimentar rumo a oeste.


Parcamente treinados ou sem treino algum, desorganizados, sem estrutura de comando, aparentemente sem um plano e sem peso militar para fazer frente à artilharia pesada e aos blindados de Gaddafi, eles não conseguiram recuperar cidades que já tinham capturado, como Ajdabiya -- um portal para o leste da Líbia localizado 160 quilômetros a oeste de Benghazi. Tampouco conseguiram recuperar as cidades de Brega e Ras Lanuf, ainda mais a oeste.


Além disso, membros das unidades militares da Líbia que deram as costas ao regime no começo da rebelião --principalmente as brigadas das forças especiais Sa'iqa-- parecem ter abandonado seus uniformes e desaparecido, em vez de se juntado às forças rebeldes.


O comandante de longa data das forças especiais, general Abd al Fattah Yunis, que em fevereiro deixou o regime no qual era ministro do Interior para se tornar "chefe do Comando Geral do Exército da Líbia Livre", parece não ter usado sua influência ou seus contatos na força para mobilizá-la a se unir à causa rebelde.


Em consequência, forças de Gaddafi continuam a ampliar sua presença em áreas antes sob controle total dos rebeldes, como a cidade de Misrata, a cerca de 210 quilômetros da capital, Trípoli, e a cidade de Zintan, a oeste, cerca de 90 quilômetros a sudoeste de Trípoli. Segundo testemunhas, homens leais a Khadafi fazem uso indiscriminado de tanques, artilharia pesada, lançadores de foguetes e franco-atiradores, assim como com cortes de água e de energia para a população nessas áreas.

Falhas políticas e comunicações

Os rebeldes cometeram falhas não apenas na frente militar. Na área de comunicação, eles não têm uma estratégia de comunicação com o público líbio ou ocidental --cujo apoio é essencial.

O rebeldes anunciaram logo após a tomada de Benghazi e do leste da Líbia, em fevereiro, a formação de uma liderança interina --o Conselho Nacional Transitório. O grupo é formado por pessoas que serviram ou tinham conexões com o regime de Gaddafi. A questão é que eles não mostraram até o momento qual sua visão para o futuro do país, ou como pretendem chegar a esse futuro, para além da derrubada de Gaddafi.

Isso gerou nervosismo entre alguns líbios e especialmente junto a Estados ocidentais, que implementam a resolução do Conselho de Segurança --onde perguntas são feitas sobre a adequação de se apoiar um lado do conflito líbio sobre o qual se sabe muito pouco.


Impasse e divisão?

As falhas táticas e estratégicas não são um bom prenúncio sobre o futuro da Líbia ou da causa rebelde.

A incapacidade do regime de Gaddafi de controlar os rebeldes sem uma força aérea, e a incapacidade dos rebeldes de planejar e organizar um avanço rumo a oeste, podem com o tempo resultar no congelamento do status quo e em uma divisão de facto do país --com um quinhão do Estado controlado por Gaddafi no oeste e a metade leste da líbia sob controle rebelde.

Ambos os lados prometeram não deixar que isso aconteça, mas pode ser que eles não tenham outra escolha além de aceitar essa possibilidade.

Do ponto de vista dos aliados ocidentais, esse cenário seria enormemente indesejável, porque se Gaddafi continuar no poder em uma metade do país - sendo portanto uma ameaça para civis na outra metade - os aliados teriam que manter a zona de exclusão aérea por tempo indeterminado.

O cenário iraquiano, onde a zona de exclusão aérea vigorou por 10 anos, começaria então a assombrar responsáveis pela tomada de decisões no Ocidente. Não apenas porque sangraria o apoio público a uma intervenção na Líbia, mas também por conta dos grandes custos econômicos de uma operação como estas.

No que concerne aos rebeldes, um impasse de longo prazo daria ao regime de Khadafi tempo para mobilizar a opinião pública internacional contra a zona de exclusão aérea e a favor da suspensão de sanções da ONU.



Fim de jogo

Entretanto, um impasse e uma divisão de facto da Líbia podem ser evitados.

Em primeiro lugar, os rebeldes ainda têm tempo para formular uma estratégia, organizar uma força militar sólida e capturar áreas ainda sob controle de Gaddafi.

Além disso, agora que as forças aéreas de Khadafi foram neutralizadas, e que uma zona de exclusão aérea está em vigor, as tropas do regime não são mais capazes de retomar qualquer das grandes cidades sob controle rebelde.

E mais, com a zona de exclusão aérea em vigor, as forças aéreas dos países que implementam a resolução do Conselho de Segurança agora podem focar sua atenção nas linhas de suprimento do regime e na movimentação de suas tropas, em áreas em que essas forças sejam consideradas uma ameaça potencial a civis, como aconteceu na cidade de Misrata.

Isso poderia garantir não apenas que o ditador líbio pare de expandir as áreas sob seu controle, mas também fazer com que comandantes do Exército ainda leais a ele questionem o valor de longo prazo dessa lealdade.

Outro fator que poderia reduzir a possibilidade de um impasse de longo prazo e de uma divisão de fato da Líbia é a possibilidade de intervenção por terra de tropas ocidentais, em áreas onde forças de Gaddafi possam ameaçar cidades e suas populações.

Apesar de a resolução do Conselho de Segurança excluir "qualquer forma de ocupação por força estrangeira de qualquer parte da Líbia", o documento não descarta uma intervenção cirúrgica de forças terrestres, como, por exemplo, de forças especiais enviadas para neutralizar franco-atiradores em áreas residenciais.

E, por fim, há a possibilidade de decapitação, ou seja, de se optar por transformar o coronel Gaddafi em um alvo legítimo da operação. Apesar de este ser um tópico polêmico e não autorizado de forma explícita pela resolução do Conselho de Segurança, o documento autoriza Estados-membros da ONU a "tomar todas as medidas necessárias para proteger civis sob ameaça de ataque".

Dado o caráter centralizado do regime Líbio, e o fato de que nenhum grande ataque contra civis seria provavelmente aprovado sem o beneplácito explícito do líder líbio, tomar "todas as medidas necessárias para proteger civis" pode ser interpretado, sob circunstâncias específicas, como sinal verde para alvejar o próprio Gaddafi.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Democracias, ditaduras e escrúpulos

clóvis rossi janela para o mundo
10/03/2011 - 18h20
Fonte : Folha de São Paulo


Os acontecimentos dos últimos dias na Líbia deixam claro que a falta absoluta de escrúpulos é a grande vantagem que as ditaduras eventualmente levam sobre as democracias.

OK, já sei que você vai dizer que democracias às vezes são hipócritas e às vezes jogam os escrúpulos às favas. É verdade, mas sempre há limites que tiranos como Gaddafi desconhecem completamente --e sempre.

Por isso, comete uma matança que, no caso dos ataques a Ras Lanuf e Brega nesta quinta-feira, provocaram "uma mudança decisiva" na guerra civil em curso, conforme a avaliação de Anthony Shadid e David D. Kirkpatrick, ambos cobrindo no "front" pelo "New York Times".

Posto de outra forma, dão mais motivos para a pergunta que fiz outro dia, ou seja, "e se Gaddafi ganhar?".

Seria a desmoralização das democracias, entaladas nas dificuldades para intervir decisivamente.

É verdade que a França reconheceu como único governo legítimo da Líbia aquele instalado em Bengasi, mas nada impede que a ofensiva desencadeada pelas forças do tirano arrasem também a capital rebelde.

O "New York Times" dizia, no on-line desta quinta, que, "se confirmados, os ataques a Brega sugeririam que as forças leais [a Gaddafi] estariam movendo-se mais adiante rumo a Bengasi, possivelmente atacando as linhas de suprimento rebeldes".

Pois bem: vi na "Al Jazeera" que, sim, as forças de Gaddafi estavam atacando Brega.

Confirma o principal funcionário da inteligência norte-americana, James Clapper: "A vantagem militar e em recursos logísticos do governo assegurariam que, a longo prazo, o regime vai prevalecer".
O que fazer, então? James Lindsay, vice-presidente do Council on Foreign Relations, listou sete possíveis cursos de ação para os Estados Unidos, apenas para descartar um após o outro. São: zona de exclusão aérea; zona de exclusão de veículos; empurrar algum país a intervir na Líbia; armar os rebeldes; pedir a outros países que armem os rebeldes; fornecer inteligência militar tática aos rebeldes; e fornecer-lhes suporte moral e humanitário (esta última é risível, convenhamos).

"Nenhuma dessas opções é atraente", conclui Lindsay.

Não sei, não, mas uma zona de exclusão aérea, a esta altura, poderia conter a carnificina porque os testemunhos dos repórteres em campo indicam que só a partir do momento em que passou a usar bombardeios aéreos é que Gaddafi conseguiu a "mudança decisiva" anotada pelo "New York Times".

O problema para implementá-la é que os escrúpulos das democracias pedem que seja aprovada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. E, aí, uma ditadura aberta (China) e uma velada (a Rússia) não teriam escrúpulos em vetar.

domingo, 6 de março de 2011

Revoltas árabes ecoam Revolução Francesa - entrevista Robert Darton

Revoltas árabes ecoam Revolução Francesa, diz historiador

Fonte Folha de S Paulo -

Historiador da Revolução Francesa, Robert Darnton anda emocionado com as imagens e informações que chegam do Oriente Médio. "É o tipo de coisa que faz o seu peito apertar, traz lágrimas aos olhos e faz você pensar que a humanidade pode se regenerar."


O professor de Harvard vê neste 2011 ecos de 1789 e outros períodos revolucionários --na rebelião contra a tirania e na reafirmação do que chama de "possibilismo", espécie de explosão utópica que faz populações acreditarem que são capazes de mudar regimes que antes pareciam inamovíveis.


Testemunha da queda do Muro de Berlim, em 1989, Darnton adverte porém que é cedo para chamar os eventos atuais de revoluções. "Vamos demorar a saber se haverá uma mudança fundamental."


FOLHA - Observando os acontecimentos no Oriente Médio, o sr. diria que o lema da Revolução Francesa liberdade, igualdade, fraternidade está vivo?


ROBERT DARNTON - Bem, não tenho tanta certeza sobre a fraternidade porque há mulheres envolvidas, e a palavra teria sentido diferente hoje do que tinha no século 18. Tivemos o movimento de liberação feminina, e está claro que esses protestos no Cairo e em outros lugares não foram feitos só por homens.

Mas certamente liberdade e igualdade estão presentes, em especial a liberdade. O interessante é que a maioria dos protestos no mundo árabe se dirige contra o que é visto como tirania ou despotismo. Claro que as pessoas querem empregos e melhores condições de vida, mas parecem protestar especialmente contra os abusos e a corrupção do poder.

Isso é fascinante porque acho que era o que ocorria também no século 18. Segundo a interpretação marxista, a Revolução Francesa foi uma luta de classes [da burguesia contra a aristocracia feudal]. Havia conflitos de classe, claro, mas não acho que isso explique aquela revolução. Do mesmo modo, não acredito que explique o que está acontecendo no mundo árabe, mesmo que a pobreza seja um fator crucial.

Muito da minha pesquisa sobre a Revolução Francesa é revisionista no sentido de que mostro que o despotismo era o fator fundamental nas primeiras fases e mesmo durante o período do Terror [de execução em massa dos considerados contrarrevolucionários]. Esse é um dos aspectos em que encontro ecos de 1789 em 2011.

Quando me refiro a fraternidade no caso, me refiro à humanidade, não só aos homens.


Acho que o seu entendimento é correto. A referência [no século 18] era às reivindicações universais de liberação. Nesse sentido, a fraternidade é ainda hoje relevante. Mas não acho que você encontrará pessoas usando essa palavra no mesmo sentido usado há 200 anos.

No livro "Ecos da Marselhesa", o historiador Eric Hobsbawm, que é marxista, diz que a Revolução Francesa plantou uma ideia mais ampla do que a luta de classes, a de que a ação dos povos pode mudar a história. O sr. concorda?

Completamente. Sou amigo de Hobsbawm e acho que ele está certo nisso. Mas a antiga fórmula marxista é que uma revolução é uma contradição entre as relações sociais de produção e as forças produtivas. E não vejo nada disso acontecendo hoje.

Temos em geral dois modelos que competem pela interpretação das revoluções: o marxista e o que vem de [o pensador francês Alexis de] Tocqueville, que tem muito apelo no Ocidente liberal. Sua ênfase é na centralização do poder em um só lugar, em geral a capital, na ideologia e na melhoria de condições econômicas como fator de aumento das expectativas, que então são frustradas.

Tenho procurado sinais desse modelo no Egito e em outros lugares. Não tenho a pretensão de ser um especialista na região, mas vejo lá três coisas que sobressaem.

E quais são elas?

A importância da comunicação e da opinião pública; o que chamo de possibilismo, que é do que fala Hobsbawm quando se refere à mobilização das massas; e por fim o poder dos símbolos.

O sr. comparou os "rumores públicos" da época da Revolução Francesa com as redes sociais virtuais de hoje...


Os analistas destacam o papel de Twitter, Facebook, câmeras digitais etc. Diria que é um pouco mais complicado. Além da existência crucial de novos meios, está o que chamo de força eletrizante de acontecimentos reais, que foram transmitidos e amplificados por eles, criando uma consciência, uma imaginação coletiva.

O movimento de 25 de Janeiro no Cairo foi isso. Não podemos simplesmente dizer que mídia moderna possibilitou a derrubada de regimes tirânicos. É o modo como a mídia é usada. O fato de esse rapaz, Wael Ghonim [diretor do Google], ter posto no Facebook a imagem dessa pobre vítima de violência policial [o jovem Khaled Said] é tão importante quanto a existência do Facebook. O que importa é a habilidade de encontrar símbolos que energizam a imaginação coletiva.

E o que o sr. quer dizer com possibilismo?

Me refiro à liberação de uma espécie de energia utópica com manifestações massivas. O poder da rua, do contato humano, a transmissão oral de mensagens _afinal quando a internet foi cortada a palavra foi transmitida boca a boca. É isso que os franceses queriam dizer quando falavam de "emoções populares" para se referir a tumultos, revoltas.

Há uma dimensão passional que torna as pessoas convencidas de que elas podem mudar coisas que antes pareciam inamovíveis, obter coisas que antes pareciam fora de suas possibilidades. Creio que esse sentido de energia utópica, ou possibilismo, foi liberado nas grandes manifestações no Oriente Médio e norte da África.

E o sr. identificaria os símbolos que potencializam esse sentimento?

É o meu terceiro ponto, o poder simbólico, que é um poder real, capaz de derrubar regimes. Ele envolve ações coletivas como tomar uma praça central, como a Tahrir, e outras praças na região. É como tomar a Bastilha, que se tornou um símbolo do despotismo, apesar de só haver sete pessoas lá no 14 de Julho de 1789.

Passei meses lendo os arquivos da Bastilha e vi que não era um centro de tortura. Mas era um símbolo do abuso de poder. O que acontece é que os manifestantes se unem em torno de um símbolo e particularmente de um inimigo comum, que foi o que [o ex-ditador egípcio Hosni] Mubarak se tornou. Você via esses retratos de Mubarak que as pessoas levavam para os protestos, com orelhas de burro, chifres. Elas estavam dessacrando um símbolo, e acho que isso tem um poder imenso para energizar pessoas que estavam apavoradas com o poder arbitrário que ele representava.

O sr. fez uma comparação entre o papel do revolucionário francês Camille Desmoulins [que chamou à tomada da Bastilha] e o de Ghonim, que deu novo impulso aos manifestantes egípcios ao chorar na TV após sua libertação da prisão.

O interessante é que a maneira como essa entrevista eletrizou os egípcios tem a ver com o ceticismo das pessoas em relação à TV, até então controlada pelo governo. De repente elas estão assistindo e ele [Ghonim] desaba ao saber que manifestantes haviam sido mortos e deixa o estúdio. Havia tanta autenticidade em sua reação que ela rompeu a artificialidade das transmissões habituais.

Na Polônia [comunista], quando a TV anunciou que o sindicato livre Solidariedade havia sido reconhecido pelo regime, ninguém acreditou. É uma situação parecida. A mídia é tão manipulada nesses regimes autocráticos que as pessoas param de acreditar, e algo como esse incidente com Ghonim desafio esse ceticismo. Há esse elemento de autenticidade que pode ser a pólvora que desencadeia as emoções populares.

O sr. diz que a libertação da tirania é a reivindicação mestra nas rebeliões atuais. Um dado interessante é que mesmo os governantes que não eram herdeiros de dinastias monárquicas, como Mubarak ou o líbio Muammar Gaddafi, pretendiam transferir o poder aos filhos. Há um elemento de republicanismo também comum a 1789, não?

Certamente. Dinastias estavam sendo criadas por pessoas que no passado se disseram revolucionárias, mas ficaram no poder por tempo demais. Nesse sentido podemos dizer que as revoltas têm caráter republicano, palavra que tem conotações importantes. Fala-se em republicanismo cívico para evocar o ideal de comunidade e participação cidadã na vida coletiva de uma entidade política. Algo assim está acontecendo e aconteceu na Revolução Francesa, uma emoção republicana, um surto de consciência coletiva dirigido contra o alvo visto como tirânico.

Podemos identificar uma revolução no momento em que ela acontece ou temos que esperar? No Oriente Médio, não está claro que tipos de regime surgirão.

A palavra revolução é usada para tudo e perde sua força. Fala-se em revolução nas técnicas do futebol, na moda. Mas se por revolução nos referimos à transformação de um sistema político pela violência, por rebeliões populares, temos que esperar. Vamos demorar a saber se haverá uma mudança fundamental ou não. Nos sentimos muito tocados pela bravura do povo egípcio, por exemplo, por sua audácia, e queremos chamar o que está acontecendo de revolução. Mas temos que esperar a poeira assentar e examinar todos os elementos que entraram na crise, na explosão e na reconstrução antes de poder determinar a profundidade desses eventos.

No caso da Revolução Francesa, as pessoas que a estavam vivendo a chamavam já desse modo, não?


Sim. Passei algum tempo pesquisando o significado da palavra em francês, e ela está ligada ao verbo girar, um movimento de volta a um ponto inicial. Mas quando as pessoas falavam que estavam fazendo uma revolução estavam dando um novo significado à palavra. Mas ouso dizer que em alguns casos há pessoas que se denominam revolucionárias que na verdade promovem apenas um tumulto que se esgota e não muda nada.

O sr. fala de revoluções de expectativas crescentes, segundo a tese de Tocqueville, e nos casos de Tunísia e Egito isso fez parte do diagnóstico: uma população jovem, com maior nível de educação que seus pais e avós, mas que não via meios de progresso num sistema autoritário.

Acho que esse foi o caso. E envolveu também intelectuais alijados. Está claro que muitos manifestantes nesses dois países eram jovens universitários que se uniram também a trabalhadores. Eram desempregados qualificados que sentiam que sua vida estava sendo desperdiçada, que não havia lugar para eles no velho regime. O fato de essas pessoas serem tão jovens e tão educadas é para mim crucial e isso se encaixa no modelo geral de Tocqueville para revoluções.

Uma outra comparação possível é com as revoluções de 1989 no Leste Europeu. Lá, como no Oriente Médio, não havia uma vanguarda política clara como os jacobinos na França ou os bolcheviques na Rússia. Após o fim do comunismo, ex-comunistas assumiram o poder em muitos países. Isso pode acontecer também no Oriente Médio?

Acho que é um ponto válido, e não sei a resposta. No caso dos clubes dos jacobinos, ele não existiam antes de 1789, se desenvolveram naquele ano e nos seguintes. Alguns historiadores argumentam que eles tinham precursores nas chamadas "sociedades de pensamento", grupos de intelectuais, mas não acho que isso seja verdade. No caso da Revolução Russa, havia um partido leninista altamente organizado. Não vejo nada parecido no Egito, Tunísia ou Iêmen.

As pessoas mencionariam os grupos islamistas, como a Irmandade Muçulmana no Egito. Pode ser que ela se torne o ingrediente jacobino, mas não sei. Minha impressão é que há uma noção muito variada e desorganizada do "povo" indo às ruas, como havia na França em 1789. Mas não vejo nenhum tipo de estrutura preexistente em torno da qual o poder pode se concentrar para empurrar a revolução para o próximo estágio. Pode ser que esteja lá e não a descobrimos ainda.

Por que as revoluções são tão raras e tão difíceis de prever?

Não sei. Ninguém previu esta explosão agora. E eu estava em Berlim em 1989 quando o Muro caiu, no Instituto de Estudos Avançados, com especialistas de todo tipo, e ninguém tinha a mínima noção de que estava para acontecer o momento que poria fim à Guerra Fria.

Na verdade não entendemos as forças profundas da história. Eles entram em erupção subitamente e nos fazem repensar nossas categorias de entendimento. Por isso falo em "possibilismo". Nós historiadores que apenas medimos o preço dos grãos fracassamos em levar isso em consideração.

Por que a influência global da Revolução Francesa é maior do que a da Americana [1776], se houve influência mútua entre ambas e esta aconteceu antes?

É difícil medir influência. No entanto é irrefutável que a Revolução Francesa teve tremenda influência nos séculos 19 e 20. A apropriada pelos marxistas, se tornou um ingrediente da Guerra Fria. Foi vista como a mãe de todas as revoluções, e tenho que admitir que essa é a minha visão. Mesmo Leon Trotsky [1879-1940] na Rússia estava tão convencido do modelo francês que começou a ver sintomas de uma reação termidoriana [referência à condenação à morte de Maximilien Robespierre e ao fim do comando jacobino da revolução, em 1794].

A Revolução Americana jamais foi tratada dessa forma. Mas foi um evento revolucionário e importante de outras maneiras, em particular na noção de uma colônia derrubar o país-mãe e criar uma nova sociedade com seu próprio sistema constitucional. Me parece que esse exemplo também teve ressonância. Há diferentes tipos de revolução, mas acho que a dimensão, o drama e a violência da Francesa foram muitos maiores do que os da Americana.

Há algo mais que o sr. gostaria de acrescentar?

Só que eu acho que [os acontecimentos no Oriente Médio] são comoventes demais, e inspiradores. É o tipo de coisa que faz o seu coração apertar, traz lágrimas aos olhos e faz você pensar que a humanidade pode se regenerar. Há essa enorme população de pessoas vivendo na pobreza, submetidas à tirania e à tortura, e elas tiveram a coragem de ir às ruas e derrubar regimes que monopolizavam o poder. É de tirar o fôlego. Eu só espero que isso não degenere em guerra civil e no restabelecimento de sistemas de interesses escusos e corrupção.





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